4/04/2012

Gatos & Escritores

Para Bento, Nina & Kiki: sempre por perto









Ode ao gato
João Bosco Maia


Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça vôo.
O gato,
só o gato apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa
só como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogar as moedas da noite .

Oh pequeno imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gato, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos do seu gato.

Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e o seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica
o gineceu com os seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.




***






Cat - de Andréa Carvalho Gavita

Notar deles como os dois olhos se acendem no escuro e o jeito como que ondulam invisíveis. Estão sempre perguntando desde sua íris-de-espelhos. O mistério de que nada digam, só perguntem, é o que intriga e faz de um gato, mais que um dicionário novo, uma girafa, muito mais que uma tartaruga no cio.

Wilson Bueno (Manual de zoofilia)  


Cat - de Heleine Fernandes

A Fala do Gato



O gato siamês

tem uns vinte miados:

alguns são suaves,

outros exaltados;

há os miados graves

e há os engasgados.

É quase um idioma

que ainda não entendo

mas o gato bem sabe

o que está dizendo.

E até falou comigo

em linguagem de gente.

Disse: “meu amigo”,

assim de repente.



Então eu acordei

feliz e contente!

Era sonho, claro.

Mas, como se sabe,

é no sonho que ocorre

o que se deseja

e no mundo não cabe.

Ferreira Gullar


Benedito Nunes



Eu postulo que os gatos começaram como companheiros psíquicos, como Familiares, e nunca se afastaram dessa função.

William Burroughs



  L. F. Celine

Uma gentil e maníaca senhora tinha Um gato siamês. Era um bichinho de raça, criado como se fosse gente. Gato bonito, amigo, parecia um deus. Só faltava falar. Muito triste, a senhora passava duas horas por dia tentando ensinar o gatinho a falar. Repetia letras, sílabas, palavras. Tinha esperança que a qualquer hora aquele olhar inteligente se manifestaria.
Morava na mesma casa um outro animalzinho. Inferior ao gato, preso no poleiro de ferro, a pobre ave conversava. Até mais do que devia. Um papagaio que falava pelos poros! Se é que os tinha. Curiosa a natureza, pensava a mulher. Um gato quase humano, sem fala. E um papagaio cretino, a conversar. Foi então que teve a brilhante idéia. Matou o papagaio, depenou-o e o cozinhou. Pensou. Se o gato comer a carne do papagaio, ele, certamente, falará.
Só que o gato não quis comer o amigo. Até apanhar o gatinho apanhou. Não conseguia imaginar o companheiro cozido, na panela. Mais tarde, vencido pela fome, o gato engoliu todo o papagaio da panela.
Imediatamente, sua dona pulou de alegria! Enfim, o gato falaria! O gato, sentindo-se mal, começou a gritar, dizendo que fugisse pois, o prédio estava prestes a cair.
Ela, rindo e chorando por causa do milagre, nem ouviu o que dizia. O gato insistia. Pulou para a rua, insistindo. Sua dona deveria sair do prédio. Bem rápido.
Mas não deu tempo de mais nada. Um estrondo, e o prédio caiu, desmoronou-se. Sua dona ficou no meio dos escombros. Talvez estivesse ainda com um sorriso nos lábios. Afinal, seu gatinho falara! O bichano, assustado, comentou melancolicamente com um gato mais pobre do terreno ao lado. Sua dona preocupou-se tanto com a sua fala! E no momento que falou, ela não prestou atenção! E o artista não acredita mesmo na sua criação!

Millor Fernandes

Albert Camus


O gato dorme a tarde inteira no jardim. Sonha (?) tigres enviesados a chamá-lo para a fraternidade no jardim. Gato sonhando, talvez sonho de homem? Continua dormindo, enquanto ignoro a natureza e o limite do seu sonho e por minha vez também me sonho (inveja) gato no jardim.

