7/31/2011

UMA DICA QUENTE | MINHA MÃE SE MATOU SEM DIZER ADEUS



MINHA MÃE SE MATOU SEM DIZER ADEUSde Evandro Affonso Ferreira,  é o primeiro volume de uma nova trilogia do autor dos elogiados Grogotó!, Araã! e Catrâmbias! Durante quase um ano, Evandro passou quatro horas de seu dia em uma doceria de um shopping paulistano. Não entrevistou ninguém, apenas observou o comportamento de quem passava por ali e imaginou histórias. Chegou ao texto final ali mesmo, rabiscando em vários blocos, que só depois digitou no computador.

A história
Sentado à mesa de uma confeitaria num shopping, o narrador, um escritor à beira dos 80 anos, vê a vida passar e espera a morte, enquanto relembra acontecimentos de sua infância — como o suicídio da mãe, uma artista fracassada, bêbada e louca, mas com quem mantinha um forte laço. O velho decrépito conversa telepaticamente com outros freqüentadores do shopping, e justifica sua existência melancólica escrevendo sem parar um livro que talvez jamais seja publicado.


7/02/2011

EXCURSO SOBRE O DESASTRE

Por Peter Pál Pelbart



Uma conhecida interpretação sobre a criação do mundo, proveniente da tradição cabalística e retomada pelo pensador e místico do século XVI, Isaac Luria, reza o seguinte: para que o Mundo pudesse vir à existência, o Ser infinito precisou abrir espaço, por um movimento de recuo e retração. Assim, o problema essencial da criação não consistiria em saber como algo foi criado a partir do nada, mas como o nada foi escavado, a fim de que a partir dele houvesse lugar para alguma coisa. Eis o verdadeiro segredo inicial, um mistério que começa, diz Maurice Blanchot, dolorosamente em Deus mesmo, por um sacrifício, uma limitação, um consentimento em exilar-se de tudo o que é para que o mundo pudesse ser. O desafio divino estaria em apagar-se, em ausentar-se, no limite em desaparecer. Como se, acrescenta Blanchot por conta própria, já extrapolando a apresentação que faz Gershom Scholem dessa teoria, a criação do mundo implicasse na evacuação de Deus. Ali onde há mundo, há privação de Deus. A criação não teria sido um acréscimo, uma expansão, mas uma retirada, uma renúncia, um ato de abdicação, um abandono... Para Blanchot tal concepção é uma ocasião para evocar o estatuto do pensamento. Ele não deve ser concebido como expansão, poder, domínio, mas como retraimento, abandono, impoder. Como se o pensamento também fosse chamado a cavar em si uma região de refluxo, inabitada e inabitável, uma zona de cegueira e de impossibilidade, de interrupção, a fim de que algo pudesse advir.. O mesmo diz respeito ao autor: é preciso que ele se retire, enquanto sujeito, é preciso que ele desapareça enquanto eu, para que advenha a literatura no seu livre jogo, na sua exterioridade própria e pura. Tal retraimento do eu, do sujeito, de Deus, ou do próprio pensamento, tal apagamento, tal desaparecimento, tal abandono não é, portanto, omissão, nem derrota, mas puro dom[1].
Eis o salto que eu gostaria de propor nessa belíssima escuridão do Tzimtzum, nome hebraico para a mencionada retração criadora. Seja como abandono, seja como dom, a privação de Deus é desastre. A Escritura do Desastre, reza o título de um dos últimos livros de Blanchot, um dos mais fragmentários e sibilinos. Pois o desastre, literalmente, é dis-astro, privação do astro, separação da estrela, perda da fonte de luz, distanciamento de qualquer centro de gravidade. O desastre é que já não se gravita em torno de um centro, ou de uma noção central, seja ela ontológica ou teológica, ética ou metafísica, "ser ou ente, Deus ou sujeito", comenta Bident[2]. É o reino da pura queda, da exterioridade sem centro, do extravio. Lembra alguns fragmentos de Nietzsche sobre a morte de Deus. “Desde Copérnico o homem parece ter caído em um plano inclinado – ele rola, cada vez mais veloz, para longe do centro – para onde? Rumo ao nada? Ao “lancinante sentimento do seu nada”?[3]. Ou o fragmento de 1882, em que o insensato procura Deus com uma lanterna em plena luz da manhã, para depois anunciar a sua morte: “Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo?”[4].
Mas se desastre é o nome que dá Blanchot para a morte de Deus, é preciso dizer que na sua pena nada disso é patético – tampouco em Nietzsche, aliás, para quem isso só é tomado pateticamente por aqueles que não apreenderam o sentido desse acontecimento, que chega com passos de pomba. Blanchot o diz explicitamente: o desastre não é maiúsculo [5], não consiste num evento ruidoso, não pode ser localizado num tempo preciso, nem num espaço delimitado.. Ele é o contratempo[6], o entretempo, o vai e vem, a desordem nômade[7], a afirmação intensa do fora.[8] O desastre é o fundo sem fundo de nosso pensamento, e "pensar seria nomear (invocar) o desastre como arrière-pensée". O desastre é o que desliga aquilo que está ligado, e é nesse sentido que ele se subtrai ao poder que tudo liga, que tudo totaliza, que tudo unifica. O desastre é o não poder. "Só o desastre mantém à distância o domínio"[9] Para aquém do fracasso ou do sucesso, da destruição ou da redenção, do não-ser ou do ser, o desastre deveria ser associado ao neutro, à sua inoperância (desœuvrement) , à ruptura do fragmentário[10]. Nem sequer se pode dizer que do desastre se tem uma experiência – ele destitui o eu da experiência, é pura passividade. Na passividade do desastre, é a parte inumana do homem que vem à tona, como dispersão, defecção, abdicação anônima. Com efeito: o desastre interrompe a ordem do mundo. Interrupção que em Blanchot assume colorações muito diversas, e por vezes antagônicas. Sim, a escrita é uma delas, sem dúvida: o espaço literário, o impessoal da escritura, o movimento que ela impõe. Mas caberia chamar a atenção para duas figuras que escandem toda a obra de Blanchot, transversalmente, e que também estão sob o signo do desastre: Auschwitz, por um lado, e a Insurreição, por outro.

