4/19/2012

Cinema e Literatura / Marie-Claire Ropars-Wuilleumier


Marie-Claire Ropars-Wuilleumier

Em tempos de boas conversas sobre Cinema & Literatura em Belém, traço um pequeno gesto na direção de um Godard literário, numa maneira de pensar a imagem e a escrita, sobretudo de “manter a conversa aberta”.  

Trata-se da publicação de uma entrevista com Marie-Claire Ropars-Wuilleumier (1936-2007), inventiva teórica de cinema que, entre vários deslocamentos em torno do ato de criação, pensou os laços entre Cinema e Literatura em Jean-Luc Godard.  

A escrita de Marie-Claire Ropars-Wuilleumier é povoada de encontros férteis, com André Bazin / com Maurice Blanchot (entre outros). Encontros cuja efetuação implica num experimento que cambia entre os fluxos e os devires – o corte e o movente.

Marie-Claire Ropars-Wuilleumier, nesta entrevista, oferece uma vigorosa cartografia para pensarmos, avançando sempre na direção de uma imagem que pulsa, sem cessar, entre as dobras do Cinema e as fendas do Literário.  Vale conferir.

Nilson Oliveira



Entrevista realizada por Mário Alves Coutinho

Godard

A Nouvelle Vague teve uma relação especial com a literatura? Que tipo de relação, exatamente?

A Nouvelle Vague, para mim, não foi nada homogênea. Houve correntes muito diferentes dentro da Nouvelle Vague, segundo Resnais ou Godard, por exemplo, ou a Nouvelle Vague clássica, segundo Rohmer ou Truffaut. Desta maneira, a relação com a literatura foi feita mais por cineastas que pelo movimento, propriamente. Pois a Nouvelle Vague propriamente dita, se eu não me engano, nos anos sessenta, não tinha senão uma idéia: rejeitar a relação do cinema com a literatura, que foi determinante (nos roteiros, nos assuntos, nas adaptações) no período dos anos trinta. Tratava-se, claramente, de romper com esa tradição, e ao mesmo tempo, de romper com a literatura. Nesse momento, a relação com a literatura estava baseada em autores de cinema que buscavam na literatura uma espécie de legitimação do seu status de autor. E isto foi determinante para fundar essa relação. Havia pessoas, como Resnais, que se apoiavam completamente em textos, não em adaptações, ele foi provavelmente quem rompeu com a tradição das adaptações e que começou uma experiência, a meu ver muito interessante, de reescritura de algumas obras pelo cinema. De reescritura, na criação cinematográfica, de formas literárias, ou de obras literárias que se tratava de integrar, de assimilar à linguagem cinematográfica. Este foi o trabalho de Resnais. De Godard também.


A senhora não acha que existe uma contradição entre esses inícios da Nouvelle Vague, que realmente começou atacando as adaptações, mas terminou por fazer um cinema com estreitas relações com a literatura, Godard principalmente?


Uma relação profunda com a literatura. Mas esta é uma das contradições de Godard. É uma contradição dominante na obra dele. Do meu ponto de vista, trata-se de, em todos os seus filmes, mesmo aqueles que se inspiram na comédia americana, ou no cinema “noir” americano, de pensar a relação com a literatura numa nova forma de escritura, e sem se inspirar necessariamente em adaptações de algumas obras, mas talvez de procurar uma linguagem cinematográfica que seja o equivalente literário, o equivalente cinematográfico da criação literária. Aí existe, segundo meu entendimento, uma relação paradoxal: rivalidade, mas finalmente assimilação.

Qual é a relação, para a senhora, entre Godard, sua obra cinematográfica, e a literatura?



Existe uma relação profunda. Ainda que ele a rejeite. Ela é profunda a partir da idéia de obra, da idéia de criação e da idéia de linguagem. Ele pretende tê-la rejeitado, mas ele nunca o fez. Existe uma procura, através da obra e da linguagem, de uma relação de escritura, o que é muito claro em Nouvelle Vague.



O fato de Godard ter escrito crítica influenciou sua obra cinematográfica? Como?

Segundo meu ponto de vista, nem um pouco. Quer dizer, de uma maneira bastante paradoxal, pois a crítica que ele fez foi sobre o cinema americano, fundamentalmente, o filme “noir”, uma certa tradição cinefílica. E Godard, finalmente, não se orientou nem um pouco nesta direção, mesmo se seu primeiro filme parece pedir algo emprestado a essa tradição. Mas ele trabalha do interior e em termos que não tem nada a ver com esta tradição.


Trata-se talvez de uma desconstrução?


Sim. Uma desconstrução bastante sistemática, que passa, com efeito, pela reapropriação crítica. Sua relação com a literatura é profunda: a relação de Godard com Mallarmé ou com Blanchot é explícita, nas suas últimas obras em vídeo, mais especificamente. Estas são relações constitutivas, não haveria filmes de Godard se não houvesse essa relação profunda relação com a linguagem, que se transforma em escritura, particularmente no cinema. Mas eu compreendo Godard de uma maneira que não é, necessariamente, a do Cahiers du Cinéma. Quando digo isto tudo, não é do ponto de vista dos Cahiers que estou pensando. Segundo o Cahiers du Cinéma, de onde saiu Godard, é precisamente o aspecto não-literário, e puramente cinematográfico – não sei o que isto quer dizer – que os interessa. Mas acho que é justamente outra coisa que foi feita na escritura das suas obras.

Mas a senhora não concordaria que nos Cahiers, e particularmente em Godard, existia toda uma atenção particular ao estilo literário, quando escreviam críticas e ensaios?

