5/25/2013

A ARTE [DA REAPARIÇÃO FOTOGRAFIAS] DE WAGNER ALMEIDA








A arte da reaparição nas fotografias de Wagner Almeida                              
por Marly Silva         




O sacrifício de Abraão - Caravaggio



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Por que se grita tanto no Rock? Essa pergunta ocorreu ao jovem filósofo Charles Feitosa que, fascinado pelo grito na arte, perpetrado desde o célebre quadro de Eduard Munch (1893), procurou nos dar uma resposta. Dá-la ao público, pois o filósofo ligado no mundo sabe que o que lhe ocorre, muitas vezes está em milhares de outras cabeças, no caso: amantes, desafetos ou apenas curiosos do Rock, mas só os filósofos têm tempo, paciência e ferramentas conceituais para aventurar-se nessa procura do aparentemente prosaico, sem valor. Singela é a sua resposta. O grito aparece na arte porque é expressão da condição humana, ou melhor, é um meio de expressar variadas emoções: prazer, felicidade, revolta, dor, horror, “sensação de impotência, quando não se acredita em mais nada, ou pior, só se acredita no nada”. Agora, como o grito, tido pelos antigos comocoisa feia”, rompeu esta barreira (estética) e entrou para o campo artístico, é uma outra história. Mas na arte musical, não só os roqueiros gritam!  Elis Regina também gritava escancaradamente nos Festivais da Canção dos anos 1960, expressando um misto de rebeldia, provocação e êxtase. Num show da banda Iron Maiden, no qual o vocalista incitava a plateia do Rock in Rio com o refrão: Scream for me, Brazil! (grite por mim, Brasil), nosso filósofo e mais dezenas de milhares de outras pessoas gritavam juntos “meio sem saber por que, mas felizes em se esgoelar até perder o fôlego”.  Coisa de jovem, ora bolas!  Situação oposta é aquela que encontramos na série de fotos em exposição do jovem repórter fotográfico Wagner Almeida. No lugar do grito harmônico ou hipnotizante do rock, o silêncio fúnebre de corpos silenciados a bala, executados em lugar ermo, abandonado, onde impera a lei do silêncio. Se houve gritos durante o sinistro não sabemos, nem as fotos revelam, mas podemos imaginá-los e ouvi-los como um eco que ressoa no grande salão da “Casa das Onze Janelas”, tão fortes são as imagens de Wagner, o que lhe valeu uma premiação no IV Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia. O silêncio dos corpos tombados projeta o grito não só dos que foram executados, mas também dos que testemunharam e sobreviveram (sabe lá até quando, devem se indagar) às perseguições, às chacinas, às “batidas”, às emboscadas, aos tiroteios, às balas perdidas, às invasões arbitrárias e violentas de domicílios, aos aprisionamentos recorrentes dia após dia. Portanto, a paz que temos aí é a paz dos cemitérios...

Nas fotos de Wagner, um enigma: corpos tatuados com imagens de santos católicos ao lado dos códigos de uma gramática violenta.  O que significa essa relação aparentemente contraditória? Ele tenta decifrá-la. É difícil... Compartilho sua inquietação e me atrevo a uma aproximação possível no exame da relação que une a violência e o sagrado no contexto social vivido por jovens da periferia envolvidos em conflitos violentos. É um desafio que a própria antropologia religiosa teve dificuldades em responder satisfatoriamente até hoje.

