5/22/2011

Documentário Roberto Bolaño





Documentário Bolaño cercano, de Erik Haasnoot, que integra o livro de ensaios Bolaño salvaje. A família e os amigos mais íntimo do escritor chileno Roberto Bolaño conversam sobre sua vida e revelam algumas chaves de sua escrita. Ambientado em Blanes, Barcelona e Cidade do México, Bolaño cercano recolhe os testemunhos de Carolina López, Alexandra e Lautaro Bolaño, Antoni García Porta, Enrique Vila-Matas, Rodrigo Fresán e Juan Villoro









5/19/2011

VIDA E ESCRITA EMERGEM INSEPARÁVEIS: sobre Naufrágios de Giselda Leirner





              

Por José M. Neistein

O ciclo de Lieder de Schubert "Viagem de Inverno" começa com os seguintes versos de Wilhelm Müller: "Aqui vim como um estranho/Como estranho parto". Samuel Beckett era um grande admirador desse ciclo, cujo profundo conteúdo existencial o influenciou grandemente, como ele declarou em várias ocasiões. A dolorosa experiência de não pertencer, de ser um corpo estranho dentro da transitoriedade da vida terrestre é a divisa de sua obra. Beckett, por sua vez,, é uma influência marcante na escrita de Giselda Leirner . Como em Beckett, os personagens de sua ficção, além de viverem alienados no mundo e na sociedade, e disso terem lúcida consciência, são também estranhos a si mesmos, não cabem dentro de suas peles, têm imensa dificuldade de se comunicarem com os seus semelhantes, e uma dificuldade ainda maior de conviverem consigo mesmos. A memória, instrumento-chave que eles usam para reconstituirem suas histórias pessoais, é também o instrumento que os dilacera.

Nesta coletânea de contos, todos eles são fragmentos de vida, episódicos ou memoriais, todos eles escritos na primeira pessoa. Narradora e protagonistas muitas vezes se fundem, se confundem. Ficção e realidade são inextricáveis. Enquanto a ficção se alimenta da vida, a vida emerge como ficção. E o que é que torna possível para o leitor - e para a própria Autora - esse fluxo e refluxo? A escrita. A escrita literária. É graças a ela que a narradora nos fala dos destinos de suas criaturas. E a nossa empatia com as criaturas só é possível pelo testemunho escrito da criadora. Da criadora nos vem a perspectiva das criaturas. O sopro de vida que alimenta as criaturas vem da criadora. Mais ainda: a criadora se desdobra nas criaturas, e, não raro, criaturas e criadora são uma só e única entidade.

O ponto de partida na moldagem dos personagens é a própria Autora, ou seres reais a ela relacionados ao longo de sua vida, parentes, amigos, conhecidos, rostos individuais de acontecimentos que cruzaram sua trajetória, amores e desamores, tudo tranfigurado pela imaginação, tudo metamorfoseado pela arte. Nesse complexo contexto, alguns temas se sobressaem. São eles episódios de dimensões existenciais, tomados de empréstimo da história da família na Polônia e no Brasil, da vida judaica na Europa oriental, antes, durante e depois do Holocausto, e dessa mesma vida transplantada para o bairro do Bom Retiro em São Paulo, nas décadas de 1930, 40 e 50, resposta brasileira ao Lower East Side de Nova
York, para onde convergiram imigrantes foragidos, primeiro, dos pogroms, depois, do Holocausto, e naquele bairro viveram e sofreram as humilhações da abjeta pobreza que  muitas vezes já conheciam de antes, de seu desenraizamento, de sua rejeição. É um mundo de ontem que a Autora conhece bem, e que ela sabe usar como limite extremo da experiência da consciência e da alienação, e, portanto, como metáfora da própria dor de existir. Mas há personagens afluentes também, cujas fortunas não os isentam das angústias do estranhamento e da alienação.

Já se disse muitas vezes, e de muitas formas, que toda literatura de ficção válida é autobiográfica, qualquer que seja o gênero. O caso em pauta se insere nesse rol. Ele é o produto de uma maturidade atingida pela vivência e pela reflexão. É o produto de uma escrita que nos fala de pertp pela postura franca e honesta de alguém que sabe que os segredos de toda uma vida não valem a pena serem guardados para a eternidade. Sabe que seu destino petence à memória coletiva, e sabe que é a escrita literária que lhe dá a necessária abrangência e amplidão, dignas de serem partilhadas. Nela, pudor e despudor, sexo, amor  morte, amalgamados, não são valores morais ou imorais: são categorias neutras, parte integrante de um desejo de comunicação e conscientização incoporados à vida e ao seu sentido, ou à sua aparente falta de sentido.

A narrativa, entrecortada de digressões, reflexões e diálogos, é direta, coloquial, e fala ao leitor sem intermediários, com a intimidade tácita de quem não tem nada a esconder, nem sequer os segredos de sua própria escrita, que precisa de cúmplices. Nós somos os cúmplices, e experienciamos essa carga. Embora a ação dos contos se desenrole no nível secular, há, contudo, em suas escavações geológicas mais profundas, camadas de inquietação e aspirações religiosas, espirituais, justiceiras, um espírito de Jó que desafia a existência de Deus e de sua possível relação com os anseios humanos. Vários personagens indagam, buscam, e geralmente não encontram Deus. Sofrem tanto que não se lembram de procurá-Lo dentro de si mesmos. O desejo ardente de encontrar um mínimo de certeza dentro das muitas incertezas, atravessa o livro todo, como uma lança arremessada com toda força.

A grande diversidade de perdonagens que transitam em seus contos é vista pelo leitor, e pela própria Autora, em duas grandes categorias: aqueles que escrevem e aqueles que não escrevem. Os que não escrevem, levam vidas imediatas, geralmente vividas mas não refletidas. Os que escrevem, levam vidas mediadas, para falar com Hegel. Vivem suas vidas, suas angústias, seus impasses, e os plasmam em suas escritas, resultados de suas reflexões e da consciência de suas consciências. Os que escrevem também lêm. Lêm a Bíblia Hebraica, os clássicos gregos, os místicos medievais, os novelistas ingleses, franceses e russos, Nietzsche, William Burroughs e mais, e mais. Essa combinação aprofunda o sentido de suas relações com pais, avós, filhos, irmãos, cônjuges, amantes, amigos, inimigos, estranhos. E consigo mesmos, principalmente. A escrita duplica a vida e a sustenta. Vida e escrita emergem inseparáveis.

