11/10/2022

A ESCRITA QUE VEM: Henry Burnett & Ramon Cardeal



OS RASTROS DE DESDOBRAMENTOS DA ESCRITA QUE VEM


A escrita que vem:

Como disse Marguerite Duras, “Ela vem com o vento” (Écrire), sem outorga ou interrupção, num puro movimento cuja rotação, em atrito com o comum, não cessa. E assim segue, desordenando a conformidade vigente, deixando um lastro de rasuras, ruínas e espectros. “E passa como nada mais passa na vida” (M.D), fabulando um turbilhão de linhas as quais, por uma força própria da experiencia literária, converte o limite em possibilidade de recomeço.

 

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PROGRAMAÇÃO:


"Fragmentos, memórias e o que se reinventa pelo horizonte da ficção"

Henry Burnett 

 

O Animal escrita"

Ramon Cardeal

 

ENCERRAMENTO:

pocket show

violão & voz:

Henry Burnett

 

11/11 19h

Casa da Linguagem

Av. Nazaré - n 31 Belém PA

 

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Curadoria:

Nilson Oliveira

 

INFORMAÇÕES:

revista.polichinello@gmail.com

980557410

 

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Henry Burnet - @henryburnett_

É cantor, compositor e professor livre-docente do departamento de filosofia da EFLCH/Unifesp. Publicou Cinco prefácios para cinco livros escritos: uma autobiografia filosófica de Nietzsche (Tessitura, 2008), Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil: ensaios de filosofia e música (Editora Unifesp, 2011), Para ler O Nascimento da Tragédia de Nietzsche (Edições Loyola, 2012), Para ler O caso Wagner de Nietzsche (Edições Loyola, 2018) e Espelho musical do mundo (Editora phi, 2021), além de vários álbuns musicais, entre eles Não para magoar (2006), Canções da infância inteira (2020), este em duo com Julia Burnett, e o álbum duplo antologia_50_solo e antologia_50_parceria (2021).

 



 Ramon Cardeal - @cardealramon

Escritor e ensaísta, vencedor do Prêmio Literário da Fundação Cultural do Pará, contos 2017. Autor de «O estrangeiro e outros andarilhos» (Prêmio IAP de Literatura, 2012) & A lagartixa é uma xamã: contos brevíssimos da história universal (Prêmio Fundação Cultural do Pará 2017)

 

 



10/20/2022

As máquinas do viajante do tempo | Ronald Polito

 





Quando no futuro for escrita a história do Brasil desses últimos anos, talvez seja necessária uma denominação específica para o período de 2019 a 2022. Digamos: “Os anos grotescos”, um dos piores momentos da malfadada República em nosso país. A mesma necessidade ocorreria para um olhar sobre a história mundial, e aqui poderíamos recuar para antes de 2019 e, possivelmente, ir para bem depois de 2022. Algo como: “A era do retrogresso”. Para quem já viveu algumas décadas neste mundo e pensou ter visto tudo, o tempo presente surpreende por seu caráter particularmente aterrador e distópico.

Pelo menos, o historiador do futuro, soterrado pela montanha babilônica de registros que nossa época produz, terá uma “fonte” para lá de inusitada, essas Charges escritas, de Francisco dos Santos, que funcionam como um sismógrafo para quem quer se prevenir do tremor constante que o vitima.

O foco de Francisco é, principalmente, o Brasil, esse “país do passado”, mas sem deixar de mirar o contexto mundial, tão igualmente nefasto e retrógrado. Estamos vivendo tempos bizarros, aberrantes, um desafio para qualquer perspectiva, não otimista ou pessimista, mas simplesmente realista das coisas. Para alguém com esse perfil, neste momento, parece que todas as saídas estão bloqueadas.

É tão grandiosa e multifacetada a avalanche diária de notícias absurdas em todos os planos imagináveis, que o mais difícil é selecionar dessa massa monstruosa aquilo que poderia ser seu suprassumo. Essa tem sido a tarefa a que Francisco vem se dedicando desde 2019, quando teve a feliz ideia de criar um tipo de “Diário do desastre” e que agora chega ao seu quarto e último conjunto.

