E N T R E V I S T A C O M EDUARDO
VIVEIROS DE CASTRO
Falar, resistir,
insistir, olhar por cima do imediato – e, evidentemente, educar. Mas não
“educar o povo”, como se a elite fosse muito educada e devêssemos (e
pudéssemos) trazer o povo para um nível superior; mas sim criar as condições
para que o povo se eduque e acabe educando a elite, quem sabe até livrando-se
dela. A paisagem educacional do Brasil de hoje é a de uma terra devastada, um
deserto. E não vejo nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar esse
deserto. Pelo contrário: chego a ter pesadelos conspiratórios de que não
interessa ao projeto de poder em curso modificar realmente a paisagem
educacional do Brasil: domesticar a força de trabalho, se é que é isso mesmo
que se está sinceramente tentando (ou planejando), não é de forma alguma a
mesma coisa que educar.
Eduardo Viveiros de Castro
Eduardo Viveiros de Castro
* * *
QUAL É SUA
PERCEPÇÃO SOBRE A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DO BRASILEIRO?
Preferiria começar
por uma desgeneralização: vejo a sociedade brasileira como profundamente
dividida no que concerne à sua visão do país e do futuro. A ideia de que existe
um Brasil, no sentido não-trivial das ideias de unidade e de brasilidade,
parece-me uma ilusão politicamente conveniente (sobretudo para os dominantes)
mas antropologicamente equivocada. Existem no mínimo dois, e, a meu ver, bem
mais Brasis. O conceito geopolítico de Estado-nação unificado não é descritivo,
mas prescritivo. Há fraturas profunda na sociedade brasileira. Há setores da
população com uma vocação conservadora imensa; eles não integram
necessariamente uma classe específica, embora as chamadas “classes médias”,
ascendentes ou descendentes, estejam bem representadas ali. Grande parte da
chamada sociedade brasileira — a maioria, infelizmente, temo — se sentiria
muito satisfeita sob um regime autoritário, sobretudo se conduzido
mediaticamente pela autoridade paternal de uma personalidade forte. Mas isso é
uma daquelas coisas que a minoria libertária que existe no país, ou mesmo uma
certa medioria “progressista”, prefere manter envolta em um silêncio
embaraçado. Repete-se a todo e a qualquer propósito que o povo brasileiro é
democrático, “cordial”, amante da liberdade, da igualdade e da fraternidade – o
que me parece uma ilusão muito perigosa. É assim que vejo a “participação
política do povo brasileiro”: fraturada, dividida, polarizada, uma polarização
que não está necessariamente em harmonia com as divisões politicas oficiais
(partidos etc.). O Brasil permanece uma sociedade visceralmente escravocrata,
renitentemente racista, e moralmente covarde. Enquanto não acertarmos contas
com esse inconsciente, não iremos “para a frente”. Em outros momentos, é claro,
soluços insurreicionais esporádicos, e uma certa indiferença pragmática em
relação aos poderes constituídos, que se testemunha sobretudo entre os mais
pobres, ou os mais alheios ao teatro montado pelo andar de cima, inspiram
modestas utopias e moderados otimismos por parte daqueles que a historia
colocou na confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em suma.
O QUE É PRECISO
PARA MUDAR ISSO?
Falar, resistir,
insistir, olhar por cima do imediato – e, evidentemente, educar. Mas não
“educar o povo”, como se a elite fosse muito educada e devêssemos (e
pudéssemos) trazer o povo para um nível superior; mas sim criar as condições
para que o povo se eduque e acabe educando a elite, quem sabe até livrando-se
dela. A paisagem educacional do Brasil de hoje é a de uma terra devastada, um
deserto. E não vejo nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar esse
deserto. Pelo contrário: chego a ter pesadelos conspiratórios de que não
interessa ao projeto de poder em curso modificar realmente a paisagem
educacional do Brasil: domesticar a força de trabalho, se é que é isso mesmo
que se está sinceramente tentando (ou planejando), não é de forma alguma a
mesma coisa que educar.