Carlos Drummond de Andrade


Samuel Beckett


Se digo “é um gato real” que me vê nu, é para assinalar sua insubstituível singularidade. Quando ele responde ao seu nome (seja lá o que queira dizer “responder”, e esta será pois nossa questão), ele não o faz como um exemplar da espécie “gato”, ainda menos de um gênero ou de um reino “animal”. É verdade que eu o identifico como um gato ou uma gata. Porém, antes mesmo dessa identificação, ele vem a mim como este vivente insubstituível que entra um dia no meu espaço, nesse lugar onde ele pôde me encontrar, me ver, e até me ver nu.
Jacques Derrida (O animal que logo sou) 



Foucault

O homem gostaria de ser peixe ou pássaro,
a serpente gostaria de ter asas, o cão é um leão confuso...
Mas o gato quer ser somente gato,
e todo gato é um puro gato
desde o bigode ao rabo

Pablo Neruda



Ezra Pound

O GATO

Na minha casa desejo ter
Uma mulher que imponha a sua razão
Um gato passeando por entre os livros
E porque sem eles não posso viver
Amigos seja qual for a estação

GUILLAUME APOLLINAIRE  (Bestiário)


Jacques Prévert

“O gato não oferece serviços. Ele se oferece. Claro que ele quer carinho e abrigo. O amor não é de graça. Como todas as criaturas puras, os gatos são pragmáticos.”

William Burroughs (O gato por dentro)


Truman Capote

Se eu prefiro os gatos aos cães é porque não existem gatos policiais.
                     Jean Cocteau


Georges Perec

O pêlo do gato para alisar. Limpinho, o quente contato da mão no dorso, corcoveante e nodoso à carícia. O lânguido sono de morfinômano. O marzinho de leite no pires e a língua secreta, ágil. A ninhada de gatos, os vacilantes filhotes de olhos cerrados. O novelo, a bola de papel — o menino e o gato brincando. Gato lúdico. O gatorro, mais felino do que o cachorro é canino. Gato persa, gatochim — o espirro do gato de olhos orientais. Gato de botas, as aristocráticas pantufas do gato. A manha do gato, gatimanha: teve uma gata miolenta em segredo chamada Alemanha. 

Otto Lara Resende (Gato gato gato)


William Burroughs

Em cima do muro, indiferente aos cacos de vidro, um gato — outro gato, o sempre gato — transportava para a casa vizinha o tédio de um mundo impenetrável.

Otto Lara Resende  (Gato gato gato)



Jack kerouac

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Fernando Pessoa (1-1931)



Hermann Hesse

“Indícios apontam que os gatos foram domesticados pela primeira vez no Egito. Os egípicios armazenavam grãos, que atraíam roedores, que atraíam gatos. (Não há prova de que isso tenha acontecido com os maias, apesar de haver um grande número de gatos selvagens nativos na área.) Não acho que isso seja exato. Sem dúvida não é a história toda. Gatos não começaram como caçadores de ratos. Doninhas, cobras e cães são mais eficientes como agentes de controle de roedores. Eu postulo que os gatos começaram como companheiros psíquicos, como Familiares, e nunca se afastaram dessa função.”

William Burroughs (O gato por dentro)



Jean-Paul Sartre



Nos últimos anos, tornei-me um dedicado amante de gatos, e agora reconheço a criatura claramente como um espírito felino, um Familiar. Sem dúvida compartilha coisas com o gato, e também com outros animais: raposas voadoras, lêmures ai-ais, lêmures-voadores com olhos amarelos enormes que vivem em árvores e são indefesos no chão, lêmures de cauda anelada e os pequeninos lêmures microcebos, martas, guaxinins, minks, lontras, gambás e raposas da areia.”
William Burroughs (O gato por dentro)

Jean Cocteau

Ao ver Alice, o Gato só sorriu. Parecia amigável, ela pensou;

ainda assim, tinha garras muito longas e um número enorme

de dentes, de modo que achou que devia tratá-lo com respeito.
“Bichano de Cheshire”, começou, muito tímida, pois não

estava nada certa de que esse nome iria agradá-lo; mas ele só

abriu um pouco mais o sorriso. “Bom, até agora ele está

satisfeito”, pensou e continuou: “Poderia me dizer, por favor,

que caminho devo tomar para ir embora daqui?”
“Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato.
“Não me importa muito para onde”, disse Alice.
“Então não importa que caminho tome”, disse o Gato.
“Contanto que eu chegue a algum lugar”, Alice acrescentou à

guisa de explicação.
“Oh, isso certamente você vai conseguir”, afirmou o Gato,

“desde que ande o bastante.”
Lewis Carrol (Aventuras de Alice no país das maravilhas & Através do espelho)