Os diversos comentadores dos volumes já publicados esmiúçam vários aspectos importantes: uma nova concepção do que seja charge (aqui apenas escrita), os vários sentidos de charge (caricatura, carga), a dimensão literária de todo o trabalho (quando a charge é máscara de poesia, particularmente visual), a natureza fundamente política das intervenções (a que eu acrescentaria cultural, social, econômica etc.), as armas da ironia e do humor como possibilidades de respiração no meio da asfixia etc. Não me parece ser o caso de retomar essas e outras chaves de leitura dos comentadores, problematizá-las ou estendê-las. Penso em me deter sobre quais seriam os padrões mais recorrentes das operações realizadas nesses volumes, mas priorizando naturalmente exemplos deste último. Regra geral, o “método” adotado por Francisco privilegia três procedimentos a que poderíamos denominar: “deslocamento”, “distorção” e “comentário”.

Um bom e macabro exemplo de “deslocamento” é a primeira charge do livro: “É evidente que Ratzinger sabia”. Deslocamento aqui está sendo entendido especificamente como o gesto de retirar de seu local de origem uma sentença veiculada pela mídia e reposicioná-la em outro lugar para que ela seja submetida a novas significações: destaque, ampliação, aprofundamento, revelação, repetição que evite o esquecimento. Francisco encontrou exatamente essa sentença sobre Ratzinger nas matérias da imprensa sobre os abusos que o norte-americano Arthur Budzinski sofreu nas mãos do padre Lawrence Murphy. Mas agora a sentença, ocupando toda a mancha gráfica da página, dá mesmo a exata medida de como e quanto ele sabia, não há qualquer espaço para dúvida, o saber é tão completo quanto o espaço em que se revela. E, claro, “Ratzinger” pode ser substituído praticamente pelo nome de qualquer um dos outros dominadores do mundo. É óbvio que todos sabem. E, o pior, nem se trataria propriamente de uma maldade intrínseca, mas de autoconvicção acerca de sua própria superioridade, assim justificável… Há outros exemplos de “deslocamento” no livro, como “A QUALIDADE DA DEMOCRACIA” (uma rápida pesquisa na web constatará que esse é um mantra com centenas de milhares de ocorrências); ou “brota na minha casa” dialogando com a página seguinte, “¿Qué putas me pasa contigo, má?” (ambas retiradas de letras de música); “Mais de 80 indiciados” (notícia de 26/10/2021); “Petrobras registrou lucro de R$ 31,1 bilhões no terceiro trimestre de 2021 e decidiu dobrar os dividendos dos acionistas, que chegarão a R$ 63,4 bilhões no ano” (notícia de 29/11/2021). Cabe ao leitor encontrar outros escondidos, como o * de Caetano.

Em menor número, outras charges primam pela “distorção”. Partindo de notícias transmitidas por jornais e tv, é possível, por exemplo, alterar as declarações dos envolvidos e formular uma nova declaração muito mais provável, verdadeira, que teria ocorrido em algum gabinete sem aparelhos de escuta ou testemunhas: “Vossa excelência vazou um trecho do relatório, o combinado era vazar o relatório inteiro”. Em outra charge, numa única página, “Eu queria tirar fotos dos rostos de cada um dos Srs. aqui […]” (declaração de Eduardo Bolsonaro, em 2018, sobre a distância de seu pai com respeito ao Centrão) combinado com “Advinha quem está sentado no colo do Centrão…” (a montagem surge como um caso híbrido, uma mescla de operadores, funcionando sua primeira parte como “deslocamento”, a segunda como “comentário”, realizando-se, finalmente, como “distorção”). Outros exemplos seriam: “Os amaricanos nunca sujam as mãos, Pôncio... […]” (inicia-se assim distorcida uma sucessão de enunciados hipotéticos que, pela reiteração estupidificante da cisão entre os “amaricanos” e os “outros”, nas últimas linhas, buscam instilar e legitimar a crença no inadmissível); “Bolsoignaro entra com mandado de segurança no STF contra CPI…” (uma das muitas deformações que enseja o nome do “despresidente”, palavra-bordão de Francisco que cruza os volumes das charges).