A agilidade dos diálogos vem da experiência que a Autora teve com o teatro, num dado momento de sua vida. A expressiva dimensão das indagações existenciais provém de sua vasta experiência com a filosofia, a teologia e a literatura, do passado e do presente. Seu léxico é variado, rico e accessível a todos os níveis de leitores e de leituras. Sua sintaxe é fortemente calcada no português culto, urbano, da cidade de São Paulo, e isto quer também dizer que ele tem italianismos e europeismos de várias fontes e de várias culturas, que dão à sua linguagem um distanciamento das fontes castiças, e uma aproximação aos modos de expressão - porque não dizer? -cosmopolitas. Giselda Leirner faz uma literatura escrita em português, mas que também transpira climas conceituais e emocionais de outras culturas, além da brasileira, da paulistana, tanto pela perspicácia da arguta observação de largas estruturas e miúdos pormenores reveladores, como por suas aguçadas antenas apátridas e universais. Não residirá aí o insubstituível tesouro da solidão, em sua roupagem e em sua nudez tão pessoais?

José M. Neistein
                                                                                         Washington, D.C. 
                                                                                         maio de 2011

 "Naufrágios", contos, Giselda Leirner , Editora 34, São Paulo, 2011, 133 pp

                                                                                        



5/09/2011

PENSAR / MIGRAR: filosofia da migração em Vilém Flusser


Por Charles Feitosa



1) Introdução

O objetivo desse texto é expor as principais diretrizes do projeto de uma filosofia da migração por Vilém Flusser.  Embora o problema da migração não pareça ter estatuto filosófico, veremos que trata-se aí de uma das questões mais importantes da filosofia. Flusser era ele mesmo um migrante, suas reflexões sobre os movimentos migratórios eram para ele ao mesmo tempo filosóficas e autobiográficas. O presente ensaio insere-se, portanto, na pesquisa sobre "Memória, Linguagem e Identidade nas Autobiografias Filosóficas", que desenvolvo junto ao Mestrado em Memória Social e Documento (MMSD) da UNIRIO.

2) Quem foi Vilém Flusser?

Surpreendentemente poucos no Brasil conhecem esse filósofo de origem tcheca que morou e ensinou durante 30 anos em São Paulo e tem uma vasta obra, traduzida do português para o inglês, francês e alemão. Flusser nasceu em 12 de maio de 1920 em Praga, filho de pais judeus. Cresceu falando alemão e tcheco como Kafka. Estudou filosofia na universidade de Praga a partir de 1939, mas teve que interromper os estudos com a invasão de Hitler à república tcheca. Emigrou então para Londres e depois para o Brasil. Sua família foi toda dizimada em campos de concentração.
No Brasil, durante a década de 40 realizou diversos trabalhos para sobreviver; continuou seus estudos de filosofia de maneira informal e autodidata. Nos anos 50 aparecem as primeiras publicações em jornais e revistas sobre problemas de filosofia da linguagem e fenomenologia do cotidiano. Em 1959 é convidado a assumir uma cadeira de filosofia da ciência na USP. Em 1963 lança seu primeiro livro, intitulado "Língua e Realidade". De 1965 a 1972 divide a tarefa de lecionar filosofia na faculdade humanística do ITA de São José dos Campos com a publicação de diversos artigos em jornais e revistas, além de palestras como professor visitante em Yale, Barcelona e Berlin. Em 1972 começa a enfrentar problemas com o regime militar e decide emigrar novamente, dessa vez para a França. A partir de 1975 torna-se professor da escola nacional de fotografia de Aix-en-Provence, onde prosseguirá suas pesquisas sobre novas mídias e cultura. No dia 27 de novembro de 1991, um dia após uma conferência sobre mudança de paradigmas da ciência no Instituto Goethe de Praga, morre em um acidente automobilístico. Suas principais publicações são "História do Diabo" (1965), "A Força do Cotidiano" (1973), "Por uma Filosofia da Fotografia" (1983), "Gestos" (1991). Pode-se dizer que era um filósofo que levava a sério a superfície e as aparências. Costumava citar Goethe como lema de seu trabalho: não procurar nada atrás dos fenômenos, eles mesmos são o ensinamento.

3) Filosofia da Migração

É sintomático que a maioria dos textos, anotações e projetos de livros que tenham como tema a migração tenham sido escritos em meados da década de 70, depois do banimento de Flusser do Brasil por causa ditadura militar. A expulsão da segunda pátria, a pátria escolhida parece ter causado uma frustração maior do que a expulsão da pátria original, a república tcheca.
Pela própria biografia de Flusser sabemos que ele viveu uma experiência radical de desenraizamento, de falta de chão (essa expressão serve de título à sua autobiografia "Bodenlos", publicada em (1999). A sensação de falta de lar é descrita com precisão em uma de suas conferências:

Nasci em Praga e meus antepassados parecem ter morado por mais de mil anos na cidade dourada. Eu sou judeu e a frase ‘no ano que vem em Jerusalém’ me acompanha desde a infância’. Estive envolvido durante três décadas na tentativa de construir uma cultura brasileira a partir da mistura entre elementos europeus ocidentais e orientais, africanos, asiáticos e indianos. Moro em uma aldeia na Provence, fui incorporado visceralmente nessa comunidade atemporal. Fui educado pela cultura alemã e participo dela já há muitos anos. Enfim, não tenho pátria, porque muitos lares ou pátrias se acumulam em mim. Isso se exterioriza diariamente no meu trabalho. Sinto-me em casa em quatro línguas e sou obrigado a retraduzir tudo que escrevo nessas quatro línguas [1] .

Ao pensar a questão da migração Flusser está asssumindo o caráter autobiográfico de sua filosofia. Sua "filosofia da migração" nunca foi sistematizada, mas apresenta algumas teses instigantes. Em primeiro lugar (A), Flusser afirma que a dificuldade dos sedentários em lidar com os arrivistas é sintoma de uma doença estética. Em segundo lugar (B), o autor defende a posição de que o exílio pode ser um fenômeno positivo. Finalmente (C), para Flusser migrar é uma atitude de revolta contra as condições estabelecidas e uma forma de engajamento para promover transformações.

A) Genealogia estética do amor pela pátria

Flusser desloca o problema da migração do âmbito sócio-econômico para o ontológico ao estabelecer as bases do patriotismo dentro de uma lógica estética. Segundo o autor, toda casa é para seu morador algo bonito, pois ele está acostumado com ela, sente-se seguro, tranquilizado, a casa não muda, permanece. Já o que vem de fora é inabitual, estranho, incômodo. Tudo que parece familiar reflete nossa própria face. O confortável parece bonito; já aquilo que é diferente, inusual, causa desconforto, parece feio.
A lógica estética torna tudo belo quando incorporado à casa, mas também torna tudo feio, quando algo é expelido, banido ou expulso. A tese de Flusser é a de que "o patriotismo é antes de tudo um sintoma de uma doença estética" (op.cit.,p.29). Sentir apenas o lar como bonito, enraizar-se na pátria original e manter-se fechado para o feio que chega e que poderia ser transformado em belo...
O imigrante é para o enraizado alguém ameaçador, pois expõe a fragilidade do lar sagrado. O arrivista é alguém que já está no lugar, mas não inteiramente, é um aspirante à residência, taxado de recém-chegado pelos locais, para que estes possam se sentir mais seguros na sua moradia. Com a chegada dos migrantes surge um polêmico diálogo que tanto poder gerar um pogrom ou um enriquecimento da pátria, ou ainda uma libertação do enraizado de suas raízes. Mas será possível desenraizar-se?

