2/27/2012

Benedito Nunes - in memorian | Nilson Oliveira

Foto: Elaza Lima





Benedito Nunes e a comunidade que vem




 
Por Nilson Oliveira

Benedito Nunes encerra um ciclo virtuoso: Francisco Paulo Mendes, Paulo Plínio Abreu, Haroldo Maranhão, Mario Faustino, verdadeira constelação de intensidades. Por certo se tratava de uma comunidade ativa, firme em seu propósito: o estudo, a escrita, a prática literária. Dessa geração veio – em circunstâncias e tempo diferenciado – o suplemento dominical de A Folha do Norte (1946 / 1951); a Revista Encontro (1948); a Revista Norte (1952), e uma proliferação de acontecimentos que, por suas peculiaridades, enriqueceram a cena literária. É significativa a contribuição dessa geração. Com ela veio todo um processo de criação que, por sua vez, teve um firme impacto nas letras das décadas de 50 a 90 em Belém. Desse modo, nos parece que as obras produzidas nesse período (tal como a poesia de Max Martins) foram erguidas por uma matéria que se recusou a enfraquecer, talvez por serem cingidas pelo que Nietzsche chamou de força intempestiva. Com efeito, essa geração foi, no sentido de Giorgio Agamben, uma vertiginosa comunidade: O comum é a experiência da linguagem. Esta comunidade, na partilha da escrita, constituiu um espaço que devém de uma vontade intensiva, pura potência. Nele a escrita pulsa, por fora do usual, subvertendo as regras do estabelecido, fazendo surgir uma literatura que persevera.
Esta é a contribuição de O mundo de Clarice Lispector; O dorso do tigre; Passagem para o poético: Filosofia e poesia em Heidegger; e muitas outras. O ponto em comum entre estas obras é exatamente a atmosfera em que foram engendradas: uma paisagem intelectual na qual o pensamento acontecia sob o signo da invenção. Neste âmbito pensar era também encontrar: o outro do pensamento, o ponto zero da escrita. Para alcançar este ponto essa geração fez constituir um criativo laboratório de trocas no qual o pensamento se deflagrava em espiral, entre conversas, divergências, encontros; em leituras e experimentações. Nessa aposta o diferencial era o jogo de forças, ou seja, a convergência entre potências que ao se confluírem produziram o enunciado, a escrita outra. Mas a força não derivava de um interior ou pessoalidade, pois era um caso de intensidades, ou melhor, da linguagem relacionada aos processos de criação. Nesses processos uma força equivalia a uma diferença. Não se tratava de narrar a lembrança de um sujeito ou descrever sentimentos pessoais, pois a descrição da vida íntima, na forma privada da subjetividade, em suas rotas redundantes, distancia-se da criação. Só é possível escrever renunciando à pessoalidade. Nesta direção nos diz Benedito Nunes: “a individualidade propriamente dita torna-se insignificante, aparecendo em lugar dela, como em Baudelaire, um sujeito poético, universal, desincorporado da vida imediata do poeta. É este sujeito que fala com uma voz diferente, de ressonância cósmica” (O Dorso do Tigre, 1969, p. 231). É o ser da linguagem: nele a escrita expressa não o sentimento de alguém, mas o acontecimento, o devir literário. Desse modo, a exemplo, “O Mundo de Clarice Lispector” não é um passeio por um ‘mundo idiossincrático’. É um exercício laborioso de pensamento, pelas fendas da obra literária, a fim de perceber o sistema de funcionamento da escrita de Clarice Lispector, analisando suas derivações e dobras com o pensamento. Nesta direção a obra lança mão de várias ferramentas conceituais – Heidegger, Kierkegaard, Sartre, entre outras – evidenciando, de forma surpreendente, a singularidade da linguagem de Clarice, sobretudo o que esta linguagem apresenta de novo para a literatura.
Benedito Nunes deixa, em sua obra, um lastro de possibilidades, em análises pontuais (essa é sua generosidade), que revelou uma sofisticada abordagem entre literatura e pensamento; fazendo desse atravessamento um modo de pensar os autores da sua preferência – Pessoa, Clarisse, Oswald, Cabral, Eliot (e muitos outros) – e nessa direção erigindo um sistema que fez da literatura um modo de pensar o pensamento.
Essa comunidade fez da literatura um elo de comunicação, mas ao mesmo tempo um modo de viver juntos, o pathos literário, ingressando em vários níveis de fazer, numa forma de agenciamento, seja na revista Norte ou no suplemento dominical de A Folha do Norte, ou simplesmente vivendo juntos os ventos de renovação que soprava das bandas de um Jorge de Lima (A Invenção de Orfeu), Drummond (Claro Enigma) ou Rimbaud, Rilke, Mallarmé, etc, etc...
Esta comunidade não teve outra razão de existir além de se expor inteiramente à aventura do pensamento, da escrita, mantendo a comunhão, integralmente, a fim de fazer reverberar, em nossos olhos, sua Alegria, mas a um só tempo a solidão da obra.
Benedito Nunes encerra o ciclo de uma geração prodigiosa. Todavia, a comunidade permanece, na obra, nos desdobramentos e interpretações, ou seja, nas múltiplas possibilidades que este vasto acervo traz para a literatura. É uma fonte inteiramente nova, aberta como umbral, visível, seja na poesia de Max Martins; na escrita de Haroldo Maranhão; na ontologia de Paulo Plínio Abreu; no saber de Francisco Paulo Mendes; na relação entre Filosofia e literatura, de Benedito Nunes.       
A morte de Nunes simboliza o fim de uma geração, todavia o fim de um ciclo significa, mesmo nos tempos cruciais, anúncio outro; é a lei, o movimento da vida. O que fica de Benedito Nunes? A fina ironia, o saber, a obra (e com ela), toda uma engrenagem para pensar o porvir – a comunidade que vem.
Nilson Oliveira é editor da Revista Polichinello



2/17/2012

Ele não era daqui ou a dança da desrazão | Nilson Oliveira






Por Nilson Oliveira



A imagem permanece a mesma: uma estranha esfera negra a girar / a dançar. Porém, olhando mais atentamente, a imagem ganha outras nuances: em absoluto frenesi, um Urso Negro rodopia em torno de si mesmo contorcendo a harmonia de tudo; gira num vertiginoso poder de girar. Seu giro desata as horas, os segundos, os sentidos. O Urso, incansável, gira cada vez mais até esgotar as forças do mundo. Gira e toca piano – o giro é o intervalo da razão -,esse é o seu poder. Sair da clausura do demasiadamente humano, inventar um tempo, uma sonoridade e permanecer com seu piano na outra margem, girando como uma esfera negra, dançando a dança da desrazão.


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Ele, com seus rodopios (performances, minimalismo errante, harmonias dissonantes, indiscernibilidade da melodia), abre um rasgo na experiência contemporânea, inventando um ruído que sopra (por fora da história, do poder, das instituições) em ressonância com o ACONTECIMENTO.


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Ele não é um outro mundo, mas o outro de todo mundo.



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Há 30 anos [dia 17 de fevereiro de 1982 em Nova Jérsei] Thelonious Monk desapareceu definitivamente.