O protocolo mais frequente é o do “comentário”. Incluindo os do próprio “viajante do tempo”, alter ego do autor, que assume a palavra, e sem se esquivar à autocrítica, para nos apresentar o mundo enlouquecido desse presente que parece não acabar nunca, meio eterno. O comentário dá oportunidade para a ironia e a crítica e o humor a todo tipo de factoide da baixa política diária, e não apenas executiva, de variadas posições ideológicas, do judiciário em seu confusionismo, do modus operandi da imprensa e seus jornalistas, das desgraças, como a pandemia, abrindo espaço para o mais deslavado oportunismo e desgoverno, das variadas formas de enganar a sociedade, das apurações inconclusivas de toda modalidade de crime, do verdadeiro delírio que é o cotidiano das decisões dos experts em economia (realmente espertos) etc. Ocupando duas páginas para que o leitor sinta a escala do desplante, a charge “desaforismos” é uma grande palavra-valise dessa arte de comentar: aqui não se quer ditar uma moral, ser uma máxima para a prática, mas denunciar o tamanho do desaforo que estão fazendo conosco. É quando as notícias reais, imaginadas e amplificadas adquirem o sentido (aterrorizante) de weather report. Tempos piores virão. Como se os anos 2019-2022 nunca venham a acabar. Talvez a síntese mais aguda desse estado de coisas seja a charge, ou ainda, o poema “horrendo…, horrendo…”, com as duas palavras ocupando, respectivamente, a primeira e a última linha da mancha gráfica, um primor de compactação, condensação da época, do tempo, e simultaneamente de criação do vazio, do vácuo, da impossibilidade mesma de figurar o horror, quando o branco do restante da mancha gráfica testemunha o fracasso das linguagens. Suprimidas, riscadas algumas letras da palavra “horrendo”, sobra “o end”, que, por paradoxo, não tem fim, repetido e repetido, reticente. Talvez o pesadelo ainda esteja começando. Mas nestes tempos de triste memória, é nosso dever transformar o terror em terrir.




























8/24/2022

Traduzir (ser-com fantasmas) : Maurice Blanchot & Davi Pessoa

 


 Claudio Parmeggiani, Senza título, 2022

Traduzir: ser-com fantasmas

Davi Pessoa

 


       Maurice Blanchot, em seu ensaio “Traduire”, incluído no livro L’amitié (1971), escreve: “Sabemos o quanto devemos aos tradutores e, ainda mais, à tradução? Acredito que não. Mesmo se sentimos gratidão pelos homens que se adentraram corajosamente nesse enigma – a tarefa de traduzir –, mesmo se os saudamos de longe como os mestres ocultos da nossa cultura, ligados a eles e docemente submetidos ao seu zelo, nosso reconhecimento permanece silencioso, um pouco sustentado, além do mais, pela humildade, pois não somos capazes de sermos seus reconhecedores”.[1]

       Será que a gratidão e nosso reconhecimento aos tradutores não se manifestam porque ainda vivemos numa época em que se acredita ser uma pretensão maligna a arte de traduzir? E se especularmos neste sentido,[2] será que tal pretensão maligna, ou poderíamos chamá-la traição, se dá pelo fato de louvarmos e consagrarmos o dito texto “original” a tal ponto de criarmos um Deus intocável? Ou seria por uma nossa incapacidade de nos entregarmos ao estrangeiro? Seria nossa resistência de compreendermos os confins para além de um limite circunscrito?[3] E se pensarmos que todo confim é também um espaço de contato e contaminação? Uma cultura mediante a tradução se entrega ao estrangeiro ao mesmo tempo em que se contamina dele? Por que traduzir significou, no decorrer de um longo período, uma sorte de pretensão maligna? Segundo Blanchot, “traduzir [...] permaneceu por muito tempo, em certas culturas, como uma sorte de pretensão maligna. Uns não queriam que se traduzisse na sua língua, outros, sim, e a guerra foi imprescindível para que essa traição, em sentido exato, se realizasse: entregar ao estrangeiro a verdadeira expressão de um povo”.[4] Contudo, o tradutor ainda pode ser considerado culpado por uma impiedade ainda muito mais feroz, pois como “inimigo de Deus, pretende reconstruir a Torre de Babel tirando ironicamente vantagem e proveito da punição celeste que separa os homens, confundindo as línguas. Num tempo se acreditava poder remontar a uma linguagem originária, palavra importante que bastaria proferi-la para afirmar a verdade”.[5]

