por Peter
Pál Pelbart
O texto abaixo foi proposto e aceito para publicação no dia 2 de
março, em versão reduzida, na seção Debates da “Folha de São Paulo”. Por razões
desconhecidas o texto não foi publicado. Como o evento a que se refere o artigo
ocorre já amanhã, o autor achou por bem liberar o texto na íntegra para
circulação nas redes sociais.
No dia 4 de março próximo (amanhã), às seis horas da manhã, com um
mandado de reintegração de posse em mãos, uma força policial do 7. Batalhão da
Polícia Militar vai pôr fim a um dos experimentos mais ricos surgidos na cidade
de São Paulo nos últimos meses – uma presença informal, ecológica, artística,
coletiva, libertária, numa das poucas áreas verdes remanescentes no centro de
São Paulo. No ano passado o movimento pela defesa do Parque Augusta conseguiu
que o prefeito Haddad sancionasse o projeto de lei que previa a criação do
parque, mas dias depois se deparou com o fechamento ilegal do terreno por
iniciativa das incorporadoras Setin e Cyrela, que ali planejam a construção de
três torres imensas. Diante do impasse, o movimento decidiu “abrir uma trilha”
no interior da área cercada, como uns Bandeirantes às avessas: em vez de
matarem índios e se apossarem da terra, liberaram um pedaço de Mata Atlântica
autêntica no coração da capital paulista. E instauraram uma “zona de autonomia
ambiental temporária”, com ações de sensibilização empreendidas por vários
coletivos e moradores, sem coloração partidária nem fins políticos. A intenção
não é apropriar-se do terreno, mas abrí-lo a um “uso comum”, como diria
Agamben.
Uma breve passagem pelo local permite a qualquer um cruzar as 700
árvores centenárias, vislumbrando, como numa alucinação transhistórica, um dos
poucos resquícios de “passado” pré-colombiano fincado na metrópole e soterrado
por ela. Ao perambular pela área onde antes erguia-se o Colégio des Oiseaux,
hoje se vê mais 200 árvores de várias espécies plantadas , uma cisterna para
coleta de chuva, uma rádio local na base da tecnologia móvel a mais simples e
ágil, um seminário de micropolítica acontecendo debaixo de um sol inclemente,
uma aula de yoga a céu aberto, jovens com seus laptops ligados cuidando em
manter viva a rede de contatos, informações, articulações, um filme sendo
projetado, assembléias e aulas abertas – em suma, uma “vigília criativa”. Eis
uma terra em que ninguém se pensa como dono de nada, ninguém vende nem compra
nada, ninguém manda em nada, onde pessoas de diferentes idades, origens,
formações, sensibilidades, coabitam por um tempo em contiguidade pluralista,
num jogo aberto entre iniciativas autônomas, afetividades e sexualidades
singulares, e assim deixam entrever o que poderia uma vida coletiva hoje,
polifônica, regida por uma lógica outra que não a da voracidade autocentrada,
da normopatia blindada ou da monocultura entrópica. Um “kibutz do desejo”,
diria Cortázar. Mas na sua versão ecológica, biopolítica. Pois é isso também
que ali se ensaia – não se trata de “apropriar-se”, “tomar o poder”, ou apenas
gritar palavras de ordem uníssonas contra o capital ou a gentrificação, mas
também zelar pelas árvores, pela circulação livre, pela sustentação coletiva, e
experimentar formas-de-vida inabituais, múltiplas, que não têm nome, ainda que
os ativistas usem noções aproximativas como horizontalidade, autogestão,
organização em rede.
Não é uma utopia ingênua de idílico retorno à Natureza, nem uma
comuna hippie deslocada no tempo e no espaço, mas uma aposta biopolítica que,
embora enunciada numa escala diminuta, pode destampar a imaginação política em
escalas outras. Afinal, a questão central, mesmo e sobretudo em tempos de
crise, continua sendo: que formas de vida nós desejamos hoje? Como o escreveu
um tal de “comitê invisível” longínquo, a força dos islamistas radicais está no
sistema de prescrições éticas que eles oferecem, como se eles tivessem
compreendido que é no terreno da ética, e não da política, que o combate se
trava. Nas antípodas do Estado Islâmico, o que se esboçou no Parque Augusta
está mais próximo do bien vivir, como dizem alguns povos indígenas vizinhos
nossos. Inspirado nessa tradição dos povos autóctones, Eduardo Viveiros de
Castro lançou há pouco uma bela idéia, no livro terrívelmente perturbador que
escreveu com Déborah Danowski em torno da destruição não só do mundo mas também
dos múltiplos mundos, a saber: a “suficiência intensiva” . Como descolar-se da
lógica do acúmulo, aceleração, progresso, destruição, para reorientar-se em
direção a uma vida “intensivamente” suficiente, e não quantitativamente ideal?