Auschwitz
Depois de Auschwitz, o pensamento só pode dar-se sob a forma do desastre. "Que o fato concentracionário, o extermínio dos judeus e os campos da morte onde a morte continua sua obra, sejam para a história um absoluto que interrompeu a história, deve-se dizê-lo sem no entanto poder dizer nada além disso". Há uma interrupção da História que o pensamento e a linguagem devem acolher, mas sob o modo da interrupção, do lacunar, do fragmentário. Isto é, sem encobrir o quê do desastre dissolve o pensamento e a própria linguagem, sob pena de não se acolher o próprio do desastre. Mesmo Robert Antelme, tão sedento em contar tudo o que se viveu no campo, confessa que depois da liberação, apenas começados os relatos, eles se interrompiam, sufocados neles mesmos. "O holocausto, acontecimento absoluto da história, historicamente datado, essa queimadura total (toute-brulûre) em que toda história incendiou-se, onde o movimento do Sentido se abismou (...) Como preservá-lo, nem que fosse no pensamento, como fazer do pensamento aquilo que preservaria o holocausto ali onde tudo se perdeu, inclusive o pensamento guardião?"[11] Não se trata de uma elocubração sobre o inominável, muito menos um culto do inefável, mas uma meditação sobre o fato de que doravante cabe ao pensamento pensar a ferida, a interrupção do próprio pensamento, seu impoder, que ressoa com um impoder vindo dos campos. A ética aí embutida é incontornável. Ao fazer suas as palavras de Antelme: "Tudo o que possa assemelhar-se mesmo de longe ao que vimos lá, nos decompõe literalmente"[12], Blanchot extrai dali o seguinte imperativo categórico para o pensamento, na esteira de Adorno: "Pensa e age de tal maneira que Auschwitz não se repita jamais"[13].
Tudo isso é belo e forte, e é comum a toda uma geração que começou a escrever nos escombros da guerra. Mas há algo que coube a Blanchot sublinhar, já desde suas leituras de Kafka, que aguça ainda mais tal sensibilidade ética e política – a saber, o nomadismo próprio ao povo judeu (guardadas as diferenças e proporções, o mesmo caráter de desterro poderia ser associado aos ciganos, palestinos, armênios, sem-terra etc). O exílio, a dispersão, a separação, a errância, esse movimento incessante de desterro que os caracteriza, e que o Ocidente não soube acolher, não constitui privação de nada, mas uma relação positiva com a exterioridade. "O êxodo e o exílio não fazem senão exprimir a mesma referência ao Fora que carrega a palavra existência". Relação com o Distante, com o Estrangeiro, com o Abismo, que a palavra se encarrega não de preencher ou atravessar, mas de sustentar e acolher, colocando o próprio pensamento em estado de exterioridade, de estrangeiridade, de distância, de abismo. De desastre. O judaismo significou para Blanchot uma cultura de resistência, capaz de afirmar uma ausência de lugar, de unidade, de poder, de dialética – uma certa relação positiva com a ausência de centro, com o desastre no sentido referido, e que o Ocidente não soube acolher, obrigando esse povo nômade a reterritorializar-se num Estado, com as conseqüências que se conhece. Mais e mais Blanchot valoriza, na história e no pensamento, a recusa ao que poderia prometer a luz, a permanência, o abrigo, a verdade. Para ele, como o diz Cristophe Bident, a saída da história é também uma saída da ontologia. A recusa da História ou do Ser deve ser feita em nome do Neutro, de um não-poder, daquilo que por vezes ele chamou de passividade não-inerte.
Pode parecer inconcebível que o exemplo dos campos seja usado para exemplificar um efeito de desligamento do poder, quando ele é, sem dúvida, a manifestação mais brutal de poder que a história já registrou. Blanchot, no entanto, detecta na redução dos prisioneiros a um estado de pura necessidade, os signos de um aferramento à vida de um gênero inteiramente insólito, pois impessoal, espécie de egoismo sem ego, em que se afirma algo de indestrutível justamente porque a destruição está em marcha. Nessa relação nua com a vida nua, afirma Blanchot, embora cada qual seja destituído do poder de dizer eu, na pobreza inteiramente despojada de si e de sua identidade, em meio portanto a esse desastre incomensurável, se expressa uma exigência anônima de alteridade, mesmo que à espera de uma fala sempre postergada. Blanchot viu no campo, talvez, a distância que separa o que Agamben chama de vida nua, vida submetida a um poder soberano, e reduzida a sua dimensão biológica, e o que Deleuze chama de uma vida, potência impessoal, virtualidade pré-subjetiva, pré-individual, que atravessa desde os recém-nascidos até os morimbundos. Em todo caso, em Blanchot temos a idéia de uma vida como "ultimidade, queimação incosumável", não submetida, portanto, à intencionalidade da consciência.