Isto é só um
pesadelo, decerto: não é assim, não pode ser assim, espero que não seja assim.
Mas fato é que não se vê uma iniciativa de modificar a situação. Vê-se é a
inauguração bombástica de dezenas de universidades sem a mínima infra-estrutura
física (para não falar de boas bibliotecas, luxo quase impensável no Brasil),
enquanto o ensino fundamental e médio permanecem grotescamente inadequados, com
seus professores recebendo uma miséria, com as greves de docentes
universitários reprimidas como se eles fossem bandidos. A “falta” de instrução
— que é uma forma muito particular e perversa de instrução imposta de cima para
baixo — é talvez o principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário
de boa parte da sociedade brasileira. Em suma, é urgente uma reforma radical na
educação brasileira.
“A floresta e a
escola”, sonhava Oswald de Andrade. Infelizmente, parece que deixaremos de ter
uma e ainda não teremos a outra. Pois sem escola, aí é que não sobrará floresta
mesmo.
POR ONDE COMEÇARIA
A REFORMA NA EDUCAÇÃO?
Começaria por baixo,
é lógico, no ensino fundamental – que continua entregue às moscas. O ensino
público teria de ter uma política unificada, voltada para uma – com perdão da
expressão – “revolução cultural”. Não adianta redistribuir renda (ou melhor,
aumentar a quantidade de migalhas que caem da mesa cada vez mais farta dos
ricos) apenas para comprar televisão e ficar vendo o BBB e porcarias do mesmo
quilate, se não redistribuímos cultura, educação, ciência e sabedoria; se não
damos ao povo condições de criar cultura em lugar de apenas consumir aquela
produzida “para” ele. Está havendo uma melhora do nível de vida dos mais
pobres, e talvez também da velha classe média – melhora que vai durar o tempo
que a China continuar comprando do Brasil e não tiver acabado de comprar a
África. Apesar dessa melhora no chamado nível de vida, não vejo melhora na
qualidade efetiva de vida, da vida cultural ou espiritual, se me permitem a
palavra arcaica. Ao contrário. Mas será que é preciso mesmo destruir as forças
vivas, naturais e culturais, do povo, ou melhor, dos povos brasileiros para
construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.
NESSE CENÁRIO,
QUAIS OS TEMAS CAPAZES DE MOBILIZAR A SOCIEDADE BRASILEIRA, HOJE?
Vejo a “sociedade
brasileira” imantada, pelo menos no plano de sua auto-representação normativa
por via da midia, por um ufanismo oco, um orgulho besta, como se o mundo (desta
vez, enfim) se curvasse ao Brasil. Copa, Olimpíadas… Não vejo mobilização sobre
temas urgentíssimos, como esses da educação e da redefinição de nossa relação
com a terra, isto é, com aquilo que está por baixo do território. Natureza e
Cultura, em suma, que hoje não apenas se acham mediadas, mediatizadas pelo
Mercado, mas mediocrizadas por ele. O Estado se aliou ao Mercado, contra a
Natureza e contra a Cultura.
ESSES TEMAS AINDA
NÃO MOBILIZAM?
Existe alguma
preocupação da opinião pública com a questão ambiental, um pouco maior do que
com a educacional – o que não deixa de ser para se lamentar, pois as duas vão
juntas. Mas tudo me parece “too little, too late”: muito pouco, e muito tarde.
Está demorando tempo demais para se espalhar a consciência ambiental, o sentido
de urgência absoluta que a situação do planeta impõe a todos nós. Essa inércia
se traduz em pouca pressão sobre os governos, as corporações, as empresas – estas
investindo cada vez mais na historia da carochinha do “capitalismo verde”. E
pouca pressão sobre a grande imprensa, suspeitamente lacônica, distraída e
incompetente quando se trata da questão das mudanças climáticas.