B) Exílio como experiência libertária

O enraizamento do homem é um conceito ideológico, pois na prática ninguém é enraizado. Falar de raízes faz o homem parecer um legume: fixado na terra. Outra tese fundamental de Flusser diz que para ser homem é preciso assumir o desenraizamento. O exílio, que é a expulsão violenta de pessoas de suas condições originais, pode vir a ser uma oportunidade criativa, um bom método, para que as pessoas se tornem seres humanos no sentido mais pleno da palavra.
O argumento de Flusser desenvolve-se da seguinte maneira: quem é expulso é retirado do seu lugar habital. O hábito é como uma capa ou véu que cobre as questões, as relações, os estados de coisas. No âmbito conhecido e familiar do morador, do sedentário, do nativo, somente as alterações são perceptíveis e informativas, mas não o que permanece (pois parece redundante). No exílio tudo é inabitual, o exílio é um oceano de informações caóticas. Mas a condição de não morador impede que essas informações possam ser trabalhadas como mensagens cheias de sentido, é preciso processar esses dados. Quem não conseguir, será como que engolido no exílio, é questão de sobrevivência. Processar os dados caóticos é inventar, é preciso ser criativo quando se foi expulso de sua pátria. Trata-se aí de uma apropriação positiva do banimento contra o mero "compadecer-se" do exilado. Quem simplesmente ajuda o expulso quer reintegrá-lo no ordinário e habitual. Trata-se da mesma lógica que promove o exílio, ainda que inversamente: os expulsos e banidos eram fatores de perturbação da ordem e foram expulsos para que a pátria pudesse se tornar ainda mais comum e habitual do que antes.
O hábito é como um cobertor de algodão, cobre todos os cantos e abafa os sons, é anestésico, esconde inforamacões. O hábito faz tudo ficar bonito e tranqüilo. Vimos que a boniteza do lar habitual é a fonte do amor à pátria. Tira-se o cobertor e tudo fica monstruoso, inabitual, "entsetzlich" (deslocado). No exílio, onde o cobertor do hábito foi retirado, passamos a perceber de forma mais apurada o mundo e tornamos-nos revolucionários, mesmo que apenas para poder morar no novo lugar.
Para o exilado toda terra nova é América, para quem já mora há muito no mesmo lugar todo território é antigo, mesmo que seja na América. Para Flusser  somente o migrante é verdadeiramente americano, mesmo quando ele migra para outros lugares, antigos ou sagrados, a atmosfera americana está em todo lugar onde ele se sentir sem raízes:

É indiferente para onde se é banido. Para os exilados mesmos todo exílio é terra nova. Mas para moradores originais toda terra tem um outro caráter, a saber, dos hábitos, que cobrem as verdades. Existem países que por hábito se consideram novas (por exemplo, a América, ou a terra de nossos netos, ou a terra dos aparelhos tecnológicos). E existem terras que por hábito são antigas, se tomam como sagradas (por exemplo Jerusalém, ou a terra dos textos lineares, ou dos valores burgueses) (op.cit., p.106).

O exilado toma sempre a terra com um novo caráter, obrigando os que se acham novos a se descobrir como antigos e os antigos a se descobrir como animais habituais. Os exilados são desenraizados que procuram desenraizar tudo a sua volta, para poder lançar novas raízes. Será preciso ter consciência desse processo vegetal, que o homem não é uma árvore ou legume, que não precisar fincar raízes fixas no solo.
Dá trabalho não fincar raízes, a dignidade humana está na falta de raízes e na liberdade de permanecer estrangeiro, diferente dos outros, um outro dos outros"a patria do apátrida é o outro". A hipótese flusseriana vale tanto para os "boat people", palestinos, afegãos ou curdos, mas também para os idosos, aqueles que sentem expulsos do mundo de suas crianças e netos; ou ainda para os humanistas, que sentem na pele um certo exílio em relação ao mundo tecnológico. Estamos em uma época de banimentos, é tarefa do pensamento reavaliar esses fenômenos culturais positivamente também.

C) Migração como Revolta e Engajamento

"Nós migrantes, somos as janelas através do qual os nativos podem ver o mundo", diz Flusser em uma de suas entrevistas. O homem é condicionado por coisas naturais ou culturais, pode ser explicado até certo ponto por esse condicionamento, mas o homem não é totalmente condicionado, existe sempre um lugar sem coisas naturais ou culturais, no qual ele é livre. Esse lugar pode ser chamado de ironia (figura de retórica de dizer o contrário do que se entende, tal como na ironia socrática que consistia em simular uma certa ignorância para demonstrar a fragilidade do discurso do interlocutor, enfim, um discurso estratégico contra o poder). O movimento que eleva o homem à ironia não pode ser explicado ou previsto pelas suas condições naturais ou culturais, mas exatamente por ser contra ou apesar delas. O movimento do homem para a ironia pode ser chamado de revolta, o movimento para fora da ironia pode ser chamado de engajamento (uma volta às condições da situação, com o fim de alterá-las). Os dois movimentos compõem a liberdade humana. O homem é livre porque pode se revoltar contra suas condições e alterá-las. A possibilidade da ironia e do engajamento diferencia o homem das coisas ao seu redor... É a sua dignidade, qualquer explicação do homem apenas pelas condições naturais ou culturais é uma des-dignificação do homem...
Flusser chama de "emigração" o movimento da revolta na ironia e de "imigração" o movimento da ironia para o engajamento. Minha revolta me leva a sair do meu lugar, a migrar, mas esse migrar também é uma fuga. Qual a diferença entre migrar e fugir?  O homem é livre quando pode fugir? Quando eu abando um condicionamento para readentrar em outro condicionamento num mesmo nível, eu sou um apenas refugiado. Eu não me revoltei, nem me engagei, apenas me deixei levar... Trata-se de um movimento previsível e por isso mesmo sem dignidade, sem liberdade. Na prática toda emigração tem algo de fuga e toda imigração tem algo de salvação. Qual será então a diferença mais radical?

O refugiado está preso, positiva e negativamente, nas condições que ele abandonou. Ele as carrega consigo em seu caminho, na forma de uma mistura de amor e ressentimento. O emigrante ao contrário, distanciou-se de suas condições, na sua revolta ele seleciona o que lhe interessa e o que deve eliminar. O refugiado é alguém que está fechado de novo, não tem nada para dar, nem para tomar. O emigrante se mantém aberto para a assimilação das novas condições e para atuar de maneira modificante (op.cit., p.39).