Livrai-nos de todo o mal”, título que dá nome à série fotográfica premiada, constitui uma crônica da morte anunciada e consumada que nos instiga a pensar os porquês do crescimento desta violência destrutiva que paradoxalmente é convertida em objeto publicitário (“chicote neles” é uma das peças que nos remete ao anacronismo dos castigos aplicados aos escravos), vendida como se vende bens de consumo duráveis, a exemplo dos “cadernos de policia” e dos programas de “cobertura policial” (“Metendo bronca” é o mais sinistro) patrocinados por supermercados, cervejarias e até pela Prefeitura Municipal de Belém; será isso o significado do terceiro “S” da tríplice promessa de campanha do alcaide?  Parece-nos que vigora um pacto suprapartidário de exposição sistemática e agressiva do jovem pobre envolvido na economia dos  negócios ilícitos onde a ausência de instâncias estatais regulatórias encontra na violência interpessoal e grupal a forma de resolução dos conflitos. Essa verdade levou o sociólogo Fernando Henrique Cardoso a engajar-se na luta pela descriminalização da maconha que ele como presidente não conseguiu emplacar, ao contrário do nosso vizinho, o Uruguai de José Alberto Mujica Cordano. Por outro lado, são tantos os casos revoltantes de violação de direitos de simples suspeitos, detidos e inocentes, que já deveriam ter levado o Ministério Público Estadual a tomar providências contra o uso abusivo do poder policial e midiático que fere direitos constitucionais e universais da pessoa humana. Exemplo inacreditável é o caso recente de uma mãe moradora do bairro do Guamá que, transtornada pela morte súbita da filha, é tida como suspeita de tê-la assassinado; é presa, algemada, escoltada até a delegacia, filmada, fotografada, e constrangida a responder ao vivo a uma repórter por um crime que não existiu; tenta-se frente às câmaras arrancar alguma confissão da pobre mulher! Quanta sensibilidade jornalística... Polícia e imprensa parecem atuar como cúmplices, construindo um cenário que beira a ficção. Além disso, tais programas ocupam um tempo extraordinário na programação local seguindo uma lógica banal: se a tragédia humana dá ibope, atrai uma multidão de curiosos, então, por que não explorá-la convertendo-a em “currículo áudio visual” com patrocínio do mercado e assim, incitá-la mais e mais sob o aparente pretexto de combatê-la?  Afinal, é certo que o resultado aparecerá no próximo sufrágio. O império desta razão cínica destrói, antes mesmo que nasça, qualquer possibilidade de instituição de uma ética do bem estar social comum na cidade, de onde poderia advir a esperança de uma condição de segurança pública que hoje não passa de miragem.   Jean-Pierre Dupuy nos ensina, “se nos esforçamos sempre em aumentar a eficácia dos meios violentos para conter a violência, mais inatingível ele (o reino do amor) fica”.  A história do século XX nós dá exemplos emblemáticos da verdade contida nestas palavras. Só os cínicos não vêem, porque a estupidez e a hipocrisia os cegou.  

A igreja, o crime organizado e o braço armado do Estado (segurança pública) são instituições poderosas que compõem a vida e o imaginário do jovem da periferia.  Num sermão, ele ouve que durante mais de dois mil anos os profetas repetiram: Deus não quer sacrifícios. Na Bíblia, ele lê: não acreditem que eu tenha vindo trazer a paz sobre a terra: eu não vim vos trazer a paz e sim a espada (Mt. 10:34). Num lixão de papéis recicláveis, ele encontra uma reprodução da tela de Caravaggio baseada no texto bíblico em que Deus ordena Abraão (com a faca em punho) a sacrificar o próprio filho e o anjo lhe oferece a ovelha para livrar o filho da imolação pelo pai. Como ele processa todas essas falas e imagens, fragmentadas e contraditórias? Quem vai lhe explicar a exegese do texto sagrado e de como a vingança e os rituais de sacrifícios foram historicamente transformados em tribunal do júri e no sistema penal que temos hoje? O jovem pobre nasce excluído das possibilidades de entendimento da cultura em que vive. Além disso, está assujeitado a estes poderes arbitrários, marcados por contradições e ambiguidades e tem de conviver com eles como alma aprisionada em múltiplos conflitos e violações cada vez mais destrutivas, numa espécie de “campo de concentração a céu aberto” (como bem define o sociólogo Edson Passetti), já em idade muito precoce, quando ainda não consegue alcançar o discernimento da miséria de sua condição social. E quando o alcança, se rebela ainda mais, e ao rebelar-se, se expõe às agressividades da repressão disciplinar e aos dispositivos da violência simbólica, acionados em viva voz como um teatro do absurdo nas telas da TV com as câmaras em close penetrando a retina dos seus olhos em corpos acuados. Na condição de professora, conheci muitos que encontraram uma rota de fuga e resistência ao meio adverso e árido onde nasceram, mas muitos milhares de outros mantêm-se na sujeição e servidão. Portanto, não espere gentilezas quando um deles lhe anunciar um assalto na janela do seu carrão 4x4 com uma arma que pode ser até de brinquedo, só para “dar um susto” (jargão que compõe o repertório da cultura da violência e que circula em todas as classes sociais). Eles estão ali cumprindo ordens superiores, seja lá de onde for. Suas vidas são nervosas e impacientes desde quando nascem, numa cidade que lhes nega moradia e dignidade, mesmo em plena era do “Minha Casa Minha Vida”, o que denuncia a irresponsabilidade criminosa dos poderes públicos municipais em Belém. Poderes que também se mostram incompetentes para regulamentar leis que há muito vigoram em outras cidades, como a outorga onerosa, que obriga que parte da riqueza advinda do boom da indústria da construção dos condomínios de luxo, shoppings e espigões em geral se constitua em fundos públicos destinados à construção de equipamentos urbanos como centros culturais, teatros, bibliotecas, escolas de formação, laboratórios-oficina de arquitetura para soluções de habitação popular com conforto térmico nos bairros da periferia tropical. Por que a periferia não pode ser palco da filosofia, das artes e de uma economia cultural com geração de empregos?  Não é dela que sai o operariado construtor de todas as riquezas arquitetônicas e a empregada doméstica que limpa a casa das madames?  Por que filho de operário e empregada doméstica teriam de seguir o mesmo? Por que não pode ser filósofo, dramaturgo, arquiteto?  Porque “artista” ele já é, na arte de sobrevivência no deserto cultural onde se impõe a lei do mais forte. Que venham outras premiações para o Wagner Almeida. Quem sabe tomadas instigantes de um show do Emicida nos bairros pobres da periferia de Belém onde a rapaziada possa cantar e gritar como deve ser: feliz da vida! com música de qualidade feita  pensando nela, para  ela.