Não se vê a
sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por Belo Monte, uma monstruosidade
provada e comprovada, mas que tem o apoio desinformado (é o que se infere) de
porções significativas da população do Sul e Sudeste, para onde irá boa parte
da energia que não for vendida a preço de banana paras as multinacionais do
alumínio fazerem latinha de sakê, no baixo Amazonas, para o mercado asiático.
Faz falta um discurso politico mais agressivo em relação à questão ambiental. É
preciso sobretudo falar aos povos, chamar a atenção de que saneamento básico é
um problema ambiental, dengue é problema ambiental, lixão é problema ambiental.
Não é possível separar desmatamento de dengue e de saneamento básico. É preciso
convencer a população mais pobre de que melhorar as condições ambientais é
garantir as condições de existência das pessoas. Mas a esquerda tradicional,
como se está comprovando, mostra-se completamente despreparada para articular
um discurso sobre a questão ambiental. Quando suas cabeças mais pensantes
falam, tem-se a sensação de que estão apenas “correndo atrás”, tentando
desajeitadamente capturar e reduzir ao já-conhecido um tema novo, um problema
muito real que não estava em seu DNA ideológico e filosófico. Isso quando ela,
a esquerda, não se alinha com o insustentável projeto ecocida do capitalismo,
revelando assim sua comum origem com este último, lá nas brumas e trevas da
metafísica antropocêntrica do Cristianismo.
Enquanto acharmos
que melhorar a vida das pessoas é dar-lhes mais dinheiro para comprarem uma
televisão, em vez de melhorar o saneamento, o abastecimento de água, a saúde e
a educação fundamental, não vai dar. Você ouve o governo falando que a solução
é consumir mais, mas não vê qualquer ênfase nesses aspectos literalmente
fundamentais da vida humana nas condições dominantes no presente século.
Não se diga, por
suposto, que os mais favorecidos pensem melhor e vejam mais longe que os mais
pobres. Nada mais idiota do que esses Land Rovers que a gente vê a torto e a
direito em São Paulo ou no Rio, rodando com plásticos do Greenpeace e slogans
“ecológicos” colados nos pára-brisas. Gente refestelada nessas banheiras 4×4
que atravancam as ruas e bebem o venenoso óleo diesel, gente que acha que
“contato com a natureza” é fazer rally no Pantanal…
É uma situação
difícil: falta instrução básica, falta compromisso da midia, falta
agressividade política no tratar da questão do ambiente — isso quando se acha
que há uma questão ambiental, o que está longe de ser o caso de nossos atuais
Responsáveis. Estes mostram, ao contrário e por exemplo, preocupação em formar
jovens que dirijam com segurança, e assim ao mesmo tempo mantêm sua aposta
firme no futuro do transporte por carro individual numa cidade como São Paulo,
em que não cabe nem mais uma agulha. Um governo que não se cansa de arrotar grandeza
sobre a quantidade de veiculos produzidos por ano. É um absurdo utilizar os
números da produção de veiculos como indicador de prosperidade econômica. Isso
é uma proposta podre, uma visão tacanha, um projeto burro de país.
VOCÊ ESTÁ DIZENDO
QUE MUITOS APELOS AO CONSUMO VÊM DO PRÓPRIO GOVERNO. MAS TAMBÉM HÁ UM APELO
MUITO GRANDE QUE VEM DO MERCADO. COMO VOCÊ AVALIA ISSO?
O Brasil é um país
capitalista periférico. O capitalismo industrial-financeiro é considerado por
quase todo mundo hoje como uma evidência necessária, o modo incontornável de um
sistema social sobreviver no mundo de hoje. Entendo, ao contrário de alguns
companheiros de viagem, que o capitalismo sustentável é uma contradição em
termos, e que se nossa presente forma de vida econômica é realmente necessária,
então logo nossa forma de vida biológica, isto é, a espécie humana, vai-se
mostrar desnecessária. A Terra vai favorecer outras alternativas.