É verdade. Uma atitude de escritor acontece nesta relação com a crítica cinematográfica. Mas se você pensa que a única razão pela qual Godard explorou esta relação, você pensará que seria para chegar ao estatuto de autor. Penso que isso é a verdade de toda uma geração. Isto é verdadeiro sobretudo com relação à geração dos anos trinta, que queria, pela sua relação com a literatura – penso num certo texto de Zola para Renoir – se transformar em autores, por sua vez. É admirável, nos créditos de A Besta Humana, toda uma disposição gráfica e ideográfica que faz aparecer esta relação que faz da linguagem cinematográfica uma forma de escritura, e por isto quero dizer não somente uma forma de linguagem integrando a linguagem lingüística, mas penso também que esta integração lingüística – que é muito ativa em Godard – fica dissimulada, pois ao mesmo tempo existe o mito da pureza cinematográfica, que o Cahiers trabalhava e aqueles que saíram do Cahiers, também. Este foi, pouco a pouco, o ponto que Godard reconheceu, esse juramento de obediência da escritura à literatura, da escritura cinematográfica à literatura. Isto aparece muito claramente na sua relação com Mallarmé, com Blanchot, nos seus últimos vídeos que ele realizou sobre este assunto.

Maurice Blanchot


Como a senhora vê a relação que existiria entre Blanchot e Godard?


Isso é uma outra coisa, pois Godard descobriu Blanchot muito tarde. No começo, penso que ele o ignorava. Num determinado momento – não sei porque, como e nem em qual ocasião – houve uma leitura de Blanchot por Godard (que aparece em Nouvelle Vague, me parece, ele o cita explicitamente) – e que, em todo caso, começa a se desenvolver toda uma relação com Mallarmé, toda uma relação com a criação lingüística, que se torna fundamental para o cinema de Godard. Penso neste vídeo no qual ele encena a si mesmo, no qual ele cita um texto de Mallarmé e cita Blanchot, também.



A relação de Jean-Luc Godard, e da sua obra com a literatura, é da ordem da citação, da adaptação, da pilhagem, da ironia, da imitação, da paródia, ou todas esta coisas ao mesmo tempo?


Um pouco de tudo isto, penso, mas ao mesmo tempo algo de mais radical: a assimilação, a apropriação, quase – como formular? – uma devoração, da literatura pelo cinema, o que já acontecia bem no começo e que pouco a pouco ele descobriu – como dizer – realizando, creio. Ele abandonou esta ideologia da imagem pura, que não tem nenhum sentido, aliás, ele descobriu a montagem, e a partir daí ele foi obrigado a resvalar para uma espécie de interação entre as artes, entre linguagens.

Se dividíssemos a obra de Godard em fases, em qual fase a relação de Godard com a literatura foi mais intensa?


Eu hesitaria entre os anos sessenta e os anos oitenta. São dois momentos diferentes. Os anos 60 são o momento onde ele reivindica especificamente o Cahiers. Ainda não existe a montagem, não existe relação a escritura, mas ele realiza seus filmes, ele começa a experimentar a escritura, sem enunciar, sem mesmo conceituá-la. E depois, nos anos 80, a partir do momento em que ele é levado a se reescrever, uma reescritura generalizada, estou pensando em Nouvelle Vague, neste gênero de reprise constantemente citacional, não das obras dos outros, mas dele próprio, neste momento ele vê a citação como uma paródia, como algo que empurra–o para uma certa experimentação lingüística e isto não é, aos meus olhos pelo menos, uma paródia. Acho que é, cada vez mais, uma relação de assimilação. O que é bastante paradoxal em relação à posição inicial de Godard, que era uma posição extremamente crítica, negativa, provocadora, em tudo o que poderia tocar a relação do cinema com a literatura. Ele esteve em Vincennes, num de meus cursos, e ele afirmava esta posição: cinema puro, imagem pura, nada mais, não aos universitários, nada de ensinamento teórico, nada de análise, somente a imagem. Muito agressivo e provocante nesta posição. Uma rejeição absoluta. Uma posição típica do maio de 68, e que não corresponde ao que ele experimentou em seguida. O que quero dizer é que da noção de reescritura, me parece, ele passou a esta discussão sobre a escritura, em particular em algumas de suas obras que ele reescreveu sem parar. Ele aceitou cada vez mais a posição de autor, a posição de escritor.


A senhora acha que existe um filme de Godard no qual esta relação com a literatura foi mais determinante?

Nouvelle Vague, provavelmente, Elogio do Amor. Vem o momento em que ele volta para suas próprias obras, as situa numa tradição de escritura, através do reconhecimento das citações e então descobre uma forma toda heterogênea de cinema, que não tem nada a ver com o mito da imagem pura. Ele foi, pouco a pouco, em direção ao reconhecimento, de algo que Resnais já fazia, os resvalos, as citações, as interações entre diversas formas de linguagem. E ele aceitou isto para si mesmo, o que não era absolutamente sua posição inicial. Ele explorou, aos poucos, no interior mesmo de seus filmes, falando de si mesmo, citando a si mesmo. Mas sem querer afirmar a teoria. Praticando-a em suas realizações, nas suas interações, mas recusando, me parece, a teorização do cinema como literatura. Nunca vi o reconhecimento deste fato em Godard, mas a sua existência, sim.

A voz própria de Godard, que recita alguns textos, este tom muitas vezes elegíaco, tem alguma relação direta, ou indireta, com a literatura?