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A série de fotos Livrai-nos de todo o mal que compõe o IV Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia pode ser vista até amanhã 26 (domingo), na Casa das Onze Janelas, no horário das 10:00 às 14:00 horas. 

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Marly Silva. Socióloga, professora adjunta da UFPA. Faz um doutorado na área de sociologia da cidade brasileira na PUC-SP.









5/23/2013

PHILIPPE LACOUE-LABARTHE │ o nascimento é a morte




"A experiência de Ulisses não é ela própria uma mera navegação; nem mesmo o furor do retorno. Ela culmina na travessia da morte, a descida aos infernos – um topos obrigatório, doravante, para toda grande literatura (ocidental), de Virgílio e Lucano a Dante ou a Joyce, e a Broch...,"






PHILIPPE LACOUE-LABARTHE (1940 -2007) crítico, filósofo, escritor francês.
Escreveu, pesquisou, traduziu. Sua linha de interesse passa pelas obras de  Heidegger, Derrida, Lacan, Paul Celan, Nietzsche, Hölderlin, Benjamin, Blanchot.
Ensinou por mais de trinta anos na Universidade Marc Bloch de Estrasburgo.


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extraído do livro 
DUAS PAIXÕES: (ARTAUD, PASOLINI)
Tradução: Bruno Duarte
Editora Vendaval 
















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5/20/2013

Jean-Luc Nancy │ Philippe Lacoue-Labarthe: núpcias do pensamento.



Philippe Lacoue-Labarthe

Jean-Luc Nancy




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Cada vez mais com ele. Seduzido por sua irresistível maneira de embaralhar as coisas dadas – sempre em fuga da banalidade – na direção do outro do mundo. Jean-Luc Nancy: uma vivência fértil de estrangereidades – desdobrada em vários perceptos e afectos: esfera errante do pensamento. Nancy: vontade de vontade  irrevogavelmente escafandrista, estrangeiro, intruso.


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Há por certo uma elegância no pensamento, situação limite, adjeção entre literatura, filosofia [e algo mais]. Pensamento a deriva [barco ébrio], na direção do fundo mais fundo do horizonte. Philippe Lacoue-Labarthe: da sua escrita espira um aroma absolutamente próprio, depurado pelo aberto, ou melhor, refinado pelas forças que jogam entre as ondas e o vento. Lacoue: núpcias do pensamento.

Nilson Oliveira



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FILOSOFIA, LITERATURA: DEMANDA

JEAN-LUC NANCY


Cada uma pede a verdade. Cada uma pede também a verdade da outra, de duas maneiras: cada uma interroga a outra sobre a sua verdade, cada uma detém a verdade da outra.


A verdade: a coisa mesma, o ser ou o outro, o existente, o aparecer, o sentido. Cada uma pede tudo isso junto: pede que tudo isso seja apresentado como tal.



Mas cada uma entende diferentemente esse « como tal ». Filosofia quer que a coisa como coisa seja coisa que por si se indique, se designe e ao mesmo tempo retire seu ser-coisa aquém de toda significação. Também a coisa como tal é aqui coisa alguma: coisa da coisidade de todas as coisas, nada. Do mesmo modo o sentido como tal é o sentido que se faz conhecer enquanto sentido – por exemplo, não uma impressão luminosa, mas uma impressão tal que ela se clareie a si mesma como « impressão luminosa ». E, por esse ato, ela se obscurece. Não estamos mais ocupados em ver, mas em ver a visão. O sentido em geral será sentido verdadeiro lá onde ele poderá mostrar que ele é o sentido, e assim cessar de reenviar a outro, outros: o que, no entanto, é o seu ser mesmo de sentido. Também a verdade é aqui interrupção do sentido.