Insurreição
Passo agora ao pólo oposto. Num texto escrito durante os eventos de maio de 68, Blanchot utiliza o termo desastre para significar uma "mudança de astro", ou seja, a saída de um espaço histórico, a ruptura que uma revolta como aquela poderia promover. Não mais Auschwitz, porém a Insurreição. Conta-se que Blanchot acolheu com grande interesse os eventos de maio, e neles participou de maneira ativa, seja tomando a palavra nas assembléias, nas marchas, presidindo sessões de comitês, escrevendo panfletos. As páginas que escreveu a respeito, sobretudo em La communauté inavouable, fazem eco a textos anteriores, num certo sentido premonitórios. Um ensaio sobre Sade chama a atenção para a exigência do movimento perpétuo, da insurreição necessária, não apenas contra os poderes constituídos, mas também seus valores, sua moral, sua sede de estabilização, contra a própria lei. Pois a lei é a privação da paixão, usurpação da soberania, extorsão da força. Diz Blanchot: "Sade chama pois de regime revolucionário o tempo puro em que a história suspensa faz época, esse tempo do entre-tempo onde entre as antigas leis e as leis novas, reina o silêncio e a ausência de leis, esse intervalo que corresponde precisamente ao entre-dizer onde tudo cessa e tudo pára, inclusive a eterna pulsão falante, porque então já não há interdito. Momento de excesso, de dissolução e de energia durante o qual – alguns anos depois, Hegel o dirá – o ser não é mais que o movimento do infinito que se suprime a si mesmo e nasce sem cessar no seu desaparecimento, "bacanal da verdade onde ninguém conseguiria permanecer sóbrio". Esse instante, sempre em instância, do frenesi silencioso é também aquele onde o homem, numa interrupção em que ele se afirma, atinge sua verdadeira soberania, já não sendo só ele mesmo, já não sendo apenas natureza – o homem natural – , mas (...) a consciência do poder infinito de destruição, isto é de negação, pelo qual sem cessar ele se faz e se desfaz. (...) Assim, um instante, esse instante de prodigioso suspense ao qual Sade reserva o título de revolucionário, as leis se calam, leis sociais, leis morais, leis naturais, e para dar lugar, não à tranquilidade de qualquer nada –aquele, por exemplo, do antes-do-nascimento –, mas a esse poder de dissolução que o homem carrega em si como seu porvir e que é a alegria do ultraje (nada de sombrio, afinal, nada que não seja esplêndido e risível nessa aproximação do supremo momento tempestuoso), necessidade de ultrapassamento que é o coração da razão, que certamente é perigoso, terrível e, propriamente dito, o terror mesmo, mas do qual não há nada de nefasto a esperar, com uma única condição: "que nunca falte a força necessária para transpor os últimos limites". [14]
Guardadas as devidas proporções, e descontada uma curiosa perversão de hegelianismo, já presente em Bataille igualmente, maio de 68 teria levado uma marca similar, no tocante à saída do espaço histórico, à suspensão do interdito, à força do ultraje. Mas aqui se agrega um componente que Blanchot porá cada vez mais em evidência, a saber, o desafio do comum. Assim, a descrição que faz Blanchot daqueles dias põe o acento numa certa explosão da fala, do encontro, da "presença comum" (Char), efervescência pura, numa espécie de comunismo não cooptável por nenhuma ideologia, não finalizável. Maio teria sido o tempo da inoperância, onde tudo era aceito, lembra Blanchot, tudo podia ser dito, a utopia sem presente e sem projeto, e sempre essa recusa instintiva de assumir qualquer poder, na desconfiança absoluta em confundir-se com um poder ao qual se delegaria alguma coisa. Tal presença inocente, para não se limitar, aceita não fazer nada, aceita simplesmente estar ali, e depois ausentar-se, dispersar-se, ignorando as estruturas que a poderiam estabilizar. Como diz Blanchot sobre essa rara modalidade de ajuntamento, de povo: “É nisso que ele é temível para os detentores de um poder que não o reconhece: não se deixando agarrar, sendo tanto a dissolução do fato social quanto a indócil obstinação em reinventá-lo numa soberania que a lei não pode circunscrever, já que ela a recusa”[15]... É essa potência impotente, sociedade a-social, associação sempre pronta a se dissociar, dispersão sempre iminente de uma “presença que ocupa momentaneamente todo o espaço e no entanto sem lugar (utopia), uma espécie de messianismo não anunciando nada além de sua autonomia e sua inoperância[16], o afrouxamento sorrateiro do liame social, mas