Pois esta, sabemos, tende ao infinito, embora esbarre nos recursos finitos do
planeta que ela se encarrega de exaurir. É preciso passar por um “ralentamento comopolítico”
para que tal recondução seja pensável. Claro que não temos para isso ainda um
povo, como dizia um pensador, longe disso. Mas algo nos diz – porém também isso
colhemos de reflexões alheias – que não existe primeiro um “sujeito
revolucionário” e depois uma “insurreição”, mas são as sublevações várias que
vão constituindo um “povo”, por assim dizer. Ou então é nesse meio que se
inventam “modos de povoamento”. Usamos palavras um pouco velhas e em desuso, ou
estranhas e grandiosas demais, para dizer coisas muito simples e atuais.
Desde as revoltas de junho de 2013, a pergunta que continua no ar é
a seguinte: será que aquilo que foi empreendido e experimentado no corpo a
corpo por multidões pelo País afora, que pôs os políticos de joelhos e por um
átimo fez tremer as instituições, tem chance de prolongar-se no presente sem
ser cooptado por golpismos vários, sobretudo num momento em que em vários
planos, econômico, parlamentar, moral, para ficar em itens midiáticos recentes,
assiste-se a uma reação conservadora brutal, que literalmente joga no lixo a
voz das ruas, em nome da qual, aliás, alguns dos mesmos políticos conservadores
conseguiram eleger-se? Não pretendemos oferecer qualquer resposta a tal
pergunta – ela só pode vir das ruas. Mas não deveríamos esquivar-nos de uma
constatação a cada dia mais tocante, sobretudo em nossa cidade, e isso vai do
Parque Augusta aos 300 blocos de carnaval de rua em São Paulo, das dezenas de
manifestações do MPL por todos os cantos da cidade, centro e periferia, até a miríade
de iniciativas individuais e coletivas que não atingem o limiar de visibilidade
midiática, pois são como vagalumes frente aos holofotes espetaculosos. A
constatação simples é apenas esta: há um desejo de rua crescente e incontido em
nossa cidade, e para além dela! Sim, as “pessoas” – e sei o quanto essa palavra
pode irritar nossos cientistas sociais – querem ocupar espaços, ruas, praças,
ciclovias, minhocões, sair de seus buracos privados ou telinhas virtuais e
ensejar situações de encontro ou fricção dos mais diversos tipos, seja na
cólera ou na alegria, em todo caso em situações menos codificadas, mais
indeterminadas, abertas àquilo que hoje pede para ser inventado a fim de tornar
respirável o dia a dia na cidade e no planeta, numa nova ecologia ambiental mas
também subjetiva, como dizia Guattari.
Sabemos que a força dessas experimentações minúsculas diante do
poder das construtoras, governantes e juizes parece sempre irrisória, para não
dizer risível. E no entanto, é também nesses bolsões efêmeros que se
experimentam gestos mínimos, lógicas incertas, estratégias e afetos capazes às
vezes de transbordar ou disparar uma mobilização multitudinária e infletir o
destino de um bosque ou de um mundo – lembremos que as revoltas em Istambul
começaram pela defesa do parque Gezi. Tampouco aqui o critério quantitativo
deveria nos intimidar. Quantas vezes não é o pequeno o locus do desvio e da
bifurcação decisiva? Como diz um personagem de Dostoiévski – e aqui o aplicamos
à nossa imaginação política – até o incêndio de Moscou começou por uma vela de
um kopek.
Peter Pál Pelbart é professor titular de filosofia da PUC-SP,
autor entre outros de O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento e
coeditor na n-1 edições.