As categorias da "filosofia da migração" de Flusser são ainda vagas e nebulososas. A fronteira entre a fuga e a autêntica emigração nunca ficará suficientemente clara. Mas ela tenderá a tentar transmutar o sofrimento de quem é forçado a se exilar em uma dor de parto, a interpretar a migração como uma experiência radical de liberdade, cheio de mensagens para o futuro.  

IV.  Filosofia e Migração

O sedentário tem propriedade, o viajante experimenta. O sedentário mora no habito, o viajante corre perigo. O sedentário vive astronomicamente, o nômade vive metereologicamente. No século XXI não é mais a propriedade, mas a informação que garante poder. Não é mais a casa que se torna funcional, mas a comunicação. Começamos todos a nos nomadizar na era da informação. Vivemos numa época em que fomos banidos da "realidade", não temos mais certeza se o que vemos é verdadeiro ou não. Depende de nós decidir se esse desenraizamento do real será vivenciado como uma exílio forçado ou como uma experimentação que permite novas e criativas formas de existência. A migração é um tema filosófico por excelência porque fazer filosofia é uma espécie de migração interior. Filosofar é se exilar na própria casa, na cidade, no mundo, em si mesmo, elevando a cobertura do habitual que repousa sobre as coisas.

Charles Feitosa é professor e pesquisador do Programa de Pós-Gradução em Artes Cênicas da UNIRIO, com pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de Potsdam-Alemanha e doutorado em Filosofia na Albert Ludwigs Universität Freiburg, no mesmo país. Além disso, é vice-coordenador de graduação em Filosofia da UNIRIO. Sua experiência na área tem ênfase em Estética moderna e contemporânea, onde atua principalmente com arte, memória, finitude, corpo, cultura pop e dança.




5/02/2011

JOSÉ GIL: e x p e r i ê n c i a s – b o r d e r l i n e


JOSÉ GIL | CONVERSAÇÕES 


José Gil é autor de várias obras relevantes, que tratam de filosofia, artes, dança e literatura. Publicou no Brasil: “Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa” (Relume Dumará) e “Movimento Total: o corpo e a dança” (Iluminuras). Lançou em Portugal, entre outros, “O Imperceptível Devir da Imanência” (Relógio d' Água)   


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Pergunta – A IDENTIDADE É UMA QUESTÃO ESSENCIAL PARA O SENHOR, É OBJETO DO SEU ESTUDO. PODEMOS COMEÇAR PELA DESCOBERTA E DEFINIÇÃO DA SUA IDENTIDADE? 

José Gil – Nasci sem as determinações habituais - sociológicas, linguísticas - da identidade. Se tenho hesitações quanto à minha identidade? Possivelmente. Mas a um nível muito profundo. Sou filho de colonos. Nasci numa pequena cidade em Moçambique, em Quelimane, onde viviam mil brancos, e ao lado vivia uma multidão de dezenas de milhares de negros. Nós constituíamos uma ilha pequena. Não tínhamos o que eles tinham relativamente ao espaço. Não tínhamos o nome das árvores, da terra, das colinas.

P – ERA UMA ESPÉCIE DE FUSÃO COM O ESPAÇO? 

José Gil – Eles tinham a sua linguagem. Nós é que não tínhamos vocabulário para designar  esse espaço. Tínhamos um espaço reduzido, empobrecido. Os elementos: tudo em África é muito forte. O calor, o sol, a chuva. Em Quelimane, lembro-me de um mês em que choveu todos os dias, consecutivamente. O nosso vocabulário era para os lírios do campo, que não existiam lá. Cantávamos canções na escola primária, que eram sobre o campo, em Portugal. Portanto, vivíamos em distância. 

P – DESLOCADOS? 
José Gil – Sim. Nascemos já, de certa maneira, em estado de exílio. Mas não acho que esse estado fosse sentido como uma falta de identidade. Compensámos isso com outras simbolizações. Tínhamos a nossa maneira de nos sentirmos moçambicanos. Que era à parte da maneira de um negro, um africano. Não tenho problemas de identidade. Só tinha - só tenho - se me pergunto, semi-abstractamente, onde é que quero ser enterrado. O ser enterrado implica um sítio a que se pertence. 

P – BACK TO BASICS?

José Gil – Exactamente. Não sei onde quero ser enterrado. Uma vez vi aqui um cemitério lindíssimo, e pensei: gostaria de ser enterrado aqui. Mas só tem a ver com razões estéticas, e não sentimentais. Se quis pensar o problema da identidade portuguesa foi porque o vejo à minha volta, e ele afecta-me. Conheci bem um país pequeno onde se discutia a questão da identidade: a Córsega. Discutiam se tinham uma identidade própria, se tinham uma origem italiana, toscana, francesa, se tinham de ser anexados. Li muito sobre o problema nacionalitário (é assim que se designa na literatura). Mas essa não é para mim uma questão principal. 

P – PORQUÊ? 

José Gil – Poderá ser por uma patologia qualquer... Serei esquizoide e não terei problemas desses? Quem sou eu relativamente aos meus compatriotas, à minha pátria, ao sol, à História, ao meu passado? Eu, eu, eu. 

P – QUEM SOU EU, É UMA QUESTÃO ESSENCIAL EM FILOSOFIA. DEPOIS, PODE DESLOCAR ESSA QUESTÃO PARA DIVERSOS CAMPOS ? 

José Gil
– E até posso mostrar que "quem sou eu" pode ser uma questão subordinada a outras, mais importantes. O que me surpreende mais - e isto não é uma glosa snobe do Fernando Pessoa - é que somos muitos. E isso todos nós vivemos, sentimos, experienciamos. 

P – SOMOS. ESTAMOS EM TRANSFORMAÇÃO PERMANENTE. 
O SERMOS MUITOS, A TRANSFORMAÇÃO, É POR CAUSA DO DESASSOSSEGO? "JOSÉ GIL, O DESASSOSSEGADO": SERVE-LHE? 

José Gil – Sim, absolutamente. Isso não tem uma conotação necessariamente má. 

P – INTRODUZI O DESASSOSSEGO COMO GÉRMEN DE MUDANÇA?. 

José Gil – É isso mesmo. A transformação de nós próprios é uma riqueza fundamental em nós. Há uma frase do Kafka que adoro: "Desgraçado daquele que perdeu o poder de se transformar." Nós é que não olhamos, julgamos que somos sempre os mesmos. É uma maneira de viver socialmente sem tumultos. Mas numa escala microscópica, estamos sempre a ser outros (emocionalmente, do ponto de vista da inteligência...). Com tudo isto, há qualquer coisa que tem de se manter; senão, há o perig o de psicose. É a identidade. 


P - FALE-ME DA DESCOBERTA DE SI EM MUTAÇÃO, EM DESASSOSSEGO? 

