2/29/2020

Coronavírus I. Debate: Giorgio Agamben





O ESTADO DE EXCEÇÃO PROVOCADO 

POR UMA EMERGÊNCIA IMOTIVADA 


GIORGIO AGAMBEN

Publicado em: « Il Manifesto » | 26.02.2020


Tradução: Luisa Rabolini








Diante das frenéticas, irracionais e totalmente imotivadas medidas de emergência para uma suposta epidemia devida ao vírus corona, é necessário começar pela  declaração oficial do Consiglio Nazionale delle Ricerche - CNS, segundo a qual "não há epidemia de Sars-CoV2 na Itália". No entanto, “a infecção, pelos dados epidemiológicos hoje disponíveis sobre dezenas de milhares de casos, causa sintomas leves/moderados (um tipo de gripe) em 80-90% dos casos. Em 10-15%, pode se desenvolver uma pneumonia, cujo decurso é benigno na maioria absoluta. Estima-se que apenas 4% dos pacientes necessitem de hospitalização em terapia intensiva."

Se essa é a situação real, porque a mídia e as autoridades estão se empenhando a espalhar um clima de pânico, provocando um verdadeiro e próprio estado de exceção, com sérias limitações das movimentações e suspensão do funcionamento normal das condições de vida e de trabalho em regiões inteiras?

Dois fatores podem contribuir para explicar um comportamento tão desproporcional. Primeiro, manifesta-se mais uma vez a crescente tendência de usar o estado de exceção como paradigma normal de governo. O decreto-lei imediatamente aprovado pelo governo "por razões de higiene e segurança pública" resulta de fato em uma verdadeira militarização "dos municípios e das áreas em que resulta positiva pelo menos uma pessoa para a qual não se conhece a fonte de transmissão ou, de toda forma, nos quais existe um caso não atribuível a uma pessoa proveniente de uma área já afetada pelo contágio do vírus".





Uma fórmula tão vaga e indeterminada permitirá que o estado de exceção seja rapidamente estendido a todas as regiões, pois é quase impossível que outros casos não ocorram em outros lugares. Vamos considerar as sérias limitações de liberdade previstas pelo decreto:

a) proibição de afastamento do município ou área em questão por todos os indivíduos presentes no município ou área;
b) proibição de acesso ao município ou a área em questão;
c) suspensão de manifestações ou iniciativas de qualquer natureza, de eventos e de qualquer forma de reunião em local público ou privado, inclusive de caráter cultural, recreativo, esportivo e religioso, ainda que realizados em locais fechados abertos ao público;
d) suspensão dos serviços educacionais para crianças e escolas de todas as ordens e graus, bem como a frequência das atividades escolares e de ensino superior, exceto as atividades de ensino à distância;
e) suspensão dos serviços de abertura ao público de museus e outros institutos e locais culturais referidos no artigo 101 do código do patrimônio cultural e paisagístico, nos termos do Decreto Legislativo de 22 de janeiro de 2004, n. 42, bem como a eficácia das disposições regulamentares sobre o acesso livre e gratuito a tais instituições e locais;
f) suspensão de todas as viagens educacionais, nacionais e internacionais;
g) suspensão de processos de concurso e de atividades de órgãos públicos, exceto a prestação de serviços essenciais e de utilidade pública;
h) aplicação da medida de quarentena com vigilância ativa nos indivíduos que tiveram contato próximo com casos confirmados de doença infecciosa difusa.

A desproporção em relação ao que, segundo o Cnr, é uma normal gripe, não muito diferente daquelas recorrentes todos os anos, salta aos olhos. Parece quase que, esgotado o terrorismo como causa de medidas de exceção, a invenção de uma epidemia possa oferecer o pretexto ideal para ampliá-las além de todo limite. O outro fator, não menos preocupante, é o estado de medo que nos últimos anos foi evidentemente se difundindo nas consciências dos indivíduos e que se traduz em uma verdadeira necessidade de estados de pânico coletivo, para o qual a epidemia mais uma vez oferece o pretexto ideal. Assim, em um perverso círculo vicioso, a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que foi induzido pelos próprios governos que agora intervêm para satisfazê-lo.





Tradução: Luisa Rabolini


Publicado originalmente em:












Coronavírus II. Debate: Jean-Luc Nancy



ECCEZIONE VIRALE


JEAN-LUC NANCY

Publicado em: « Antinomie » |  27. 02. 2020



Tradução: Davi Pessoa 









Giorgio Agamben, um velho amigo, afirma que o coronavírus pouco difere de uma simples gripe. Esquece que, para a gripe "normal", dispomos de uma vacina de eficácia comprovada. E mesmo esta deve ser readaptada todos os anos às mutações virais. Apesar disso, a gripe "normal" sempre mata várias pessoas e o coronavírus para o qual não existe vacina é capaz de uma mortalidade evidentemente bem mais alta. A diferença (de acordo com fontes do mesmo tipo que aquelas de Agamben) é de aproximadamente de 1 para 30: não me parece uma diferença pouco substancial.

