1/17/2012

(Não) Escrever mais








Não escrever – que longo caminho antes de chegar a tal ponto, e isso não é jamais seguro, não é nem uma recompensa nem um castigo, é preciso somente escrever na incerteza e na necessidade. Não escrever, efeito de escrita; como uma marca da passividade, um recurso da desgraça. Quantos esforços para não escrever, para que, escrevendo, eu não escreva, apesar de tudo - e finalmente eu cesse de escrever, no momento último da concessão; não no desespero, mas como o inesperado: o favor do desastre. O desejo não satisfeito e sem satisfação e, entretanto, sem negativo. Nada de negativo em « não escrever », a intensidade sem maestria, sem soberania, a obsessão do totalmente passivo.

Desfalecer sem falta: marca da passividade.

Querer escrever, que absurdo: escrever é a decadência do querer, como a perda do poder, a queda da cadência, o desastre ainda.


Não escrever: a negligência, a incúria não são suficientes para isso; a intensidade de um desejo fora da soberania talvez - uma relação de submersão com o fora. A passividade que permite se manter na familiaridade do desastre.

Ele põe toda sua energia para não escrever, para que, escrevendo, escreva por desfalecimento, na intensidade do desfalecimento.

Que as palavras cessem de ser armas, meios de ação, possibilidades de salvação. Reportar-se ao desconcerto.

Quando escrever, não escrever, é sem importância, então a escrita muda – que ela tenha lugar ou não, é a escrita do desastre.

Não confiemos no fracasso: seria ter a nostalgia do êxito.

Para além da seriedade, há o jogo, mas para além do jogo, procurando aquilo que engana o adversário: o gratuito, ao qual não se pode se esquivar, o casual sob o qual tombo, sempre já tombado.

Ele passa dias e noites no silêncio. É a palavra, isso.













1/10/2012

Derivações de Resenha Sobre o Romance Chove nos Campos de Cahoeira


* Nota escrita após a leitura da Resenha sobre  'Chove nos Campos de Cachoeira', de Dalcídio Jurandir – Por Roberto S. Kahlmeyer-Mertens



Derivações:


A imagem que vem dos campos queimados
   
Por Nilson Oliveira




CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA é um acontecimento que permanece, atraindo cada vez mais para o seu centro, indiferente às erosões do tempo, deflagrando sua própria duração, como se fosse (e talvez o seja) engendrado por uma força extemporânea.
   
É um romance peculiar, cujos personagens são constituídos por uma força diferencial, impregnados de uma “saúde” calcada numa singularidade fértil: rostidade (beatitude segundo Deleuze). Parecem Devir de uma matéria que não cede: uma força em relação permanente com outras forças, da natureza ou do inominável. Personagens-incômodos, transitivos ou prostrados, atravessados por uma sensibilidade na qual a vida pulsa numa possibilidade múltipla (fragilidade/pulsações/acasos/morte). Personagens que, pela página branca do romance, passam causando uma sensação de desassossego.

São personagens tecidos por um intensivo processo de criação/ a verve Dalcidiana / no qual a escrita não cessa de se reinventar, ora na imagem do garoto feridento; ora na silhueta da puta desolada; do doente; da mãe culpada; da velha encrenqueira; da mulher que ri; ou do silêncio daquele que vai morrer.
  
TODOS, mesmos os mais breves, foram traçados de maneira muito expressiva – no sentido das figuras de Oswaldo Goeldi – martelados por uma escrita que arfa, no limite de uma expressão! CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA é também, como todo grande romance, uma proliferação imagética, mas não no sentido de um plano sequencial, pois as imagens de CHOVE se erigem de forma diferenciada: são imagens nubladas; telúricas; aterradoras; cinzentas, singelas; imagens que, pelo seu vigor polissêmico, inventam uma paisagem própria, imagem-arquipélago: o Marajó, um mundo no qual a vida ferve na sua dimensão (estética e micropolítica) mais intensa.