José Gil – Há pessoas que aos 15 anos têm uma instabilidade, uma condensação, uma pluralidade de emoções, de sombras... Sei lá. Passou por tanta coisa. Desde o facto de cada experiência mínima, desde miúdo, ser uma experiência radical, crucial. Tenho uma certa resistência - não é pudor - em falar de mim porque começo logo a objectivar. Posso falar-lhe daquele facto, na igreja, de quando fiz a primeira comunhão e tive aquela visão... mas para quê? 

P – ENTÃO, FALE DO QUE ACHA QUE IMPORTA. 
José Gil – Muita coisa importou. Tive uma experiência de exilado. Há vários tipos de exilados, e não estou a contar com os emigrantes operários, lavradores portugueses. Estou a falar de uma classe média, média-rica que podia exilar-se. Exilei-me também por razões políticas, mas não foi sobretudo por isso. Não foi por que estivesse ameaçado. Pertenci a uma das categorias em que se dividiam esses exilados. 

P – QUE CATEGORIAS ERAM ESSAS? 

José Gil – Uma delas eram grupos que não se abriam à sociedade francesa e europeia; fechados sobre si, só falavam do que estava a acontecer em Portugal, da Avenida da Liberdade, das notícias que chegavam de Portugal. Outros abriam-se malgré eu x - sem que eles o quisessem; e como não estavam preparados para isso, perdiam-se. Entravam em loucura, em alcoolismo, as promessas de juventude de que seriam grandes poetas iam por água abaixo, suicidavam-se. Uma terceira categoria: rapazes e raparigas que se abriam à sociedade francesa, e que o queriam. E aí começava um tumulto de outro tipo: não ser integrado pela sociedade francesa, e perder todos os benefícios secundários que se tinham em Portugal. Em Portugal, quando havia problemas emocionais, desregulamentos, 
havia sempre em família. 

P – UMA CASA, UMA  ASA?
 
José Gil – Ali não havia asa. Se isso rebentava, ninguém estava ali para proteger. Tive experiências desse tipo. Não há o pai e a mãe - que estão em Moçambique -, não há o irmão, não há os amigos - que estão ali, mas não servem para nada. E você vê-se na rua, paralisado, a olhar para a esquerda e para a direita: "O que é que vou fazer de mim agora?" São experiências borderline, que não estão longe da 
psicose. Aos 20 anos tive uma experiência de meses, e veio-me uma ideia fortíssima, que me agarrou: é preciso pensar, porque é uma questão de vida ou de morte. Tenho de me salvar disto. Aí é que apareceu [a questão da identidade]: saber o que sou, de onde é que venho, os pais, porque é que estou aqui, para quê. 

P – E PENSAR TORNOU-SE UMA FORMA DE SALVAÇÃO? 

José Gil – Sem dúvida. Em Portugal também havia explosões. Um exemplo: vi casais que vinham de Portugal e, passados uns meses de Paris, separavam-se. Havia um ajustamento forçado pelas circunstâncias que fazia com que as pessoas fossem sobrevivendo. Sem as protecções de Portugal, lá fora - como se dizia - explodiam. Chegava-se ao osso. Essa experiência, dos jovens portugueses, artistas, estudantes, de um certo grupo, não foi maravilhosa. 

P – ISSO QUE DIZ FAZ PENSAR EM MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO. EXÍLIO, DESAMPARO, SUICÍDIO. OS ACONTECIMENTOS A QUE ALUDE SÃO COISAS QUE NOS HABITUÁMOS A LER NOS LIVROS?

José Gil – Nós nascemos e vivemos sob uma ditadura. Mudava tudo: a nossa vida emocional, intelectual, profissional, a acção, o espaço de iniciativa. Os nossos conflitos eram todos metidos para dentro. Quando íamos para fora, e porque não havia as tais salvaguardas, vinham para fora, e estilhaçava-nos. 

P – A RAZÃO POLÍTICA NÃO FOI A FUNDAMENTAL QUE O FEZ EXILAR-SE. HOUVE UMA RAZÃO MAIS FORTE? 

José Gil – A razão foi que vim de Moçambique, inscrevi-me em Matemática, tinha as coisas bem arranjadas, e no entanto não suportava viver cá. Não reconhecia esta maneira de viver. Em Moçambique, apesar de estar num regime político que era o mesmo, tudo era diferente. Em Portugal, tudo estava reduzido, tudo parecia sem possibilidades. E tem a ver com a idade: lá estava no liceu, sob a alçada dos meus pais. Aqui, na universidade, eu queria mais do que a Matemática. 
P - PORQUÊ A MATEMÁTICA? 

José Gil – Gostava. Havia um ensino, lá, que puxava pela memória. Tivemos que saber de cor tratados de Biologia, Cristalografia. Sabe que eu gostava disso tudo? Sobretudo de Cristalografia. Memorizei centenas de páginas. Por razões afectivas, porque estava apaixonado, miudinho, perdi tempo... Tive só três meses para meter tudo na memória. Saí de lá dizendo: agora quero é uma disciplina de que goste e que não me obrigue a memorizar. A Matemática era pegar num ponto ezz zz zz zz, sem decorar, raciocinando, chegar a outro ponto. Foi uma causa menor. A causa maior foi gostar de Matemática. 

P – É INTERESSANTE PERCEBER COMO AS CAUSAS ACIDENTAIS, TANTAS VEZES, TÊM UMA FORÇA PROPULSORA?
José Gil – Justificam a outra... [riso] 

P – QUANDO VAI PARA PARIS, AINDA É PARA ESTUDAR MATEMÁTICA. SÓ DEPOIS É QUE MUDA PARA FILOSOFIA. FOI A GRANDE TRANSFORMAÇÃO, PERCEBER QUE ERA POR ESSA VIA QUE SE SALVAVA? 

José Gil
– Não, aí não houve crise nenhuma. Em Paris tinha de estudar seis horas por dia, além das aulas, para fazer tudo o que nos mandavam. 

P –NESSE PERCURSO - MOÇAMBIQUE, LISBOA, FRANÇA, MATEMÁTICA, FILOSOFIA - QUE VIDA QUERIA PARA SI? 
José Gil – Não sabia. Queria rebentar uma série de amarras que sentia. Só muito mais tarde tive consciência disso: eu era uma espécie de tumultozito que andava por aí. Sempre insatisfeito com o que tinha, com o que me davam, com o que podia fazer. Não queria só Matemática, queria também escrever. Queria ter uma linha em que me reconhecesse do ponto de vista afectivo. Havia a questão do estudo, de eu querer escrever, do meu interesse pela Filosofia, e havia a questão da vida. Eu quero viver! A que é que chamava viver? Ter experiências que não podia ter em Portugal. O que é ter uma experiência? É poder transformar-se de encontro a qualquer coisa. Num encontro. Encontrar um livro, uma mulher, um homem, uma criança, um bêbedo, um russo... 

P – E SER TOCADO POR ISSO? 

