10/18/2015

Arrastar um landau debaixo d’água // Rogério A. Tancredo









O POETA E O LANDAU

Rogério A. Tancredo






DÁDIVAS DE TER UM CARRO

arrasto um Landau debaixo d’água
contra maré na correnteza
não me agarro a mais nada
o vento é meu desafeto
me afoga o quanto pode
o cérebro os intestinos
num câncer que vai metamorfoseando
enferrujando secretamente
mas muito de propósito
pelo amor de Deus
pelos dias Perfeitos
um Landau afogado
vai passando rasteiro
o passeio que homem algum jamais teve
– suave amável mórbido
Landau para doentes
levados para fora do alcance




Entre os lançamentos da ótima safra de livros de poesia dos últimos anos – alimentada por editoras “menores” que vão na contramão do mercado editorial – um chama atenção não só pela força e beleza de seus poemas, mas por seu título, falo do instigante Arrastar um landau debaixo d’água, de Ney Ferraz Paiva, lançado em 2015 pela jovem e corajosa editora Patuá. Conhecido por seus títulos que remetem às suas preferências e influências poéticas como Nave do Nada tirado de um verso de Paulo Plínio Abreu (seu conterrâneo), Arrastar um landau debaixo d’água não foge à regra, fora tirado de um poema do francês Henry Michaux. Não vamos nos deter aqui em falar sobre suas preferências – se o faço é apenas como forma de introdução - e sim do título curioso (assim como Uma faca só lâmina ou O cão sem plumas) que nos remete a pensarmos o atual, ou seja, o contemporâneo. Se destacarmos do nome do livro a palavra que mais chama atenção nos deparamos com a figura do landau, carro outrora luxuoso, cheio de pompa, que hoje não passa de uma “banheira”, “lata velha” emprestando os termos dos apaixonados por carro, ou de artigo de colecionador para embelezar os salões. Tal qual, o poeta não é diferente do famoso carro, que nos dias atuais, segue encarquilhado, sem uso prático, de serventia de pouco valor, a não ser ornar as estantes cheias de livros não lidos. Isso se pensarmos a palavra landau separadamente, e logo fazendo uma analogia com a figurado do poeta, já daria o que falar, imagine se nos debruçarmos sobre o criativo título Arrastar um landau debaixo d’água aí a coisa começa a ficar interessante porque já não estamos falando de figuras obsoletas, como queiram alguns, mas do fazer poético propriamente dito, do “arrastar” para ilustrar esse fazer. 


Todos sabemos que a contemporaneidade se constitui como uma dobra da modernidade por acentuar a dimensão melancólica e desesperada da irmã mais velha. Além disso, podemos notar um afunilamento em relação às exigências profissionais, é uma época marcada pelo pensar prático e objetivo, onde as coisas têm de ter uma função, desconsiderando àquelas que não tem função alguma – como a poesia – mas são o que são e se explicam por si só. Fazer poesia nessa época que não pensa mais o mito como verdade e sim como uma função prática, onde você tem e deve ser o melhor, acaba sendo um grande sacrifício, como matar um leão a cada dia, ou seja, é arrastar um landau debaixo d’água. Quem aceita sacrificar-se assim acaba como um cavaleiro de armadura andando pela cidade cheia de máquinas e arranha-céus. O poeta é o fantasma fora de seu tempo, sob o elmo tem uma visão distorcida e disforme, mais próxima do que chamamos realidade. No poema “A LOUCURA SEM REPOUSO”, título que remete ao sacrifico de escrever, espécie de doença que move o poeta, podemos notar em seus versos como este vê a cidade através do limiar que a razão tenta esconder: [...] a paisagem de uma cidade/ enfermaria a céu aberto/ é feita de carne/ deteriora despedaça separa [...] A cidade, é o palco dos dramas a serem vividos, seus cidadãos vivem sufocados pelas exigências que esta impõe: [...] tosses suores asfixias/ em busca de ar fresco pessoas descem ruas/ mercados rios praças/ uma musculatura louca/ também isso a arte faz/ traz cadáveres à rua/ pra revoar os pássaros do horror 


... 


A arte serve para pensarmos o agora, o que fora dado, imposto, amplia o que a história tenta diminuir. Precisamos voltar a um ponto de partida para recomeçarmos, se é que existe esse ponto. O contemporâneo – neste caso o poeta – é aquele capaz de ver para além do clarão que nos ofusca, é como nos diz Agamben: “o contemporâneo é aquele que percebe o escuro de seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirigi-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo.” Arrastar um landau debaixo d’água é estar fora e dentro do seu tempo. Fora porque ainda se escreve poemas apesar das adversidades e exigências impostas pelos novos tempos, e dentro porque àquele que os escreve é capaz de enxergar os males de sua época. Aliás, o tempo inexoravel, que à tudo corrói e no qual estamos imersos é um tema constante no livro: acende meu cigarro Augusto dos Anjos/ fim de semana fumo a ruína dos anos/ viro duas páginas (sábado & domingo) / não mantenho mais a casa limpa/ não me alimento não verifico o correio/ você se apressa a me oferecer fogo/ fumo pra escamar o dia o beijo a faísca. Para suportar tanta loucura e doença, além da poesia, temos os vícios, que ajudam a seguir adiante, nesses dias difíceis em “IMAGEM DO VELHO POETA QUE SE EXERCITA COM PESO DE PEDRAS DO MUSEU DE OLYMPIA”, espécie de Ode ao cigarro (companheiro fiel do ato de solidão que a escrita exige) o poeta diz: tenho fumado uns cigarros um pouco de/ tabaco faz eu me sentir menos esquisito/ sem cigarros não consigo escrever aquele/ prefácio nem consigo fazer a barba ficar/ bonito tenho uns amigos que sem fumar/ conseguem ser bons poetas em Curitiba/ em Belém não consigo escrever uma linha... 


Debaixo d’água o landau segue falando do peso de se viver o contemporâneo, da luta do poeta para suportar os dias – cheios de angústias - que se repetem incessantemente:  era o rádio sintonizado num som aleijado/ era o rádio mergulhado no vômito no sofá/ era o rádio insaciável embriagado censurado/ era o rádio paralisado por um câncer devastador/ era o rádio indo às montanhas respirar o ar da vida [...] E dentro dele estão todos e niguém, principalmente aqueles que se retiraram para dar voz a outros como Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Ana Cristina C,  Bukowski, Fernando Pessoa, Adília Lopes, Silvia Plath, Anne Sexton, Francesca Woodman, Frank Gehry ... personas que através de sua arte propunham outra coisa, não esta que nos arrasta para um fim desconhecido, nebuloso. Igualmente a eles, Paiva se coloca contra a mesmice contemporânea com uma força poética de rara beleza que questiona, insurge-se contra o presente. Em tempos onde tudo está sujeito a um mercado, cheio de “Escritores” que produzem para agradar a X e a Y, o autor vai contra esse movimento “por uma literatura menor”, para viver submerso na essência da poesia, no subterrâneo da linguagem.       






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