Como eu dizia antes, esta relação com a literatura aparece em dois momentos, na fase dos oitenta, mais fortemente. Mesmo se ela não é enunciada, conceituada, a coisa acontece mais forte, aparece então a heterogeneidade da linguagem. Ele aceita isso. Mas me parece que, no começo, ele está preso na tradição dos Cahiers, a literatura não tem nada a ver com uma teoria da imagem. Mas penso que, quanto mais ele fazia filmes, mais ele entrava, paradoxalmente, nas suas relações com a linguagem cinematográfica, a música e a literatura. Ele passa de Blanchot a Mallarmé, de Mallarmé a Blanchot, mas muito claramente ele avança dos dois lados, simultaneamente. Uma de suas experiências mais interessantes está em Histoire(s) du Cinéma, que é apaixonante. De um lado o trabalho que faz sobre a voz, mas sobretudo a justaposição e montagem de diferentes seqüências, de diferentes fragmentos de cena, que são colocados, desde o começo, sob o signo da escritura. Desde o começo ele se encena como escritor...


Mallarmé

...teclando a máquina de escrever...


Sim, teclando a máquina de escrever: profundamente literário. Mas na imagem. É o que o caracteriza. É sempre na imagem que esta relação com a literatura acontece. Com Resnais, é na voz off. Enquanto que em Godard, não. Em Godard, é do lado da imagem que a literatura aparece. É bastante paradoxal, mas é do lado da imagem que passa a literatura. É quase a encenação do livro. Encontramos isto em Pierrot le fou (O Demônio das Onze Horas) e Acossado. Neste último filme existem planos muito sintomáticos a propósito desta relação com os jornais que Godard coloca em cena. Belmondo que trabalha a presença ou a ausência destes jornais na sua mão. Os textos que aparecem iluminados, em noticiários. Toda sorte de avanços de Godard na integração de formas literárias, qualquer coisa que permaneceria cinematográfico, filmando formas de experimentação literária, da realização, que o fazem encontrar imagens diferentes.



A senhora tem razão: a todo momento ele filma títulos de livro, títulos de revistas, a frase de um livro, cartazes, personagens que escrevem alguma coisa e ele os mostra escrevendo... Mesmo os personagens quase iletrados de Les Carabiniers (Tempo de Guerra), ele mostra o que eles escrevem...

Godard encena a escritura, em relação à literatura, em relação ao texto, de uma maneira que esconde o rosto. Existem planos muito sintomáticos desta postura em Godard, onde aparecem jornais que escondem o rosto. Isto não acontece por acaso, é uma espécie de afixação de textos contra o personagem, contra a narração, por um lado, mas também a presença da imagem. O que é colocado na imagem, é o texto. Isto é qualquer coisa de muito particular em Godard, muito específico, mesmo se ele declara o contrário, mesmo se ele diz que o que existe é a imagem. Como por acaso, é a imagem que mostra o texto.

David Herbert Lawrence


David Herbert Lawrence escreveu certa vez never trust the artist, trust the tale…


Não confie senão na narração, no conto, na obra, mas, sobretudo, não no artista...



O que o artista diz fora da obra,tem alguma importância, mas não é o mais importante...

O enunciado diretamente fora da obra não é definitivamente o mais importante. Algumas vezes é um contra-senso.


Quando se fala de literatura em Godard, ele é mais sensível à poesia, à ficção, ao ensaio ou à filosofia?


Para mim, a distinção é muito difícil. Ele é sensível à ficção enquanto ela é portadora de teoria, acredito.

E quanto à relação dele com a poesia, na sua própria obra?

Difícil de responder, pois o que existe na obra dele, o que a gente pode aceitar, atualmente, são fragmentos de poesia, momentos poéticos. Uma coisa muito interessante na obra de Godard: ele encena, bruscamente, uma passagem poética, e é um personagem que se transforma em portador da palavra, portador da poesia e portador da música. Isto acontece quase sempre em segundo grau. Isto não é inocente. É uma espécie de inscrição, também, provavelmente, de sua relação com a literatura, que não é simples, pois ele joga um jogo duplo. Ele também joga um jogo duplo na maneira como ele divulga a literatura na sua relação com o cinema. É menos reinvidicado diretamente do que em Resnais.


A senhora escreveu: “Godard termina por destruir a narração. Sua linguagem fica sempre em contato com poesia, pois o próprio da poesia é revelar em um instante o absoluto e lhe dar a possessão imediata da totalidade”. É muito apropriado em relação à obra de Godard...
Alain Resnais

Existe um romantismo profundo na obra de Godard. Quer dizer, no sentido do romantismo alemão, que ele terminou por reconhecer, a meu ver. Mas esta relação com o romantismo alemão o leva à teoria de Iena, à escola de Iena, a teoria segundo a qual a linguagem, na sua diversidade, na multiplicidade, era portadora de idéias. E então podia constituir uma maneira de pensar, uma modo de enunciação do pensamento pelo simples fato de citar. E nesta citação, incorporar uma idéia da literatura. Então, segundo minha maneira de ver, ele transportou esta idéia da citação. Ela é muito importante na sua obra. Toda escritura está inscrita numa reescritura. E fora desta reescritura não existe escritura. Acho que podemos fundar esta hipótese a propósito de Godard – e de Resnais, também –, segundo a qual qualquer que seja a linguagem utilizada, ela é impura, porque ela é heterogênea, mista. E é esta impureza que, paradoxalmente, a constitui como escritura, pois ela não é escritura. Paradoxal, mas acredito que podemos dizer isto.



Com a obra de Jean-Luc Godard nós temos ao mesmo tempo cinema e literatura?