A ideia de
crescimento negativo, ou de objeção ao crescimento, a ética da suficiência são
contraditórias com a lógica do capital. O capitalismo depende do crescimento
contínuo. A ideia manutenção de um determinado patamar de equilíbrio na relação
de troca energética com a natureza não cabe na matriz econômica do capitalismo.
Esse impasse,
queiramos ou não, vai ser “solucionado” pelas condições termodinâmicas do
planeta em um período muito mais curto do que imaginávamos. As pessoas fingem
não saber o que está acontecendo, preferem não pensar no assunto, mas o fato é
que temos que nos preparar para o pior. E o Brasil, ao contrário, está sempre
se preparando para o melhor. O otimismo nacional diante de uma situação
planetária para lá de inquietante é extremamente perigoso, e a aposta de que
vamos nos dar bem dentro do capitalismo é algo ingênua, se é que não é, quem
sabe, desesperada.. O Brasil continua sendo um país periférico, uma plantation
relativamente high tech que abastece de produtos primários o capitalismo
central. Vivemos de exportar nossa terra e nossa água em forma de soja, açúcar,
carne, para os países industrializados – e são eles que dão as cartas,
controlam o mercado. Estamos bem nesse momento, mas de forma alguma em posição
de controlar a economia mundial. Se mudar um pouco para um lado ou para o
outro, o Brasil pode simplesmente perder esse lugar à janela onde está sentado
hoje. Sem falar, é claro, no fato de que estamos vivendo uma crise econômica
mundial que se tornou explosiva em 2008 e está longe de acabar; ninguém sabe
onde ela vai parar. O Brasil, nesse momento da crise, está em uma espécie de
contrafluxo do tsunami, mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente. Essas
coisas têm de ser ditas.
E COMO VOCÊ AVALIA
A RELAÇÃO DESSA REALIDADE MACROPOLÍTICA, MACROECONÔMICA, COM AS REALIDADES DO
BRASIL RURAL, DOS RIBEIRINHOS, DOS INDÍGENAS?
O projeto de Brasil
que tem a presente coalizão governamental sob o comando do PT é um no qual
ribeirinhos, índios, camponeses, quilombolas são vistos como gente atrasada,
retardados socioculturais que devem ser conduzidos para um outro estágio. Isso
é uma concepção tragicamente equivocada. O PT é visceralmente paulista, seu
projeto é uma “paulistanização” do Brasil. Transformar o interior do país numa
fantasia country: muita festa do peão boiadeiro, muito carro de tração nas
quatro, muita música sertaneja, bota, chapéu, rodeio, boi, eucalipto, gaúcho. E
do outro lado cidades gigantescas e impossíveis como São Paulo. O PT vê a
Amazônia brasileira como um lugar a se civilizar, a se domesticar, a se
rentabilizar, a se capitalizar. Esse é o velho bandeirantismo que tomou conta
de vez do projeto nacional, em uma continuidade lamentável entre as geopolítica
da ditadura e a do governo atual. Mudaram as condições políticas formais, mas a
imagem do que é uma civilização brasileira, do que é uma vida que valha a pena
ser vivida, do que é uma sociedade que esteja em sintonia consigo mesma, é
muito, muito parecida. Estamos vendo hoje, numa ironia bem dialética, o governo
comandado por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura realizando um
projeto de sociedade encampado e implementado por essa mesma ditadura:
destruição da Amazônia, mecanização, transgenização e agrotoxificação da
“lavoura”, migração induzida para as cidades. Por trás de tudo, uma certa ideia
de Brasil que o vê, no início do século XXI, como se ele devesse ser o que os
Estados Unidos foram no século XX. A imagem que o Brasil tem de si mesmo é, sob
vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywood
dos anos 50 – muito carro, muita autoestrada, muita geladeira, muita televisão,
todo mundo feliz. Quem pagava por tudo isso éramos, entre outros, nós. (Quem
nos pagará, agora? A África, mais uma vez? O Haiti? A Bolivia?). Isso sem
falarmos na massa de infelicidade bruta gerada por esse modo de vida para seus
beneficiários mesmo.