       Porém, se especulássemos a não existência dessa inimizade contra Deus, visto que ele já está morto ou que não existe ainda? No primeiro caso, poderíamos pensar na queda dos valores transcendentais, cujos pressupostos se centravam na ideia do poder soberano vinculado a um único Deus; no segundo caso, poderíamos pensar na possibilidade de uma existência por vir,[6] sendo esta, ao mesmo tempo, imanente e fantasmática. Imanente, pois se dá na ambivalência entre paragem (manere) e passagem (manare); fantasmática, pois essa existência por vir sobrevive na forma de fantasmas. Se ser escritor é colocar-se no lugar do morto, do mesmo modo, ser tradutor é proliferar a linguagem desses mortos.

       O filósofo Franco Rella, em “Produrre e vivere l’assenza” [Produzir e viver a ausência], argumenta: “O espaço infinito, não atravessável, que se abre entre o eu que não é mais eu, e o outro que não é nada mais do que eu, é o espaço da própria morte, no sentido de que a morte é também impessoal, é o neutro. Morre-se”.[7]

       Maurice Blanchot, ao relacionar a literatura e o direito à morte, está pensando nesse sentido? Se o eu da escritura encaminha-se para a dissolução de sua identidade, então poderíamos dizer que escrever não é apenas produzir a ausência de obra, mas produzir tanto a ausência do eu que escreve como a ausência presente na morte.[8] Portanto, não é apenas uma questão de “eu não escrevo”, nem de “eu não escreve”, mas, sim, de “escreve-se”, “inscreve-se”, “excreve-se”. Em última análise: morre-se.

       O tradutor, caso se lance nesse hiato aberto pela própria escritura, aprende a viver entre a vida e a morte, ou seja, precisamente nessa abertura, não podendo tomar nem a vida nem a morte como duas coisas absolutas. Assim, para conseguir viver nessa relação, ele precisa da intervenção de fantasmas. Ou melhor, precisa ser-com os fantasmas, apontando uma nova possibilidade ética com a memória, com o esquecimento, com a escritura, com a reescritura, com a linguagem, com o abismo aberto na linguagem e pela linguagem, com o estrangeiro, com os confins, seus lindes, limites e limiares,[9] ou, ainda, aprendendo a lidar com a espectrologia da própria leitura. Aqui, estamos nos reportando, não por acaso, ao preâmbulo de Spectres de Marx (1993, Galilée) de Jacques Derrida. Importante não esquecermos que alguns anos antes, Derrida publicaria o ensaio “Des tours de Babel”, em 1987, presente no livro Psyché, no qual afirmaria que “a tradução, o desejo de tradução não é pensável sem essa correspondência com um pensamento de Deus”.[10] Este, com seu nome, tornou-se, do mesmo modo, um endividado, pois o nome próprio pertence e não pertence ao mesmo tempo à língua.[11] A tradução, portanto, segundo o filósofo, torna-se necessária e impossível como o efeito de uma luta pela apropriação do nome, ou melhor, a tradução é sempre um texto a-traduzir,[12] tal como discutido por Derrida, ou uma traduzibilidade, assim como a pensava Walter Benjamin.[13] É interessante perceber, no entanto, que uma possível especulação em torno da tradução, do desejo da tradução, sem uma correspondência com um pensamento de Deus, caso seja levado em consideração que está morto, não nos exime de afrontar tal correspondência, assim como não nos exime de confrontá-la caso pensemos que esse mesmo Deus, que impõe o seu nome, não existe, visto que, assim, deveríamos levar esta posição até as últimas consequências, tomando posição de que Deus nunca existiu e de que nunca existirá.