 
Trata-se de um romance que cheira, que tem cor, no qual a bios (βιος) dilata. É impossível sair do Romance sem encontrar a Doença, o Riso, o Sexo, A Morte, o Cômico, ou seja: Eutanázio, Irene, D. Amália, Felícia, Major Alberto, D. Gemi, entre outros. Por tanto, é impossível entrar em CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA e não ter uma experiência de leitura, de encontros.

Nilson Oliveira é editor da revista Polichinello



  

1/06/2012

POEMAS de - Louis-René des Forêts

















R

É mais que tempo de voltar ao sol

O fogo do seu álcool purifica o ar

Bebemo-lo em longos tragos para esquecer aquela

Que veio na noite rasgar o coração

Dizer adeus com a mão infantil,

Uma candeia às vezes no ar

Que sopra como não querendo

Mas sem se demorar mais

Nem que a vejamos desaparecer.




É ela ainda sorrindo de pé

Por entre os ásteres e as rosas

Na plena luz da sua graça

Orgulhosa como sempre foi

Só se deixa ver em sonhos

Demasiado bela para adormecer a dor

Com tantos falsos regressos

Que atestam a sua ausência.





Não, ela está mesmo ali,

Que importa se o sono nos engana

É preciso queimar os olhos,

Aguentar este doce sofrimento,

Abalar, perder a razão,

Destruir o que viria a destruir

A aparição maravilhosa

Acolhida como quem treme

À vista de um rosto apanhado na morte

No último brilho da sua flor.





Está ali para velar por nós

Que só dormimos para vê-la

Quando por vergonha, com medo das nossas lágrimas

De dia só sonhamos em fugir lá para fora

Sem deixar de espreitar também ali o seu regresso

E é em busca de um mau refúgio

Embrutecer sob o sol que queima.





Fingir ignorar as leis da natureza,

Reencarnar em sonhos a forma abolida,

Atribuir à miragem as virtudes de um milagre

Será isto vencer a morte?

Quando muito duvidar de que ela nos separa,

De que seja um facto o facto de não estar em parte alguma.




Quebra irreparável. Dela tomemos nota.

Eis-nos desolados ao longo da vida,

A nossa memória aberta como um ferimento,

É nela que a veremos ainda,

Mas cativa da sua imagem, mas reclusa

Nesta obscuridade devoradora

Onde, para ligar o seu infortúnio ao nosso,

Sonhavamos ir perder-nos juntos

De amarras todas cortadas, e talvez alegres

Fora a soleira menos difícil de transpor,

Ser um só com ela na morte

Escolhida como a forma perfeita do silêncio.





A unir-se ao nada, o nada gera nada.

Se é preciso viver desperto para as coisas vivas,

Antes temer que a mágoa se apague

Assim como a memória enfraquece por fim

Deixar de sofrer por deixar de vê-la

Vir ter conosco na noite favorável aos encontros

Seria como deixar o coração empobrecer

Por duas vezes devastado e deserto.





A sentença que pesa, uma vez que liberta,

Que se aplica aos melhores como aos piores,

Mesmo que a aplicação se faça lenta,

Deve inclinar à paz os nossos espíritos

Cuidadosos em resolver-se sem perder direitos,

Sendo qualquer queixa ato de contrição

Para os traficantes que especulam sobre o medo

Do qual dirão que foi uma graça do céu

Ó impostura dos tiranos da infância!

Nenhum desafio, mas que um porte altivo lhes estrague

No momento de abordar a prova suprema

As manhas com que querem dispor do nosso fim.





Retira-te sabiamente do mesmo modo que abandona o palco

Um velho ator já sem crédito. É esta a lei,

Tens de te submeter, dizer adeus ao que deixas,

Penetrar com passo firme nessa espessura obscura

Para onde é coisa estranha o ter de voltar.

Não te insurjas, não te aflijas com a tua sorte,

Não tremas de angústia perante o limiar

Que estás em vias de tão mal transpor,

Aproxima-te do não ser sem compaixão para contigo

E como homem de boa fé, saúda-a esta vida

Que perdes com a sua carga de penas e desejos,

O cenário demasiado belo para o pouco tempo que ali se representa

A esbracejar em cima do palco, a esbanjar palavras inúteis

Tal e qual um cabotino a quem o cair do pano cala o bico.