Literatura entende « como tal » enquanto comparação, figura, imagem, volta de apresentação. Por exemplo: vejamos um homem como « Leopold Bloom ». Ele é igual a esse homem, é composto por seus traços. E, antes de tudo, por seu nome. Depois por sua história, pois não há nome sem história. Então Leopold Bloom mostra o homem como tal, quer dizer, como Leopold Bloom, quer dizer, como o homem que tem um nome e uma história, a sua história. Nessa conta, a operação não pode parar: a verdade do homem está em Bloom, cuja verdade está no homem cuja verdade está no nome e na história de Bloom. Aqui a verdade é a impossibilidade de interromper o sentido.



No entanto, é o inverso que vemos da maneira mais chocante: Filosofia não termina de prosseguir, continuar, retomar, tirar as consequências; não pode jamais parar (mesmo e, sobretudo, quando é « o fim da filosofia »). Literatura, ao contrário, interrompe: corta o relato [récit] em alguma parte, sempre arbitrariamente, seja no início ou no fim.



Filosofia pede incessantemente que a verdade se cumpra. Literatura pede que a verdade prossiga. Mas cada uma pede a outra, pois o cumprimento da primeira seria o relato [récit] integral da segunda e o prosseguimento infinito da segunda seria o cumprimento da primeira.


Se isso tem lugar, não há mais pedido. Então não se fala de literatura e de filosofia: fala-se de sabedoria e de mito. É um outro mundo, um mundo ao inverso do mundo do pedido de verdade.

Sabedoria cumpre dizendo – por exemplo, dizendo « faça isto, não faça isso ». E para isso ela afirma e ordena, não pede nada. Nem mesmo ser reconhecida como sábia, pois ela também diz « não creia que a Sabedoria seja sábia: cabe a você sê-lo ».

Mito dá o relato [récit] inteiro, desde o início até a mim (por exemplo, Mr. Bloom). Ao mesmo tempo não há nada a acrescentar, nem no antes nem no depois, e o relato [récit] é interminável pois ele não cessa de se recitar [réciter]. Nada a pedir aí também.

Filosofia e Literatura são Sabedoria e Mitos entrados em pedido. Portanto, tendo-se eles mesmos se perdido um e o outro ou então perdido um ao outro. Uma perda – ou então um desdobramento.

Sabedoria desdobra até o fim a sua verdade segundo a qual não há de modo algum nem sabedoria nem via. Ela inaugura a via que não leva a lugar nenhum, mas que sempre se pede novamente como via: « método ».

Mito desdobra até o fim o interminável de seu relato [récit] e sua verdade segundo a qual, bem longe de se terminar na interminável recitação, ele se intermina na terminação de cada relato [récit]. Uma vez contada, a história de Ulisses se abre novamente pelo seu fim. Haverá novas errâncias.

Errância e método, método de errância, errância metódica, via que não é traçada, mas que é o traço ele mesmo de um passo em movimento de avançar, em movimento de passar, apenas em movimento de despertar para si mesmo a possibilidade de uma direção, de um destino, de um desejo.

Apenas fazendo conhecer seu desejo, que ele mesmo se inventa a cada passo, sendo, no entanto, apenas o desejo do passo ele mesmo. 

Pedido de passagem: eu gostaria de ir por aí, em direção àquilo que está do outro lado daquele onde me encontro. Gostaria de sair daqui e que lá longe se tornasse aqui para mim, de onde eu ainda partiria. Gostaria de passar o rio, a montanha, o mar. Gostaria de passar a mim mesmo. Gostaria de me passar sem mim.

Peço isso polidamente, sem violência, mas não se enganem com isso: « eu gostaria » significa « eu quero », é a vontade mesma. É vontade de vontade: pedido de eternidade, eterno retorno do mesmo passo cujo rastro fugaz é a atestação disto: que há lá alguém que passa.

Pedimos apenas isso. Esqueçamos « filosofia, literatura, mito, sabedoria », esqueçamos saberes e crenças. Há apenas esse pedido: eu quero passar. Não quero ser, nem conhecer, mas passar e me sentir passar. Ou você – é igual.  

Passar – o limite, forçosamente. Passar o limite do interrompido e do ininterrupto. Nem acabamento, nem inacabamento. Nem conclusão, nem suspensão. Mas a passagem que se pede.



P. S.: Preciso deixar aqui todo o meu reconhecimento a Ginette Michaud, que assegurou o estabelecimento dos textos franceses e a composição mesma do volume com um cuidado incomparável.