Sim. O cinema é uma linguagem heterogênea. O cinema, talvez mais do que qualquer outra linguagem faz aparecer a heterogeneidade constitutiva de toda linguagem, pois o cinema é múltiplo, e desta maneira faz aparecer a impossibilidade do signo puro, o que Godard descobre de uma maneira concreta: que o signo puro é impossível. A relação da palavra com a coisa é sempre reduzida, desviada, pelo cinema. Não existe falsificação, mas destronamento. O cinema é bastante paradoxal, tem um poder revelador, mas ao mesmo tempo, no limite, uma ausência de especificidade. Quer dizer, o cinema revelaria alguma coisa sobre a escritura, mas o que ele revelaria é precisamente que não existe especificidade na escritura. Esta é uma teoria que não é enunciada por Godard, mas que podemos fazer aparecer na sua obra. Em Godard, esta forma literária – é necessário distinguir escritura de literatura – é recusada. Por outro lado, a ligação com a escritura é engajada, sistematicamente, sobretudo nas suas últimas obras. Penso em JLG par JLG, mas também nos outros vídeos, e em particular um deles no qual ele emprega Blanchot e é também sobre a escritura cinematográfica e a relação com a escritura segundo Blanchot, que é extremamente interessante. Isso aparece especialmente em Elogio do Amor e em outro vídeo onde ele se encena a si mesmo...



Em Pierrot le fou, ele retira uma palavra de outra em várias ocasiões: “vie de Riviera, vie de envie”, e mesmo SS de “ESSO”...

Quer dizer, ele é bastante sensível à fragmentação do signo. E à capacidade que teria o cinema de tornar visível esta fragmentação. Esta possibilidade, que tem muita relação com a lingüística, muito ligada à teoria de Saussure, que o signo contém outro signo. A linguagem é feita desta capacidade do signo de integrar ou dissimular outro. Para os românticos alemães, o caráter heterogêneo da linguagem, nas suas formas, seus gêneros e seus materiais, fazem aparecer uma espécie de relação diferente com a existência, que é a relação romântica, ao mesmo tempo de exílio e de apropriação, e que aparecia na escritura, na sua fragmentação. Como no seu desejo de totalização. O que é muito godardiano, não? Totalidade e literatura. Esta essencialização da linguagem em sua forma fragmentada e incompreensível aparece particularmente na última fala de Jean Seberg, “o que quer dizer dégueulasse?” Ali, é a questão do signo que é encenada. A maneira como Belmondo esconde o rosto com revistas em quadrinho e outros textos e a cada vez temos esta questão, de uma certa maneira, da existência literária que é proposta.

Acossado termina com uma questão sobre o significado de uma palavra...


De uma palavra que se transforma num signo... A palavra é freqüentável, pode ser decomposta, podemos fazê-la jogar em diferentes signos, numa palavra, que ela não tem sentido. Que o sentido seja fixado, também. Godard coloca em cena, sem necessariamente enunciá-lo, tudo que o cinema coloca como questão, à questão do signo. Quer dizer, ele não parte da literatura, ele parte do signo. E é desta maneira que encontra a música e a literatura. Segundo minha maneira de ver, a questão da literatura não é frontal na sua obra, absolutamente, ela se torna frontal.



Mas, ao mesmo tempo, vários são os personagens de Godard que dizem estar escrevendo um romance, têm idéias para escrever um, ou dão idéias para o outro escrever: Ferdinand, Marianne, Patricia. Ferdinand escreve uma espécie de diário, durante o filme todo. Vários personagens escrevem cartas, e Godard mostra-os escrevendo. Muitos jornalistas aparecem nos seus filmes. Existe uma importância muito grande do texto, da literatura, da escritura...

Uma circulação de textos. Uma colocação em circulação da literatura, do texto, da escritura, mas do meu ponto de vista, tudo isto indica uma reflexão sobre a linguagem e sobre o sentido. É exatamente a relação signo/sentido que o interessa, também: na decomposição dos signos, a capacidade, fragmentando o signo, de fazer aparecer outros signos, as significações dissimuladas, que vem trabalhar a relação do signo com o sentido. Ele está próximo de uma certa reflexão lingüística do início do século. Mas de uma maneira que não é propriamente enunciada. Que é reencontrada, por acaso, por leitura, por apropriação progressiva. Para voltar a Blanchot, é neste contexto do signo, da relação signo/sentido, que seu nome é pronunciado. Em particular, neste vídeo do qual já falei, me esqueci do nome, não é JLG par JLG, acredito que é um outro.

Lendo o que a senhora escreveu sobre Godard, deparei com uma frase que me fez pensar muito. É quando a senhora diz que “o cinema é a arte do movimento”. Ao contrário do que qualquer um outro diria, a senhora não escreveu que o cinema é a arte da imagem em movimento. Gostaria de saber, exatamente, qual a idéia que a senhora tinha, quando escreveu isso.

Um pouco no sentido que eu descrevi anteriormente. Quer dizer, no fundo, estou louvando o cinema, dando um crédito ao cinema, e não fazendo sua crítica, quando faço esta constatação. O cinema teria a capacidade, simplesmente pelo material que ele utiliza, de encenar o signo e de colocar no jogo mesmo dos signos a questão do sentido. Sem enunciá-lo teoricamente, simplesmente fazendo-o funcionar. Nas seqüências do diário, em Pierrot le fou, por exemplo, tratar-se-ia de ver a capacidade que teria o texto de esconder a figura, ou a figura de esconder o texto. E é este jogo de esconde-esconde que interessa particularmente a Godard. Enfim, a hipótese é que o cinema coloca em cena, sem enunciar, a questão do signo, e a questão da relação do signo consigo mesmo, e a relação do signo à significação. Sem que isto seja enunciado de qualquer maneira, mas colocado em jogo, colocado no circuito. É aí que o cinema de Godard diz coisas interessantes sobre a relação do cinema com a literatura.