ao mesmo tempo a inclinação àquilo que se mostra tão impossível quanto inevitável – a comunidade. A potência suprema consistia nessa impotência dispersa, efêmera, nessa recusa do poder, no elogio do movimento, na insurreição do pensamento, nessa reivindicação por uma comunidade por vir, inconfessável, impossível, incontornável. Um parênteses comunista no interior do comunismo, interrupção sem finalidade e sem ideologia, suspensão da História. "Seja lá o que digam os detratores de Maio, foi um belo momento, quando cada um podia falar ao outro, anônimo, impessoal, homem entre os homens, acolhido sem outra justificação além da de ser um outro homem"[17]. Mas não se trata de uma revolução. "Contrariamente às 'revoluções tradicionais', não se tratava apenas de tomar o poder para substituí-lo por um outro, nem de tomar a Bastilha, o Palácio de Inverno, o Eliseu ou a Assembléia Nacional, objetivos sem importância, e nem sequer tratava-se de derrubar um antigo mundo, mas de deixar manifestar-se, fora de qualquer interesse utilitário, uma possibilidade de estar-junto"[18].
Arrisquemos um último movimento. Diz Nietzsche: "Os pensamentos que transtornam o mundo vêm a passo de pomba; as palavras que trazem a tempestade são as mais silenciosas." Ora, Blanchot comenta que todos pressentem, hoje, uma mudança de época, uma ruptura da história, mesmo que não se tenha sobre isso um saber seguro, nem uma palavra clara, mesmo que isso corra as ruas de maneira anônima[19]. E Blanchot se pergunta o que seria se, num certo momento, cessassem de ter sobre nós algum poder as categorias que até agora sustentaram nossa linguagem: unidade, identidade, primazia do Mesmo, exigência do Eu-sujeito, mas não porque com elas continuássemos a brigar, mas ao contrário, porque elas se teriam realizado tão perfeitamente que seríamos lançados num outro regime de manifestação, num espaçamento fora do espaço, num tempo fora tempo, fora da consciência e da inconsciência, na vacilação deportada.. [20] Nesse êxodo, nesse exílio, nessa deportação, não teríamos nos livrado positivamente de um espaço sideral, interrompendo um movimento de sideração, abandonando a fixação em torno de algum astro? O próprio desejo, desiderio, não é ainda relação com o astro que me abandonou? O desastre evacua o sim e o não, o sentido e o não-senso, a vida e a morte, o silêncio e a palavra, deportando-nos da intencionalidade para a pura intensidade, para além ou aquém do ser e da ontologia – o neutro, pura diferença. O desastre, que é ruptura com o astro, com o céu sideral, passa-se "aqui, um aqui em excesso sobre toda presença"[21]. Não se trata, pois, de uma experiência negativa de desmoronamento, cuja coerência cósmica o pensamento se deleita em evocar. Mesmo as expressões "Deus está morto", ou "o homem morreu", não seriam o signo de uma linguagem ainda poderosa demais, soberana demais, "que assim renuncia a falar pobremente, de maneira vã, no esquecimento, no desfalecimento, na indigência"?[22] Blanchot lembra que discorrer sobre o ateismo foi sempre uma maneira privilegiada para falar de Deus[23]. Então trata-se de fazer outra coisa. Como dizem Deleuze e Guattari, citados por Blanchot, o múltiplo se faz por subtração, "sempre n-1". Como subtrair das múltiplas dimensões que conhecemos, a unidade que as sobredetermina, seja o termo Eu, Mundo, Ser, Deus, Uno? Françoise Collin, num belo estudo sobre Blanchot, diz que o Neutro é justamente a subtração do Uno, o não-Uno. Pois como diz Blanchot, na sua anarquia o neutro “nos remete não àquilo que reúne, mas ao que dispersa, não àquilo que junta, mas ao que disjunta, não à obra, mas à inoperância [...], conduzindo-nos em direção àquilo que tudo desvia e que se desvia de nós, de modo que aquele ponto central em que, ao escrever, parece-nos que nos encontramos, não passa de ausência de centro, a falta de origem”. Fora, Neutro, Desastre, Outro, "pedras de abismo petrificadas pelo infinito de sua queda"[24]. Talvez esses termos permitam lançar alguma luz sobre o contorno dessa obra impossível, que leva o nome de Blanchot.
Mas a presença de Blanchot ressoa com o auto-apagamento do Deus de Lúria. Nessa ética da subtração, fala uma afirmação não positiva, anônima, plural, nômade. Sua ótica do desastre abre assim para um outro tempo, um outro espaço, uma outra linguagem – não os da História, do Poder, da Instituição, mas os do Acontecimento, do Não-poder, da Destituição. Não um Outro mundo, mas o Outro de todo mundo...