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5/02/2013

Lautréamont │ Gaston Bachelard │ Edições Ricochete








Lautréamont │ Gaston Bachelard  Edições Ricochete
Tradução: Fábio Ferreira de Almeida





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LANÇAMENTO


VIII COLÓQUIO LITERATURA E FILOSOFIA


DE 15 A 17 DE MAIO │ GOIÂNIA













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5/01/2013

poemas lidos durante a apresentação de Ney Ferraz Paiva





Ney Ferraz Paiva - Durante sua apresentação na XVII Feira Pan-Amazônica do livro │ 2013





Ney Ferraz Paiva - Autografando na XVII Feira Pan-Amazônica do livro │ 2013






poemas lidos durante a apresentação de Ney Ferraz Paiva
na XVII Feira Pan-Amazônica do livro │ 2013


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EU QUERIA ESTAR COM VOCÊS HOJE




nº 23 da fitzroy road

a porta era estreita negra
nem mesmo você a pode atravessar
chuva neve tempestade
o mal residia ali
antigo cão da família
depois de tudo você voltaria
rara intuição da surpresa
desperta de todos os cansaços
em sua torção de sereia





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tive um caso com anne sexton


tive um caso com Anne Sexton
acho que foi o período da vida
 em que ela menos foi triste
talvez mesmo estivesse alegre
experimentasse rir fumar falar
 ao mesmo tempo
um esforço do amor
a que se entregou comigo
depois foi preciso escapar
de volta à poesia –
corpo espetacularmente nu
marcado pela vida
barriga & crânio abertos




٭



imagens pesam mais do que o mar
alessandra negrinni como a vi em seus quarenta anos


ela não ri: move-se esquiva de um lado a outro
anda a casa como se fizesse fotos
pés trocados olhar confuso
faz pose pra ele pra o deter de quem?
fisicamente opostos & partidos
o mundo vira de ponta-cabeça
ele a olha com expressão vazia
voz baixa fala devagar
diz ter um problema enorme
precisa urgentemente viajar
ir ao mar ao fogo às nuvens
“ou quem sabe de um bom xampu anticaspa”
sempre diz isso pra fazer as pessoas rirem
ela não ri ele pergunta “por que você não ri?”
desde pequena que não sabe
rir nem dos pequenos dramas
“ria se alguém está sofrendo
perto de você – por causa de você”
pra ela o inferno é isso
ele nada sabe a respeito
não presta muita atenção
suspensa no ar sem deixar
as coisas como exatamente são
ela faz outra pose transfigurada
espera detê-lo a seu próprio enigma




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livro de que não me livro
a teus pés ana cristina cesar

ainda é o livro dela
passados tantos anos
podem ver a boa forma
não há nada enrugado
se viro a página jorra vida
espontaneidade do instantâneo
de algum lugar ela retorna
passo alado estonteante
ainda o ar de desafio no rosto
irmã de um lado mulher fatal do outro
reversível inversa à beira do silêncio




٭




eu queria estar com vocês hoje

ganhei coragem pra dizer a ela
 não gosto de Cindy Sherman
prefiro Otto Stupakoff ou Larry Clarck
por uma    razão bem simples
o mundo do homem em geral
tem menos constrangimentos
eles se dizem homens  & são
 o que anelam ser
mulheres se põem a discutir
 personagens a que se mesclam
auto-incluindo interioridades
dramas cenas de todo tipo
 brutos disfarces entre nós

eu prefiro Francesca Woodman
revoluteando o corpo cada vez
 mais depressa
morta na sala: simples fácil alegre
ela se aproxima faz cintilar a cena
por danças palavras em conexão
parece querer estar comigo hoje
arfa precipita-se contra a parede
tenta vencer pela velocidade
 a dor

vê-se a câmera mexer – tensão dos
 corpos à maneira do teatro de Artaud
                                                 
depois dela nenhuma mulher pode
 dizer “eu sou fotógrafa”
sem conhecer a bílis &
 os rumores do gesto
sua espiral muito louca

sem aspirar ser cinema
sem soletrar literatura




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poesia completa – com quem anda o poeta

e deslocamentos doem
D.H. Lawrence

tudo errado desde o começo
travessia assente em fragmentos
acasos    fissuras    interditos
tempo de embebedar cavalos
ganhar a vida com livros
objeto incerto de design
talvez eu venda sapatos
respire ciclópicos rastros
a cara enfiada em botinas
calçar a palavra não voltar atrás












ney ferraz paiva
do livro “arrastar um landau debaixo d’água”   2013