A senhora escreveu sobre Godard: “é na impotência aceita, na impossibilidade reconhecida de compreender e de dizer, que Godard diz e faz compreender melhor e mais diretamente”. Esta é uma colocação magnífica, e perfeita, se pensamos na obra de Godard.



Quer dizer, é no silêncio, no silêncio visual, um silêncio de múltiplas entradas. Tenho uma relação bastante ambígua com Godard. Quer dizer, não aceito muito facilmente seus enunciados diretos, mas em compensação, quando ele se cala através das imagens – quando o silêncio das suas imagens abre a questão do signo – isto passa a ser extremamente interessante. Em Resnais isto é inevitável, pois a linguagem desde o começo é o texto literário, ele não pode não colocar a questão da relação entre cinema e literatura. Enquanto que, em Godard, esta não é uma necessidade aparente, é uma necessidade que se revela pouco a pouco, do interior, pois o cinema o obriga a colocar a questão do signo.


A senhora escreveu, também, que “a aventura nasce da escritura tanto quanto das ações”. Perfeito: existe uma aventura da escritura nos seus filmes.

Nos seus filmes, como em outros filmes. Quer dizer, isto é o que o cinema moderno coloca, mais que o cinema clássico. Diferentemente do que fazia o cinema dos anos trinta, que alardeava sua relação com o texto. Mas com formas codificadas que eram outras, diferentes das que vemos aparecer atualmente, onde a relação com o texto é mais uma relação com a questão do gênero, a questão da reescritura como adaptação. Eu diria que o que parece atualmente é que não existe escritura absoluta, toda escritura é captada num trabalho de reescritura e que por isso o trabalho de adaptação é um bom lugar, talvez, para trabalhar esta questão da relação cinema/escritura/reescritura. Eu diria mesmo que é talvez pela reescritura que chegamos à questão da escritura, não temos nunca a escritura em si mesmo. Esta é talvez uma idéia romântica, no sentido do romantismo alemão, quer dizer, uma interrogação crítica sobre a linguagem, sobre a possibilidade de dizer. Possibilidade de enunciar diretamente. Que é, creio, o movimento por excelência do romantismo alemão. Existe uma profunda impregnação pela literatura teórica, em Godard. Num momento dado Godard leu, e o que ele leu o fez ir noutra direção, quer seja o romantismo alemão, a escola de Iena, Blanchot, ou outros autores que ele cita em Nouvelle Vague...


Godard disse recentemente que nos últimos tempos ele não escreveu nada, tudo nos seus filmes são citações...


É exatamente a propósito de Nouvelle Vague que ele diz isto, que não existe senão citação, pois não existe linguagem pura, não existe signo puro, não existe linguagem que não tenha sido trabalhada. Então, o fato de escrever é uma reescritura. Estamos presos neste paradoxo.


A senhora escreveu, também, que “sua contribuição essencial ao cinema acontece no fato de sua rejeição de todos os códigos, quer eles sejam narrativos, ou dramáticos”.


Eu diria isto, agora, com mais nuances: rejeição dos códigos, mas realizada de uma maneira codificada, quer dizer, através da encenação do código. Contrariamente aos seus enunciados conceituais diretos, que dão, no fundo, uma espécie de pureza absoluta ao cinema, ele não cessa de explorar, de expor também essa impureza constitutiva, é verdadeiramente Godard que mostra melhor o caráter heterogêneo da linguagem, mas sem enunciá-lo, apenas encenando-o. E isto é admirável, desde o primeiro filme, desde Acossado. A linguagem é sempre preenchida por outros signos, cada signo pode dissimular um outro.



Entrevista realizada em Paris, no dia 30/11/2005

Entrevista publicada em: http://www.filmespolvo.com.br/site/entrevistas/index/6


4/12/2012

SOBRE FOTOGRAFIA, FILOSOFIA E POESIA: aprender a olhar é aprender a morrer



Foto da exposição "Para se ter de onde se ir"

Por Edilson Pantoja

Existir é errar. Não necessariamente no sentido de quem, a dispor previamente do que é certo, opta pelo errado. Certezas são ficções temporárias de quem é trânsito. De quem é abertura, de quem, sendo, abre-se necessariamente à temporalidade. Para o homem, único existente entre todos os que vivem, a errância é condição. Ek-sistir quer dizer: deslocar-se, pôr-se para fora, abrir-se rumo a seus possíveis. Pelo que se poderá entender, noutra luz, o dito popular segundo o qual “errar é humano”.

A reflexão vem a propósito de “Para se ter de onde se ir”, exposição fotográfica de Miguel Chikaoka, fundador da Associação Fotoativa, referência em experimentação e educação, há quase trinta anos, para as gerações que, desde então, em Belém, e daqui para fronteiras mais distantes, transitam ou constituem a cena fotográfica. O título, sugerido pelo curador Mariano Klautau Filho, e prontamente aceito pelo fotógrafo, evoca A Cabana, poema de Max Martins (1926-2009):

É preciso dizer-lhe que tua casa é segura

Que há força interior nas vigas do telhado

E que atravessarás o pântano penetrante e etéreo

E que tens uma esteira

E que tua casa não é lugar de ficar

Mas de ter de onde se ir

Assim, título, e por extensão, poema, dão a primeira direção semântica, tanto para a seleção da curadoria no vasto acervo, quanto para a recepção do público, embora, como é de se supor, em se tratando de experiência estética, sempre singular, esta não se limite, em cada observador, à mera associação entre as fotografias expostas e os títulos – o da exposição e os de cada obra particular (fixados, como de praxe, em discretas plaquetas), que tanto podem ser referência direta a elementos da imagem, como ao lugar em que foram captadas. Todas as que têm título ou referência ao lugar trazem também a data de realização. Tempo e espaço verbalmente enunciados têm por finalidade imediata informar sobre as imagens: mediatamente, porém, indicam o “em trânsito”, o a caminho de, a errância do fotógrafo desde os anos de juventude.