Texto Publicado na Revista Polichinello N° 6 / Dossiê Maurice Blanchot

PETER PÁL PELBART é autor de  A vertigem por um fio [iluminuras] e Vida Capital [iluminuras]


[1] M. Blanchot, L´Ecriture du désastre, Paris, Gallimard, 1980, p. 13, doravante ED.
[2] C. Bident, Maurice Blanchot, Partenaire Invisible, Seyssel, Ed Camp Vallon, 1998, p. 509.
[3] F. Nietzsche, Genealogia da Moral, III, par. 25, São Paulo, Brasiliense, 1987, trad. Paulo César de Souza, p. 176.
[4] F. Nietzsche, A Gaia Ciência, par. 125, São Paulo, Cia das Letras, 2001, trad. Paulo César de Souza, p. 148.
[5] ED, p. 9.
[6] ED, p. 27.
[7] ED, p. 12
[8] ED, p. 13
[9] ED, p. 20.
[10]ED, p. 30
[11]ED, p. 80
[12] "Vengeance"? (nov 1945), reed. em Textes inédits..17-24
[13] M. Blanchot, carta a R. Bellour, in Cahiers de l´Herne, Henri Michaux, n. 8, 1966, p. 88; in Les intellectuels en question, Tours, farrago, 2000, p. 53.
[14] M. Blanchot , L´Entretien Infini, Paris, Gallimard, 1969, p. 337 (EI).
[15] M. Blanchot, La communauté inavouable, Paris, Minuit, 1986, p. 57.
[16] Idem, p. 57.
[17] M. Blanchot, Michel Foucault tel que je l´ímagine, Montpellier, Fata Morgana, 1986, p. 9-10.
[18] M. Blanchot , La Communauté inavouable, p 52.
[19] EI, p 394 et ss
[20] EI, p. 406
[21] ED, p. 121
[22] ED, p. 144.
[23] ED, p. 145
[24] ED, p. 95