1/13/2022

“A FILHA PERDIDA” ou O DESEJO REDESCOBERTO, O FILME


Evando Nascimento Camacã


  


 

Li tanto nos últimos dias sobre “A Filha Perdida”, de Maggie Gyllenhaal, que acabei não resistindo. Simplesmente magnífico. É um filme sobre o desejo (sexual, profissional, existencial etc.), o afeto e seus obstáculos. Claro, a maternidade está no centro fulcral do enredo. Todavia, a história envolve igualmente muitas outras nuanças de sentimentos, buscas, incertezas, frustrações, desamparos mas também êxitos & encontros felizes – como a vida. O envelhecimento é tratado de forma realista, sem pieguice, como um desafio na Linha do Tempo – essa “Time Line” que nos devora aqui mesmo no Livro dos Rostos.

 

É um daqueles filmes em que cada detalhe conta – as metáforas da boneca roubada e da casca de laranja recortada por inteiro dariam por si sós dois belos ensaios poéticos. E que a literatura comparada seja um dos elementos da trama não é nada fortuito... A aproximação com Sonata de Outono, obra-prima de Ingmar Bergman que marcou época, seria anódina: é outra película, outra história, outro contexto.

 

O problema é que o desejo é contraditório, vai em múltiplas direções. Por vezes é preciso tomar decisão e suspender (provisoriamente) uma das alternativas, com o risco de se ferir quem mais se ama. É o que descobre a jovem Leda, professora e crítica universitária em formação, e a mesma personagem mais tarde, já como scholar consagrada, de férias numa praia da Grécia. Enquanto se está viva ou vivo, desejar nunca acaba, mas o mundo, as pessoas e a moral vigente impõem julgamentos rasos.

 

Destaque absoluto para a direção e o roteiro (Gyllenhaal), para a atriz que faz a densa protagonista mais velha Leda (Olivia Colman) e também para a jovem (Jessie Buckley), para a fotografia (de Hélène Louvart) e para a montagem (de Affonso Gonçalves). A meu estrito ver, não é um filme feminino nem feminista apenas, é antes de tudo humano e além do Homem, sob o olhar dessas mulheres todas, e com um toque masculino. Tudo numa precisão e numa delicadeza raras no cinema, na literatura, na vida. Belíssimo!

 

História recomendada, portanto, para toda a família: esposas, filhas, filhos, maridos e até possíveis amantes... (desconheço a indicação etária).

 

Não li o livro de Elena Ferrante, nem pretendo, por absoluta falta de tempo. Porém o filme se sustenta sozinho – e esse tipo de comparação também é contraproducente, pois são obras distintas.

 

P.S.: o título alternativo do post é proustianamente intencional: “Le Temps Retrouvé”...


 “Texto publicado originalmente no mural do escritor no Facebook”: https://www.facebook.com/evando.nascimento.37


 

EVANDO NASCIMENTO CAMACÃ nasceu em Camacã, na Bahia. Vive há quatro décadas no Rio de Janeiro. É ensaísta, escritor e artista visual. Foi professor na Universidade Federal de Juiz de Fora e na Université Stendhal de Grenoble, na França. É autor de Retrato desnatural (Record), Cantos do mundo (Record, finalista do Prêmio Portugal Telecom, atual Oceanos, em 2011), Cantos profanos (Globo) e A desordem das inscrições (7Letras).