Mas nem todas as fotografias têm referências verbais: apenas as expostas nos dois salões de entrada do museu. A maioria em preto e branco. Após estes, num terceiro ambiente, uma sala cujas dimensões contíguas, associadas ao tema das fotografias ali presentes (lar, casa, ambiente familiar), denotam intimidade, sugerem a aposta semiótica da curadoria: agora é apenas o conjunto aleatório de índices e ícones, signos não-verbais, quem informa o espectador. Este já se encontra no coração da exposição, onde um retrato de Chikaoka jovem, cabeludo e com roupa algo extravagante, “rebelde”?, o transporta até o passado, e dado o reforço semiótico das demais imagens, o espectador percebe estar no interior da casa habitada pelo jovem: a casa dos pais, onde, porém, como nas “fotos de Paris”, de Eugène Atget, apenas móveis, objetos, utensílios, coisas, enunciam a presença humana, como o faz um retrato em moldura circular, pequeno, distante, a pairar, desde a parede de um quarto, sobre o ambiente, a observar ninguém. Ele próprio a quase desaparecer no vazio. Todos teriam partido? Teria sido dali que o jovem, em busca de “para ter de onde se ir”, também partiu? E é a ausência, consequência da partida, que o rosto, tornado imagem pela ausência do verbo que o identifique, observa? Embora flou, percebem-se nele traços asiáticos e marcas do tempo já vivido pelo retratado (a), um dos pais? A mãe, talvez? Quem seja, também já não está fisicamente ali. A imagem é toda ausência, a reforçar, no olhar que paira sobre camas, paredes, a fisionomia da casa, e a marcar, assim, na sugestão do “trânsito”, do “ter ido para onde”, a esvaída presença humana.

Foto da exposição "Para se ter de onde se ir"
No mesmo espaço outro retrato se destaca: um homem negro, close do rosto também bastante marcado pela idade, reivindica atenção. Quem pode ser? Seguem-se ambientes domésticos, móveis, poltronas, violoncelo, violão, o verbo ausente, salvo, em alguns casos, como integrantes de fotografias, onde se lêem avisos sobre aulas, anúncios, recomendações a alunos, o endereço e nome do professor de música: Tó Teixeira. Ora, o nome que batiza a lei municipal de incentivo à cultura! E o espectador, que só dispunha do nome, agora se vê diante dos traços, do rosto do homem que o carregou pela vida e que com ele se identificava, a quem Chikaoka ainda encontrou quando chegou a Belém. Sim, os lugares, as “cabanas” se misturam, como também se misturam diversas fotografias dispostas sobre uma mesa, separadas em quatro grupos, para que o espectador possa manusear. O manuseio as misturou, e agora as duas casas, os dois lugares, o de partida (Registro, no interior de São Paulo) e o de chegada (a Belém do início dos anos oitenta), onde o fotógrafo fincou moradia – o que não quer dizer, em absoluto, que se estabeleceu, isto é, que deixou de “transitar”. Tais informações, porém, já são depreendidas de tudo o que, bastante emocionado, o fotógrafo enunciou por ocasião de “Conversas com Miguel Chikaoka – Trajetórias do Fotográfico”, proferida na noite de sexta, 05, no Museu de Arte da Universidade Federal do Pará, que abriga a exposição.

Frente à platéia que lota o salão, Chikaoka, artista convidado do Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia, um acontecimento de alcance nacional, agora em sua terceira edição, fala, às vezes com dificuldade para esconder a emoção, de sua infância em Registro, da educação tradicional familiar recebida na comunidade japonesa formada por imigrantes, da importância do cinema japonês, dos filmes de samurais, figuras heróicas para o menino, exibidos no cinema da comunidade, da referência paterna, de onde o princípio do servir, compartilhar, dividir, que fundamentam a Fotoativa em sua atuação formativa. Aborda os anos de juventude, quando vai para Campinas cursar engenharia e onde tem contato com certo filme de Kurosawa, filme crítico da imagem de correção da família japonesa: “Não sei dizer se, à época, gostei ou desgostei do filme”. Mas começava aí um processo de abertura, de estranhamento, de experiências importantes no campo do pensamento e da estética que marcariam definitivamente o fotógrafo. Seguem os anos na França, o contato com a literatura: Clarice Lispector, Hermann Hesse, entre outros, cujas capas de livros são brevemente mostradas no slide, conforme se dá a interação com Mariano Klautau Filho, com Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, pesquisador da Divisão de Iconografia da Biblioteca Nacional, que fazem a mediação, e com o público, que lhe dirige diversas perguntas. Morando em Nancy, onde estudava, Chikaoka relata ir a Paris todos os meses para visitar exposições fotográficas, e se envolve com grupos em torno da fotografia, a experimentar relações solidárias. É com tal bagagem, profundamente arraigada a sua visão de mundo, que Chikaoka vem para Belém, início da década de oitenta e final dos “anos de chumbo”, onde logo se envolve com grupos de artistas, fotógrafos, estudantes, intelectuais em luta pelos Direitos Humanos e contra a ditadura. Miguel monta oficinas de fotografia, mediante as quais põe em ação a concepção filosófica colhida ao longo da formação, e tudo por aqui começa – a errância paradoxal continua em busca de “para se ter de onde se ir”.