É isso que vejo, uma
tristeza: cinco séculos de abominação continuam aí. Sarney é um capitão
hereditário, como os que vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos
índios. O nosso governo dito de esquerda governa com a permissão da oligarquia
e dos jagunços destas para governar, ou seja, pode fazer várias coisas desde
que a parte do leão continue com ela. Toda vez que o governo ensaia alguma
medida que ameace isso,o congresso, eleito sabe-se como, breca, a imprensa
derruba, o PMDB sabota.
Há uma série de
impasses para os quais não vejo saída, não vejo como sair por dentro do jogo
político tradicional, com as presentes regras – vejo mais como sendo possível
pelo lado do movimento social. Este está desmobilizado; se não está, o que mais
se ouve é que ele está. Mas se não for por via do movimento social, vamos
continuar vivendo nesse paraíso subjuntivo, aquele em que um dia tudo vai ficar
ótimo. O Brasil é um país dominado politicamente por grandes proprietários e
grandes empreiteiros, que não só nunca fez sua reforma agrária, como onde se
diz que já não é mais preciso fazê-la.
VOCÊ ACHA QUE AS
COISAS VÃO COMEÇAR A MUDAR QUANDO CHEGAREM A UM LIMITE?
A crise econômica
mundial vai provavelmente pegar o Brasil no contrapé em algum momento próximo.
Mas o que vai acontecer com certeza é que o mundo todo vai passar por uma
transição ecológica, climática e demográfica muito intensa nos próximos 50
anos, com epidemias, fomes, secas, desastres, guerras, invasões. Estamos vendo
as condições climáticas mudarem muito mais aceleradamente do que imaginávamos,
e é grande a possibilidade de catástrofes, de quebras de safras, de crises de
alimentos. Por ora, hoje, isso está até beneficiando o Brasil. Mas um dia a
conta vai chegar. Os climatologistas, os geofísicos, os biólogos e os ecólogos
estão profundamente pessimistas quanto ao ritmo, as causas e as consequências
da transformação das condições ambientais em que se desenvolve hoje a vida da
espécie. Porque haveria eu de estar otimista?
Penso que é preciso
insistir que é possível ser feliz sem se deixar hipnotizar por esse frenesi de
consumo que a mídia nos impõe. Não sou contra o crescimento econômico no
Brasil, não sou idiota a ponto de achar que tudo se resolveria distribuindo a
grana do Eike Batista entre os camponeses do semi-árido nordestino ou cortando
os subsídios aos clãs político-mafiosos que governam o país. Não que isso não
fosse uma boa ideia. Mas sou contra, isso sim, o crescimento da “economia”
mundial, e sou a favor de uma redistribuição das taxas de crescimento. Sou
também obviamente a favor de que todos possam comprar uma geladeira, e, por que
não, uma televisão — mas sou a favor de que isso envolva a máxima implementação
das tecnologias solar e eólica. E teria imenso prazer em parar de andar de
carro se pudéssemos trocar esse meio absurdo de transporte por soluções mais
inteligentes.
E COMO VOCÊ VÊ O
JOVEM NESSE CONTEXTO?
É muito difícil falar de uma
geração à qual não se pertence. Na década de 60 tínhamos ideias confusas mas
ideais claros, achávamos que podíamos mudar o mundo, e sabíamos que tipo de
mundo queríamos. Acho que, no geral, os horizontes utópicos se retraíram
enormemente.
ALGUM MOVIMENTO RECENTE NO
BRASIL OU NO MUNDO CHAMOU SUA ATENÇÃO?
No Brasil, a aceleração da
difusão do que podemos chamar de cultura agro-sulista, tanto à direita como à
esquerda, pelo interior do país. Vejo isso como a
consumação do projeto de branqueamento da nacionalidade, esse modo muito
peculiar da elite dominante acertar suas contas com o próprio passado
(passado?) escravista.