José Gil – Ser tocado e transformado. Há aquelas pessoas que podem ser tocadas por mil coisas fortíssimas e não se mexem no interior. E há aquelas que são tocadas por uma brisa, finíssima, de vento, e aquilo provoca uma revolução. Eu era um bocadinho assim. 

P – JÁ ERA ASSIM EM MOÇAMBIQUE? 

José Gil – Sim. Por causa do meu irmão e dos amigos do meu irmão, que eram todos marxistas, comecei a ler o Marx, sem perceber nada, muito jovem. A partir dos 15 anos comecei a perceber mais dos autores marxistas, que eram importados clandestinamente para Moçambique, e comecei a ser iniciado a outras coisas. Uma dessas iniciações foi o jazz. Tinha 15 anos e adorava jazz! O jazz era classificado pela vulgata marxista como um produto da decadência burguesa americana. Uma estupidez completa. Isso chocava com o meu gosto. Se larguei brutalmente o marxismo, aos 17 anos, foi em parte porque muitos dos meus gostos, sobretudo o jazz, não me eram admitidos. Não podia despegar-me daquilo em nome de uma ideologia. 

P – ERA TAMBÉM A RECUSA DE UMA FORMATAÇÃO? 

José Gil – Isso mesmo. Está a ver, é uma experienciazinha pequena em que se jogam muitas coisas, muitas coisas mesmo. 

P – NAQUELA ALTURA, SER DE ESQUERDA, SER DA OPOSIÇÃO, ERA SER COMUNISTA? 

José Gil – Sim. No entanto, enquanto fui próximo deles, ia a reuniões de associações marxistas, de grupos como o MUD juvenil, a que nunca aderi. Fazia-me muita coisa culturalmente. 

P – EXPLIQUE MELHOR DO DESEJO DE PERTENÇA A UM GRUPO. OU DA CONFIANÇA QUE TINHA EM SI PARA VIVER À MARGEM DOS GRUPOS. FLIRTANDO COM ELES, MAS NUNCA SE COMPROMETENDO? 

José Gil
– Isso tem a ver com a tal inquietação. Não me reconhecia neles. Eles não tinham as minhas preocupações, que eram de outra ordem e que não via formuladas na doutrina. Os meus gostos em literatura não eram os clássicos que anunciavam o realismo socialista. Eu gostava era de autores como Beckett. Aí não havia referências marxistas. 

P – E AÍ JOGA-SE NUM PLANO INDIVIDUAL. NUMA ALTURA EM QUE TUDO SE JOGAVA NUM PLANO COLECTIVO? 

José Gil – Absolutamente. Eu não tinha consciência disto. Agia como uma criança, que sabepor instinto, numa sala, a quem se dirigir. Porquê? Porque temos ali forças do mesmo ritmo. Eu estava com essas pessoas, mas eles não eram do meu mundo. Que eu não tinha feito, que eu não tinha formado. Mas não eram. 

P – HAVIA ALGUM INTERLOCUTOR PREFERENCIAL? PODIAM SER OS LIVROS? 

José Gil – Havia um amigo em Moçambique, António Paulo de Sousa Santos. Fizemos o liceu juntos. É hoje arquitecto em New Jersey. Discutíamos ao telefone durante uma hora (ele vivia na Baixa e eu na Ponta Vermelha, em Lourenço Marques), os problemas do Tonio Kröger do Thomas Mann. Problemas vitais, para nós! Isto aos 16 anos. Em Moçambique, Tonio Kröger? Está a ver, dá-lhe todo um mundo. 

P – SE PENSARMOS NAQUELE QUE FOI PROFESSOR DE LICEU NA CÓRSEGA, PARECE OUTRA VIDA, OUTRO SUJEITO? 

José Gil – É verdade. Não sei se já viveu numa ilha... Ou se é apanhado ou não se é apanhado. A Córsega é uma ilha onde a violência de tudo (dos afectos, sobretudo) é concreta. Se alguém gostou de si, como amigo, e lhe diz: "A minha casa é tua", isto significa literalmente que se você tiver problemas de dinheiro, vai falar com essa pessoa, diz-lhe: "Preciso de vender a casa", e ela deixa-a vender a casa. Aconteceu-me isso. Era uma violência que a Máfia ainda não tinha corrompido. No  meu tempo não havia Máfia. 

UM CARÁCTER VULCÂNICO? O SEU RELATO COINCIDE COM A VIOLÊNCIA DE STROMBOLI, COMO A RETRATOU ROSSELLINI? 

José Gil – Vulcânico. A ilha era, ela toda, uma espécie de interioridade exterioridade. Senti-me assim lá. Quer dizer, eu não vivia para dentro de mim, como em geral vivem osinsulares. Tudo o que se fazia era intenso, tudo o que se podia escrever era intenso. Na relação com a terra, as pessoas. E o ódio. E o amor, a amizade. Era uma sociedade violenta e cruel, ao mesmo tempo. Era o que me convinha. 

P – O MUNDO QUE SE PASSAVA DENTRO DE SI, AFINAL ESTAVA POR TODO O LADO...
 
José Gil – Sim. [Essa afinidade] traduziu-se numa aproximação política que tive com os independentistas. Que punham bombas, mas que avisavam as pessoas para retirarem tudo, os seus cães, e só faziam atentados às instituições. Era outra coisa. Tudo aquilo se passava em família - eram 150 mil pessoas. Depois descambou. 

P – ASSISTIU AO DECLÍNIO? 

José Gil – Saí quando isso começou. Houve divisões entre o movimento independentista, e começou a haver uma violência real. Ou seja, começaram a matar. Ao mesmo tempo, entrou a Máfia. A Máfia corsa, dizem, é pior do que a siciliana. É uma ilha, hoje, corrupta. Quando o aparelho judiciário passa a ser corrompido, a sociedade deixa de funcionar. Foi o que aconteceu. 

P – COMO FOI LÁ PARAR? 

José Gil – Por amor por uma corsa, por uma mulher. 

P – MAIS UMA VEZ, TUDO SE DECIDE NA PETITE HISTOIRE? 

José Gil – La petite histoire qui amène une grande histoire. [a pequena história que comporta uma grande história.] Só ensinei um mês e meio no liceu. Queriam escapar à segurança social no colégio onde estava, e puseram-me fora. Fiz queixa. Estive dois anos na Córsega, apanhei o cume dos movimentos autonomistas. Em Aléria, houve um assalto a caves de vinho, tiroteios, muita coisa. 

P – ESTAMOS OUTRA VEZ DENTRO DA LITERATURA. SÃO OS EPISÓDIOS QUE PODERIAM ESTAR NUM LIVRO DE LAMPEDUSA. QUE LIA NOS LIVROS E QUERIA EXPERIMENTAR NA SUA VIDA CÁ FORA? 