Miguel vê na fotografia muito mais que captura de imagens físico-químicas. Vê nela possibilidades de encontros, de caminhar junto, de ser-com, de servir. Vê na experiência com a luz, com o tempo, ocasiões de pensamento. Por exemplo, quando aborda sua experiência com a pinhole, câmera artesanal objeto de oficinas que ainda hoje ministra, em que a luz penetra por pequeno furo de agulha (daí o nome), vindo a gravar imagens nítidas, conforme determinações naturais óticas, físicas, e faz analogia, por contraste, entre a pequena abertura, filtro do excesso de luz e responsável pela invariável experiência de espanto dos alunos frente à simplicidade do processo natural, e a vivência do homem contemporâneo, a receber informações em excesso, artifícios que não dá conta de filtrar, processar, experimentar. A pinhole, diz o fotógrafo, é oportunidade para a surpresa, para o espanto, para o deslocamento desde o fluxo excessivo, cotidiano, e, daí, para a reflexão. Ora, o espanto, a admiração e a surpresa também eram reconhecidos por filósofos como Platão e Aristóteles como elementos desencadeadores da experiência de pensamento. Da reflexão crítica.

Foto da exposição "Para se ter de onde se ir"

O fotógrafo defende então que todas as escolas deveriam ter câmaras obscuras e pinholes, além de um espaço físico, uma sala, para experiências desse tipo com os alunos. E perguntado se nas oficinas ministradas pelo Brasil e mundo afora – Europa, Estados Unidos, Japão, percebeu diferença nesse quesito educativo, diz que o panorama não é diferente. E relata que mesmo entre fotógrafos profissionais, munidos de máquinas tecnologicamente avançadas, viu não serem raros os que desconhecem a experiência direta com a luz, como se tem, por exemplo, nas simples câmaras obscuras feitas de papel cartão, onde a imagem, sem as lentes e espelhos que imitam órgãos internos da visão e a reposicionam, aparece como é gerada: de ponta-cabeça. Experiências de estranhamento.

E, por falar nisso, num dado momento, após o slide exibir a fotografia acima, vencedora de uma das edições do Salão Arte-Pará, e que não faz parte da exposição, esta constituída apenas de imagens nunca apresentadas ao público, alguém pediu para o fotógrafo falar sobre a imagem, o contexto de produção, ao que este, sob nova emoção, relatou íntima e dolorosa experiência de perda – mas também de aprendizado, corrigiu, ao que acrescentou ser a vida um apreender a morrer, aprendizado que a fotografia, enquanto aprender a olhar, auxilia, nisto outra vez aproximando-se, em minha recepção, de certos pensadores gregos que defendiam o mesmo princípio em filosofia.

Bem, muito mais foi visto e ouvido, mas creio já ter atingido o ponto que o texto ansiava – esta referência à morte, “pântano penetrante e etéreo”, destino último de todo ir, de toda errância; razão originária, e nisto abissal, de todo buscar um “Para se ter de onde se ir”; “possibilidade da impossibilidade”; mola propulsora de todo criar, de todo produzir, de todo imaginar; causa fundamental de todo pensar; deserto palmilhado de fantasmagorias, que são os significados humanos; “Não” absoluto, fonte enviesada, (à ponta-cabeça como as imagens da câmara obscura), de toda e qualquer tentativa de “sim”, que é como nomeio cada um desses significados produzidos pelo homem – e julgo que fora desses não há mais, a concordar com um poeta que, a denunciar todas as fantasmagorias iludidas com a esperança de não o serem, pergunta a seus criadores: “o que é tudo senão o que pensamos de tudo?”, o mesmo poeta que noutra ocasião também diz:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto

Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.

Toneladas de pedras e tijolos: significados, fantasmagorias, ilusão de ótica!
E o fotógrafo, com ele os poetas, nos convida a aprender a olhar, a re-conhecer que nossas imagens não são senão produto (poiesis) de nossa solidão e de nosso desamparo, das vertigens decorrentes de nossa queda no tempo, este abismo de cujas entranhas ela, a morte, nos espreita. Abismo, que, outra figura do deserto e da morte, é nosso único quinhão. Resta encará-lo de frente e “dizer-lhe que tua casa é segura, que há força interior nas vigas do telhado”, e que, contudo, “tua casa”, tua habitação, “não é lugar de ficar”, “mas de ter de onde se ir”. Ir para onde, afinal? Para “lá!” Ora, o que é propriamente esta segurança e esta força interior, esta decisão, enfim, de que fala Max Martins? Penso ser aquilo mesmo que a filosofia, seja com Nietzsche, quando propõe “amar o destino”, seja com Heidegger, quando fala da propriedade, do ser próprio, por exemplo, no parágrafo 50 de “Ser e Tempo”:

A morte é uma possibilidade de ser que o Dasein tem, a cada instante, de assumir ele próprio. Com a morte, o Dasein encontra-se consigo mesmo no seu poder-ser mais próprio (autêntico). Nesta possibilidade, trata-se pura e simplesmente para o Dasein do seu ser-no-mundo. A sua morte é a possibilidade de já não ser Dasein. [1]