John Cage


É no meu cérebro que se passeia,
Como no seu apartamento,
Um gato doce e atraente.
Mal o consigo ouvir, se mia,

Porque o seu timbre é tão discreto;
Mas a voz, calma ou iracunda,
É sempre rica e bem profunda.
É o seu encanto e o seu segredo.

A voz, que goteja e se infiltra
No meu fundo mais tenebroso,
Enche-me, qual verso copioso,
E satisfaz-me como um filtro.

Adormeço os males cruéis,
Ela contém todos os extâses;
E pra dizer as maiores frases
Não necessita de palavras.

Não, não exista arco que morda
O meu peito, raro instrumento,
E faça majestosamente
Cantar essa vibrante corda,

Como a tua voz, ó misterioso
Gato seráfico, tão estranho,
No qual tudo é, como num anjo,
Tão subtil como harmonioso!






Charles Baudelaire (1821-1867)

Ernest Hemingway 

Gatos não morrem: mais preciso - se somem - é dizer que foram rasgar sofás no paraíso e dormirão lá , depois do ônus de sete bem vividas vidas , seus setes merecidos sonos.


Nelson Ascher


Elizabeth Bishop





O nome de gato assegura minha vigília
e morde meu pulso distraído
finjo escrever gato, digo: pupilas, focinhos
e patas emergentes. Mas onde repousa
o nome, ataque e fingimento,
estou ameaçada e repetida
e antecipada pela espreita meio adormecida
do gato que riscaste por te preceder e
perder em traços a visão contígua
de coisa que surge aos saltos
no tempo, ameaçando de morte
a própria forma ameaçada do desenho
e o gato transcrito que antes era
marca do meu rosto, garra no meu seio.
Ana Cristina Cesar

Orides Fontela


Gato — leu no silêncio da própria boca. Na palavra não cabe o gato, toda a verdade de um gato. Aquele ali, ocioso, lento, emoliente — em cima do muro. As coisas aceitam a incompreensão de um nome que não está cheio delas. Mas bicho, carece nomear direito: como rinoceronte, ou girafa se tivesse mais uma sílaba para caber o pescoço comprido. Girafa, girafa. Gatimonha, gatimanho. Falta um nome completo, felinoso e peludo, ronronante de astúcias adormecidas. O pisa-macio, as duas bandas de um gato. Pezinhos de um lado, pezinhos de outro, leve, bem de leve para não machucar o silêncio de feltro nas mãos enluvadas.


Otto Lara Resende ( Gato gato gato)


Allen Ginsberg

O Gato e o Pássaro


Uma cidade escuta desolada
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro deixa de cantar
E o gato deixa de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Funerais maravilhosos
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não pára de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Você teria sofrido menos
Só tristeza e saudades


Jacques Prévert (O gato e o pássaro)



Aldous huxley


"...Uma última transformação fez dela uma lenta estátua nitidamente separada das demais, de mim que me aproximava indeciso buscando-lhe os olhos perdidos na tela. Vi que o gato era idêntico a Osíris e que mirava ao longe algo que o muro da janela não nos deixava ver. Imóvel em sua contemplação, parecia menos imóvel que a imobilidade de Alana. De alguma maneira senti que o triângulo se havia fechado, quando Alana voltava para mim a cabeça o triângulo já não existia, ela havia ido ao quadro mas não estava de volta, continuava ao lado do gato olhando para além da janela onde ninguém podia ver o que eles viam, o que somente Alana e Osíris viam cada vez que me olhavam de frente".
Julio Cortázar (A orientação dos Gatos) 

Julio Cortázar

  
Hermann Hesse




D.H. Auden

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