José Gil
– Mas não era por causa dos livros! Ou talvez fosse. Os livros, o que é que fazem? Eles induzem, reactivam qualquer coisa que está em si em ebulição ou adormecido. A personagem tutelar de tudo isto é uma mulher: a minha mãe. Que era explosiva! Era uma mulher à parte. Um dia, hei-de procurar compreendê-la. Ela estava no meio do mato, onde só havia dois brancos, e recebia revistas de moda de Paris. O seu universo era uma casa. O meu pai criava crocodilos, pequenos leões. Tenho fotografias minhas e do meu irmão com leõezinhos pequeninos. No meio do mato, a minha mãe aprendeu a fazer vestidos como se faziam em Paris. Aprendeu joalharia.  Dava indicações aos criados para fazerem casacos de pele de leopardo. Os criados  são muito importantes. 

P – A SUA APROXIMAÇÃO À ESTÉTICA, AO BELO, PODE TER QUE VER COM ESTECOMPORTAMENTO DA SUA MÃE? UM DESEJO DE SE MANTER LIGADA À SOFISTICAÇÃO, À BELEZA, NO MEIO DO MATO. 

José Gil – É possível. A minha mãe era poeta. Publicava. Era jornalista, dirigiu uma página. Uma boa, média poetisa. Ela considerava-se e era considerada assim. 

P – PORQUE É QUE OS CRIADOS ERAM IMPORTANTES? 

José Gil – O facto de existirem criados cria nos filhos de colonos uma horrível noção de se julgarem eleitos.  Os jovens saídos de lá não são como os outros: são de eleição. Tenho horror a isso! Se me livrei disso, demorei anos. Sabe o que é ter cinco criados, alguns deles com barbas brancas (um para fazer a roupa, outro é o 
cozinheiro), e você, com três, quatro anos, dá-lhes ordens? Fica julgando que é o rei do mundo. E isso continua. Isso forma-o. É um estrato que lhe provoca o pior. Uma consciência de uma superioridade que não tem. Nada lhe permite esse 
sentimento de superioridade. Não tinha esta consciência, mas tinha este sentimento. Como todos os brancos. 

P – ALGUMA VEZ SE SENTIU PROSCRITO? E ABAIXO, NUMA DETERMINADA ESCALA? INVERTENDO A SITUAÇÃO DA INFÂNCIA? 

José Gil – Socialmente, nunca. É essa a perversão desse estrato inconsciente. Pode ser miserável,mi nable, nunca fez nada na vida, anda para aí a vegetar; mas tem consciência superior. De onde é que lhe vem isso? Dessa relação. 

P – APESAR DE TER ESTADO MUITO TEMPO EXILADO, FOI SEMPRE UM EXÍLIO VOLUNTÁRIO. O QUE FAZ TODA A DIFERENÇA? 

José Gil – É. Quando fui para a Córsega, esse estrato tinha sido bem estilhaçado, em Paris. Portanto, já tinha o meu narcisismo muito podado... [riso] 

P – QUIS ESCREVER. ESCREVEU DE FACTO? 

José Gil – Aconteceu-me uma coisa muito esquisita aos 24 anos. Escrevia português, lá. Peças de teatro, contos. E falava francês desde os dez anos; não era bilingue, mas falava bem. De repente, senti que um edifício, que era a língua portuguesa, implodiu. Caiu! Uma semana depois, já não podia escrever em português e pus-me a escrever em francês. Foi um acontecimento dramático porque nunca consegui escrever em francês como já na altura escrevia em português. Hoje escrevo muito pior em português do que quando tinha 24 anos. 

P – O QUE TERÁ ACONTECIDO? 

José Gil – Não sei. Contei isto a um filósofo que tive a sorte de conhecer, e de quem gosto muito, o Deleuze. Abriu os olhos e disse: "Ah, muito interessante!" Mas não me disse mais nada! [riso] O que perdi foi a capacidade que tinha de inventar em português. Desde os 19 anos, eu inventava. Perder essa capacidade, para mim, era o fim. Nunca tive essa capacidade em francês, em ficção. E aí se vê a língua materna. 

P – A FICÇÃO RADICA NO MEDO, NA INVEJA, NA DÚVIDA? TUDO ISSO É PRIMÁRIO, INFANTIL, E ACONTECEU EM PORTUGUÊS?

José Gil – Pois. Eu tinha uma inveja portuguesa, uma dúvida portuguesa, os meus amores eram portugueses... Há uma identificação da vida emotiva com o português. Porque é que as emoções não hão-de ser as de um país? Há uma maneira portuguesa de ter medo, diferente da maneira francesa. Foi isso que fez barreira. 

P – TODO O SEU TRABALHO A SEGUIR É, NÃO DE INVENÇÃO, MAS DE DISSECAÇÃO E ANÁLISE? 

José Gil – Excepto um livro de ficção que escrevi em francês, La crucifiée. 

P – QUE IMPORTÂNCIA TINHA PARA SI A CONFIRMAÇÃO QUE VINHA DO EXTERIOR? 

José Gil – A confirmação é fundamental. Não é bem confirmação, é o reconhecimento. Hesitei até muito tarde entre duas linhas. Uma era ser escritor, a outra era pensar filosoficamente. Não se pode fazer uma com a outra. Para não me dividir, segui a linha do pensamento. Talvez tenha feito mal. 

P – POR ISSO É TÃO IMPORTANTE O QUE LHE ACONTECEU AOS 24 ANOS. SEM ESSE ACONTECIMENTO, A LINHA DA ESCRITA... 

José Gil – Teria continuado. Tenho textos, que nunca publicarei, dos 19 anos. Era capaz de uma plasticidade no português de que nunca mais fui capaz. Não publicarei porque são coisinhas sem interesse. 

P – DE QUEM ESPERAVA ESSE RECONHECIMENTO? TRABALHAR COM DELEUZE FOI IMPORTANTE A ESSE NÍVEL? FOI IMPORTANTE O RECONHECIMENTO DA NOUVEL OBSERVATEUR, QUE O APONTOU COMO UM DOS 25 MAIORES PENSADORES VIVOS? 

José Gil – Não passa por aí. Tenho consciência de que há milhares de indivíduos hiper- dotados, e outros milhões que são mais inteligentes do que eu. Se tenho alguma coisa a dizer, se disse qualquer coisa, foi no espaço de uma singularidade que não foi ocupada por ninguém. O espaço de singularidade é um espaço de risco. Estou a falar-lhe como não tenho o hábito de falar... Em Portugal não se fala assim. Tudo é um bocado interdito de ser dito. 

P – PORQUE É QUE DECIDIU VOLTAR, APESAR DE TUDO? 

José Gil – Não decidi. Fui mais ou menos entalado. Em França, fiz o doutoramento, fui falar com o meu orientador, que me disse: "Você chega num mau momento." Fechou-se tudo, não se recrutava ninguém. Entretanto, tinham-me convidado para a Universidade Nova. Pensei: "Vou, fico um, dois anos, e depois volto." Estou em Portugal porque era o único sítio onde podia ganhar dinheiro ensinando, fazendo aquilo que sabia. 