Giorgio afirma que os governos se apropriam de todo tipo de pretexto para instaurar estados contínuos de exceção. Mas ele não percebe que a exceção se torna, na realidade, a regra em um mundo em que as interconexões técnicas de todos os tipos (deslocamentos, transferências de todas as formas, exposições ou difusão de substâncias etc.) alcançam uma intensidade desconhecida até agora e que cresce igualmente com a população. A multiplicação desta também leva nos países ricos a um prolongamento da vida e ao aumento do número de idosos e, em geral, de pessoas em risco.






Não se deve errar o alvo: uma civilização inteira está colocada em questão, não há dúvida sobre isso. Há um tipo de exceção viral - biológica, informática, cultural - que nos pandemiza. Os governos nada mais são do que tristes executores e atacá-los se assemelha mais a uma manobra de desvio que a uma reflexão política.

Lembrei que Giorgio é um velho amigo. Lamento trazer à tona uma lembrança pessoal, mas não me afasto, no fundo, de um registro de reflexão geral. Quase trinta anos atrás, os médicos julgaram que eu tinha que fazer um transplante de coração. Giorgio foi uma das poucas pessoas que me aconselhou a não ouvi-las. Se tivesse seguido seu conselho, provavelmente teria morrido em pouco tempo. Podemos nos enganar. Giorgio continua sendo um espírito de uma fineza e de uma delicadeza que podem ser definidas - sem nenhuma ironia - excepcionais.




PUBLICADO ORGINALMENTE EM:






Coronavírus III. Debate: Roberto Esposito



CURATI A OLTRANZA 


ROBERTO ESPOSITO

Publicado em: « Antinomie » 
 28. 02. 2020/02


Tradução: Davi Pessoa






Ao ler o texto de Nancy, encontro os traços que desde sempre o caracterizam - em particular uma generosidade intelectual que eu mesmo experimentei no passado, tirando ampla inspiração de seu pensamento, especialmente em meus trabalhos sobre a comunidade. O que interrompeu nosso diálogo, em determinado momento, foi a clara aversão de Nancy ao paradigma da biopolítica, à qual sempre opôs, como também neste seu texto, a relevância dos dispositivos tecnológicos - como se as duas coisas tivessem que ficar em contraposição necessariamente. Quando, em vez disso, o termo "viral" indica uma contaminação biopolítica entre linguagens diferentes - políticas, sociais, médicas, tecnológicas -, unificadas pela mesma síndrome imunitária, entendida como polaridade semanticamente contrária ao léxico da “communitas”. Embora o próprio Derrida tenha feito uso abundante da categoria de imunização, provavelmente na recusa de Nancy de confrontar-se com o paradigma da biopolítica possa ter influenciado a distonia que ele herdou de Derrida diante das posições de Foucault. De todo modo, estamos falando de três entre os maiores filósofos contemporâneos.





O fato é que hoje qualquer pessoa que tenha olhos para ver não pode negar a total implantação da biopolítica. Desde intervenções de biotecnologia em áreas antes consideradas exclusivamente naturais, como nascimento e morte, ao terrorismo biológico, ao gerenciamento da imigração e de epidemias mais ou menos graves, todos os conflitos políticos atuais têm no centro a relação entre política e vida biológica. Mas precisamente a referência a Foucault deve nos levar a não perder de vista o caráter historicamente diferenciado dos fenômenos biopolíticos. Uma coisa é argumentar, como fez Foucault, que durante dois séculos e meio política e biologia se entrelaçaram cada vez mais, com resultados problemáticos e, às vezes, trágicos. Outra é homologar entre elas acontecimentos e experiências incomparáveis. Pessoalmente, evitaria estabelecer qualquer relação entre os cárceres especiais e uma quarentena de algumas semanas em Bassa.

Certamente, do ponto de vista jurídico, o decreto de urgência, que há muito tempo é aplicado mesmo nos casos em que não seria necessário, como no caso em questão, leva a política a procedimentos de exceção que, a longo prazo, podem ameaçar o equilíbrio dos poderes em favor do executivo. Mas chegar a falar, neste caso, de risco para a democracia me parece pelo menos exagerado. Acredito que se deva tentar separar os pontos, distinguindo processos de longo prazo das notícias midiáticas recentes. Do primeiro ponto de vista, há pelo menos três séculos, política e medicina estão ligadas em uma implicação recíproca, que acabou transformando ambas. Por um lado, determinou-se um processo de medicalização de uma política que, aparentemente livre de ligações ideológicas, se mostra cada vez mais dedicada ao "cuidado" de seus cidadãos contra riscos que ela própria costuma enfatizar. Por outro lado, assistimos a uma politização da medicina, investida de tarefas de controle social que não lhe pertencem -, o que explica as avaliações muito heterogêneas dos virologistas sobre a importância e a natureza do coronavírus. De ambas as tendências, a política se torna deformada em relação ao seu perfil clássico. Também porque em seus objetivos se encontram não só indivíduos ou classes sociais, mas também segmentos de população diferenciados por saúde, idade, sexo ou até etnia.

Mas mais uma vez, com respeito a preocupações certamente legítimas, é necessário não perder o sentido das proporções. Parece-me que o que acontece hoje na Itália, com a caótica e um pouco grotesca sobreposição de prerrogativas estaduais e regionais, tenha mais o caráter de uma decomposição dos poderes públicos do que de uma dramática compressão totalitária.





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