Aqui o atrativo e o pavor vão de mãos dadas.

Como por causa do seu igual poder

Nenhum dos dois supera o outro,

A não ser que vejamos claro até ao desenlace

Saberemos nós quem ganha no final?





O erro, dar ouvidos aos convites sonsos

De um inimigo que finge querer curar e nos mata.

O lobo encolhido na parte mais estreita do covil,

Velho lobo, enquanto tem forças para se defender,

Avança e recua mostrando os dentes.





Haverá pior maneira de aliviar os desgostos

Que perder o desejo de desejar o que passa?

Para quê tanta pressa em desprender-se,

Fechar os olhos aos bens oferecidos e visíveis,

A tudo o que a alegria do sol deita

Sobre o mar, as folhas, um resto desconhecido

Que se cruza no fervor do seu tempo jovem?

É como dar-se por vencido antes da partida

Em vez de jogar abertamente cartas na mesa

Até à última, e rir de ter perdido.


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Sobre os poemas de Louis-René des Forêts

Por Maurice Blanchot

Contentar-me-ei (palavra desde já inadmissível pelo que sugere de satisfação) com procurar ouvir de perto o texto de Lyotard intitulado «O sobrevivente», e ao mesmo tempo ir meditando sobre os poemas publicados e assinados por Louis-René des Forêts.

Onde fica o começo? Será alguém ou algo que começa?

Temos a resposta de Hegel: a morte é a vida do espírito. «O espírito não sobrevive à morte, ele é o render[1] da vida imediata…o espírito vive enquanto morto para a instância que ele mesmo FOI… A formação anterior já não está viva.» Donde resulta, e é muito importante, que: «A entidade que fui já não pode dizer eu». «Eu» já só pode dizer-se ENTÃO, na terceira pessoa. É assim que Hegel chega a «nós» (nós, quer dizer eu então e eu agora). Desta feita, nada se perde. A morte é sempre uma bela morte, pois que «retida» neste «nós» que formam em conjunto o eu então e o eu agora.

Mas será que verdadeiramente nada se perdeu? O que necessariamente se perdeu foi a presença «viva» ENTÃO do que AGORA é. A contingência está perdida, e podemos duvidar da presença do «então». E o próprio tempo, que se reduz ao render de um modo por outro modo, está perdido. Certamente que o voo da coruja significa um começo que garante a sobrevivência do todo, a transmissão do todo, excepto o «vivo» e aquilo que foi então presença tornada ausência ou que sempre foi ausência. Não podemos escapar à tristeza da coruja, tristeza que o próprio Hegel foi o primeiro a sentir e da qual fez o seu luto. Mas será possível o luto? Por culpa ou graças a Hegel, pressentimos que aquilo que no presente parece tão vivo precisou necessariamente do já morto. A isto chama Lyotard melancolia e outros chamam «niilismo».

Mas se o começo não é o fim, se pensamos o nascimento como uma morte, e a morte como um nascimento sem «verdade», porque razão há um duplo não-ser? Porque não-ser como nascimento e não-ser como morte?

É um enigma, e o enigma do começo revela que HÁ uma relação com o que não tem relação. Nascimento que não é só melancolia, mas infinitamente mais doloroso do que a morte.


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1/04/2012

Tempo e loucura – Peter Pál Pelbart


Pelhttp://www.cpflcultura.com.br/site/2009/10/16/integra-tempo-e-loucura-peter-pal-pelbart/comment-page-1/#comment-5623bart
 
Contra uma concepção de tempo “humana, demasiado humana”, linear, homogênea, cumulativa, apaziguada, a filosofia de Deleuze evoca um tempo plural, paradoxal, vertiginoso, intempestivo. Com efeito, a partir de suas fontes na filosofia, na literatura, até no cinema, Deleuze aponta para um “enlouquecimento do tempo” que tangencia, curiosamente, o tempo da loucura, tal como várias abordagens clínicas o descrevem. Essa intersecção não é acidental. Em todo caso, ela ajudará a rastrear as implicações políticas, subjetivas e estéticas da concepção temporal que Deleuze postulou.