Outra mudança
importante foi a consolidação de uma cultura popular ligada ao movimento
evangélico. O evangelismo das igrejas universais do reino de Deus e congêneres
está evidentemente associado à religião do consumo, aliás.
E COMO VOCÊ VÊ O
SURGIMENTO DAS REDES SOCIAIS, NESSE CONTEXTO?
Isso é uma das
poucas coisas com que estou bastante otimista: o relativo e progressivo
enfraquecimento do controle total das mídias por cinco ou seis grandes grupos.
Esse enfraquecimento está acontecendo com a proliferação das redes sociais, que
são a grande novidade na sociedade brasileira e que estão contribuindo para
fazer circular um tipo de informação que não tinha trânsito na imprensa
oficial, e permitindo formas de mobilização antes impossíveis. Há movimentos
inteiramente produzidos dentro das redes sociais, como a marcha contra a
homofobia, o churrasco da “gente diferenciada” em Higienópolis, os vários
movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas florestas. As redes são nossa
saída de emergência para a aliança mortal entre governo e mídia. São um fator
de desestabilização, no melhor sentido da palavra, do arranjo de poder
dominante. Se alguma grande mudança no cenário político brasileiro vier a acontecer,
creio que vai passar por essa mobilização das redes.
Por isso se
intensificam as tentativas de controlar essas redes por parte dos poderes
constituídos – isso no mundo inteiro. Pelo controle ao acesso ou por
instrumentos vergonhosos, como o “projeto” brasileiro de banda larga, que
começa pelo reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade. Uma
decisão tecnolotica e política antidemocrática e antipopular, equivalente ao
que se faz com a educação: impedir que a população tenha acesso pleno à circulação
cultural. Parece mesmo, às vezes, que há uma conspiração para impedir que os
brasileiros tenham uma educação boa e acesso de qualidade à internet. Essas
coisas vão juntas e têm o mesmo efeito, que é o aumento da inteligência social,
algo que, pelo jeito, é preciso controlar com muito cuidado.
VOCÊ IMAGINA UM NOVO
MODELO POLÍTICO?
Um amigo que
trabalhava no ministério do Meio Ambiente na época de Marina Silva me criticava
dizendo que essa minha conversa de ficar longe do Estado era romântica e absurda,
que tínhamos que tomar o poder, sim. Eu respondia que, se tínhamos de tomar o
poder, era preciso saber manter o poder depois, e era aí que a coisa pegava.
Não tenho um desenho político para o Brasil, não tenho a pretensão de saber o
que é melhor para o povo brasileiro em geral e como um todo. Só posso externar
minhas preocupações e indignações, e palpitar, de verdade, apenas ali onde me
sinto seguro.
Penso, de qualquer
forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a essa altura,
teria – as condições ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver um novo
estilo de civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo
americano e norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar, timidamente que
fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos
na Europa moderna. Mas imagino que, se algum país vai acabar fazendo isso no
mundo, será a China. Verdade que os chineses têm 5000 anos de historia cultural
praticamente continua, e o que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de
dominação europeia e uma triste historia de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo
assim, é indesculpável a falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo
menos das suas elite políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se
inspirarem nas soluções socioculturais que os povos brasileiros historicamente
ofereceram, e de assim articular as condições de uma civilização brasileira
minimamente diferente dos comerciais de TV. Temos de mudar completamente, para
começar, a relação secularmente predatória da sociedade nacional com a
natureza, com a base físico-biológica da própria nacionalidade. E está na hora
de iniciarmos uma relação nova com o consumo, menos ansiosa e mais realista
diante da situação de crise atual. A felicidade tem muitos caminhos.
Entrevista extraída do SITE: outraspalavras http://www.outraspalavras.net/2012/09/20/outros-valores-alem-do-frenesi-de-consumo/