P – EM 1976, ESTEVE EM PORTUGAL ONDE FOI ADJUNTO DO SECRETÁRIO DE ESTADO DO ENSINO SUPERIOR. ERA A CURIOSIDADE EM VER DE PERTO A REVOLUÇÃO? OU HAVIA UM AMOR POR ESTE PAÍS? 

José Gil – Havia. Porque eu tive sonhos de que não me esqueci. O [António] Brotas mandou-me um telegrama convidando-me para adjunto. "Estás a fazer uma tese sobre poder? Vem ver o poder, de dentro." Hesitei um, dois dias. Peguei no carro e vim. Foi uma experiência extraordinária! Saí de lá diferente. Saía do ministério, olhava para as ruas e tinha uma percepção diferente das coisas. 

P – O QUE MUDA TANTO ASSIM QUANDO SE VÊ O PODER POR DENTRO? 
José Gil –Que o poder não é piramidal. Que o poder da instituição governativa, nesse período tumultuoso, não era o verdadeiro poder. Que os governantes governam segundo as forças que atravessam o campo social. Que batem na mesa como Napoleões - estou a contar coisas que vi - e tudo aquilo é bggggg! Eles não têm poder nenhum. 

P – DIZ NO SEU LIVRO PORTUGAL, MEDO DE EXISTIR QUE O ESPAÇO PÚBLICO DEIXOU DE EXISTIR E QUE FOI SUBSTITUÍDO PELA COMUNICAÇÃO SOCIAL. É ESTA QUE DITA QUE O MOVIMENTO SE FAÇA NUMA DIRECÇÃO OU NOUTRA? 

José Gil – Acho que é cada vez mais isso. A comunicação social suga essas pequenas forças, que não estão ainda institucionalizadas. 

P – QUE IMPORTÂNCIA TEVE PARA SI A CONVIVÊNCIA COM DELEUZE? 

José Gil – Decisiva. Para mim e para muitos outros. A minha geração teve grandes mestres. O período que se viveu ali foi único, daqueles que existem uma vez em cada século. Coexistiam Sartre, Merleau-Ponty, Lacan, Lévi-Strauss, Barthes, Althusser. Ali, no Quartier Latin. Víamos passar o Lacan e o Merleau-Ponty em grande conversa. 300 pessoas enchiam o auditório Descartes na Sorbonne para ouvir Deleuze falar da linguagem em Husserl. Estava tudo colonizado pela fenomenologia, por Heidegger, por Husserl. Ao mesmo tempo, já não podíamos ouvir mais daquilo! Era tão desajustado da vida que vivíamos... Decidi: rebento com tudo. 

O QUE FEZ, CONCRETAMENTE? 
José Gil – Vendi a minha biblioteca - uma estupidez imensa - na Feira da Ladra, belos livros que eu tinha. A seguir ao Maio de 68, narentrée, ouviu-se um rumor: o Deleuze está em Vincennes a dar um curso fabuloso sobre desejo. Eu nunca tinha ouvido falar assim. Aquilo tinha a ver connosco, com aquilo que queríamos. Com a vida. Não por acaso, ele é vitalista. Havia loucos lá dentro, psicanalistas, estudantes, uma fumarada enorme, um tipo tímido que falava lá no meio, de uma luminosidade e intensidade extremas. Reconciliei-me com o pensamento filosófico. 

P – ENCONTROU-SE. DEU-LHE UM NOVO FULGOR? 

José Gil –Absolutamente. Aí, comecei a escreveu ensaios, que mostrei ao Deleuze. Só depois do meu doutoramento, de que foi júri, comecei a dar-me com ele. Ia vê-lo a casa. 

P – SEMPRE NA PERSPECTIVA ALUNO-MESTRE? OU ERA UM ENCONTRO DE IGUAIS? 
José Gil – Ele não era um mestre, sabe? Abandonei os cursos do Deleuze porque senti que estava a pensar demasiadamente como ele. Cortei. Foi no tempo em que ele publicou o Mille Plateaux. Mas tudo começou com o Anti -Éd ipo. Frequentar o Deleuze impedia essa fascinação pelo mestre. Era um tipo extraordinário. Nunca 
conheci ninguém que entrasse tão bem no pensamento do outro. 

P – UM EXEMPLO? 

José Gil – Uma vez, eu vinha de Portugal, e tinha uma muito má relação com Portugal. Quis explicar isso ao Deleuze. Sei que lhe falei de artigos do Gaspar Simões, do ambiente, da universidade, do que era a Filosofia aqui. Ele ouvia, atentamente. Às antas, tive a impressão: "Mas o que é que estou a dizer? Este tipo não pode compreender, é de outro universo." E calei-me. O que é que ele faz? Continua o meu discurso. Continua ele a falar-me de Portugal, e era Portugal. 

P – TINHA TAMBÉM A CAPACIDADE DE SAIR DELE. RARA, NUM HOMEM ASSIM? 

José Gil – É. Aprendi uma frase com ele: "A partir daqui, põe-se este problema. Mas este, só você pode resolver. Já não o posso ajudar." Muito pedagógico. Satisfazia a sua necessidade narcísica de acreditar em si. E mostrava-lhe a originalidade do que poderia fazer. 

P – É UM HOMEM FELIZ? HÁ UMA FRASE NO SEU ÚLTIMO LIVRO, EM BUSCA DAIDENTIDADE, EM QUE SE FALA DA POSSIBILIDADE DE SONHAR, ATÉ DE SONHAR COM AFELICIDADE? 

José Gil – Não é a felicidade que procuro. Nem sei mesmo dizer-lhe se sou feliz - não é o que me interessa. Há um estado a que o Espinosa chama "beatitude" e que se define por imanência. O que é estar num estado de imanência? Podemos ter uma ideia pensando em como as crianças estão: quando está a brincar, ela é o mundo, ela confunde-se e não se confunde com as coisas com que brinca. Sabe perfeitamente que não é o avião que está a fazer aterrar, mas é ao mesmo tempo o avião. Acontece que eu já vivi isso, todos já vivemos. 

P – NUM ESTADO DE PAIXÃO? 

José Gil – Um estado de paixão é um estado de imanência. Em que não há diferença entre sujeito e objecto. O mundo passa e nada pode quebrar a continuidade do seu tempo, interno e externo. E isso é que lhe permite viver num mundo profundamente quebrado pelo mal, pela guerra, pela infelicidade. Não quero ser grandiloquente nem demagógico, mas não é possível ser feliz quando crianças, como ontem no Iraque, rebentam, explodem. O Iraque somos nós. Mas é possível estar em estado de beatitude e saber que há esse mal no mundo. Ser feliz? Não sou. Não sou infeliz. Procuro outra coisa. 



Fonte - Jornal Publico: anabela.mota.ribeiro@publico.pt