Eis então como vejo, como recebo a exposição, as “Conversas com Miguel Chikaoka – Trajetórias do Fotográfico”, as figuras da errância, das “Cabanas” de Max Martins, Tó Teixeira e do jovem Miguel: uma referência ao “habitar”, ao existir, à Poesia, em sentido existencial, como modo de produzir (poiesis) sentido. A propósito, dois outros textos de Heidegger me parecem fundamentais para aprofundar e esclarecer o que aqui penso da relação entre Poesia, construir, habitar, existência e morte, que são: “Construir, habitar, pensar” e “… poeticamente o homem habita…”, nos quais a linguagem desponta como via de acesso à mencionada relação. Neste último, inspirado no poema “In Lieblicher Bläue…(No azul sereno…)”, de Höderlin, Heidegger, comenta (p. 167):

Fotógrafo Miguel Chikaoka  

Quando Höderlin fala do habitar, ele vislumbra o traço fundamental da presença humana. Ele vê o “poético” a partir da relação com esse habitar, compreendido nesse modo vigoroso e essencial.
Isso decerto não diz que o poético seja apenas um adorno e acréscimo ao habitar. O poético do habitar também não significa apenas que o poético anteceda de alguma maneira o habitar. As palavras “…poeticamente o homem habita…” dizem muito mais. Dizem que é a poesia que permite ao habitar ser um habitar. Poesia é deixar-habitar, em sentido próprio. Mas como encontramos habitação? Mediante um construir. Entendida como deixar-habitar, poesia é um construir.

Desse modo, vemo-nos agora diante de uma dupla imposição: de um lado, cabe pensar, a partir da essência do habitar, o que se designa por existência humana; de outro, cabe pensar a essência da poesia, no sentido de um deixar-habitar, como o construir por excelência. Buscando o vigor essencial da poesia na perspectiva mencionada haveremos de adentrar a essência do habitar.

E mais à frente (173):

No sentido rigoroso da palavra, poesia é uma tomada de medida, somente pela qual o homem recebe a medida para a vastidão de sua essência. O homem se essencializa como mortal. Assim se chama porque pode morrer. Poder morrer significa: ser capaz de morte como morte. Somente o homem morre – e, na verdade, continuamente, enquanto se demora sobre esta terra, enquanto a habita. Seu habitar se sustenta, porém, no poético.

E, para encerrar, cito o primeiro dos textos, que afinal se complementam. Nele, Heidegger, a recorrer, como de costume, às etimologias, aproxima ainda mais, neste recurso à linguagem, a relação daqueles elementos. Diz ele (127):

Construir significa originalmente habitar. Quando a palavra Bauen, construir, ainda fala de maneira originária, diz, ao mesmo tempo, que amplitude alcança o vigor essencial do habitar. Bauen, buan, bhu, beo é, na verdade, a mesma palavra alemã bin”, eu sou nas conjugações ich bin, du bist eu sou, tu és, nas formas imperativas bis, sei, sê, sede. O que diz então: eu sou? A antiga palavra bauen (construir) a que pertence bin”, “sou”, responde:ich bin”, “du bist(eu sou, tu és) significa: eu habito, tu habitas. A maneira como tu és, eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre a terra é o Buan, o habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar.

Poesia é, pois, habitar; habitar é ser; ser é construir; construir é aprender a morrer. Tal aprendizado, tal mudança de perspectiva se completará se nós, no curso da errância, mas firmes e produtivos, satisfeitos por finalmente havermos desmascarado nossas ilusões, e já reconciliados com o Destino, e de peito aberto ao trágico, pudermos, fortes, dizer, a exemplo do filósofo do “amor fati” e daquele já citado poeta:

Vem, noite antiqüíssima e idêntica,

Noite Rainha nascida destronada,

Noite igual por dentro ao silêncio. Noite

Com as estrelas lantejoulas rápidas

No teu vestido franjado de infinito.

Amar o destino, ser propriamente não significa desejar ou provocar a própria morte, como ocorre a quem vê na vida um fardo insuportável, e, por amá-la, mas, contudo, sem aceitá-la em seu assim, decide morrer, já dizia com quase as mesmas palavras, Schopenhauer; significa fortalecer-se justamente no reconhecimento de que é assim, e, apesar de tudo, vibrar com o assim.

Poesia é, pois, errância. Mas errância não é necessariamente desvio. Este caracteriza toda tentativa de fuga ou mascaramento do assim. Permanecer na simples errância, e não desaguar no desvio, significa abrigar-se na segurança da busca paradoxal, como disse o poeta evocado na exposição: significa buscar, não “ter aonde ir”, mas justamente um: “ter de onde se ir”. Este “de onde” revela a consciência sobre a natureza do Habitar, que, como dito, quer dizer simplesmente errância, trânsito; razão de ser de toda “Cabana”, habitação provisória – e por isto definitiva. Ou seja: Assim. Poesia!

Enfim:

Tua casa não é lugar de ficar

Mas de ter de onde se ir


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Texto publicado originalmente so site MUSA RARA

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Edilson Pantoja é escritor & filosofo, autor dos romances Albergue Noturno (Belém: Edições IAP, 2005), com o qual ganhou em 2005 o cobiçado “Prêmio IAP de Literatura”, promovido pelo Instituto de Artes do Pará, e A Pedra de Babel (São Paulo: Editora All Print, 2010)


REFERÊNCIAS:

HEIDEGGER, M. Construir, habitar, pensar. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002,pp. 125 -141.
HEIDEGGER, M. “… poeticamente o homem habita…” In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002,pp. 165 -181.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1998.
MARTINS, Max. A Cabana. Consultado em:
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
PASQUA, Hervé. Introdução à leitura de Ser e Tempo de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
PESSOA, Fernando. Poemas diversos. Trechos pinçados na ordem em que aparecem desde os respectivos sites:

Matéria de jornal em:

Imagem:
CHIKAOKA, Miguel