       Tal luta pela apropriação do nome coloca, também, certos limites às teorias da tradução. Quais seriam? A mais óbvia, porém ainda recorrente, é compreender a tradução como mera passagem de uma língua a outra, não considerando suficientemente a possibilidade de várias línguas estarem implicadas em um texto. Aliás, como traduzir um texto escrito em diversas línguas ao mesmo tempo? Como devolver-lhe o efeito de pluralidade? Derrida questiona: “E se se traduz para diversas línguas ao mesmo tempo, chamar-se-á a isso traduzir?”.[14] Ou seja, há muitos lábios murmurando em um texto, pois os fantasmas que estão ali falam também em várias línguas. Possibilitar a sobrevivência desses balbucios é que parece ser a grande tarefa do tradutor, pois eles possibilitam manter a traduzibilidade em potência, sempre como algo a-traduzir: a impossibilidade da tradução é, então, a necessidade (possibilidade) como impossibilidade. Assim, seguir os vestígios se torna a grande aventura, pois a tradução reativa uma espécie de desastre na linguagem e pela linguagem.

       A literatura se produz na linguagem e se refere à linguagem, porém, ao mesmo tempo, ela produz um corte preciso no referente, e é justamente nesse corte que fazemos experiência com ela. Do mesmo modo, uma leitura referencial não é uma leitura pertencente ao universo da literatura. A literatura não pertence à ordem referencial que serve para a comunicação. Aliás, o que comunicar? A tradução, tal como pensada por Derrida, “não tem por destinação essencial comunicar”,[15] ou, ainda, como Walter Benjamin argumenta: “o que ‘diz’ uma obra poética? O que comunica? Muito pouco a quem a compreende. O que lhe é essencial não é comunicação, não é enunciado”.[16] Derrida e Benjamin, porém, se referem aos textos poéticos e sagrados. Contudo, não poderíamos expandir essa noção à própria literatura? Esta nos impõe uma tarefa espectrológica, que, por sua vez, é a própria dimensão da leitura, a saber, como ler fantasmas, como nos lermos diante dos fantasmas, como traduzir fantasmas?

       O filósofo Quentin Meillassoux, em seu ensaio “Deuil à venir, dieu à venir”[17] [Luto por vir, deus por vir], publicado na revista Critique, em 2006, faz a seguinte pergunta: “O que é um fantasma?” E nos dá uma resposta: “Um morto que não foi adequadamente chorado, que nos persegue, perturba-nos, reativando a passagem para o ‘outro lado’, onde aquele que partiu pode nos acompanhar a uma distância suficiente para que possamos viver nossa própria vida sem esquecê-lo, mas também sem morrer a sua morte – sem ficar preso na repetição de seus momentos finais”.[18] Mas como poderíamos viver tal luto? Para que o luto seja efetivado, então, é necessário, de acordo com Meillassoux, viver com espectros essenciais, dando vida a esses fantasmas. A questão que nos é colocada, portanto, pode ser a seguinte:  o luto se dá em que condições? 

       Situar-se diante do fantasma é um modo singular-plural de contato. Os fantasmas não se autonomeiam e não se deixam nomear, não pertencem a uma linhagem; eles são hóspedes estrangeiros que rompem com a lógica da lei da hospitalidade.[19] Escutar o estranhamento, ser tocado por esse corpo estranho, produzir estranhamento como repetição diferida. A tradução – um modo de ser-com fantasmas – retira o original de seu lugar sagrado, profanando-o. Neste sentido, a tradução pode nos evocar uma experiência singular, tal como quando nos encontramos diante de uma tumba.

       Encontrar-se diante de tumbas é uma experiência, do mesmo modo, paradoxal. Elas não apenas se referem a alguém que nos é muito próximo. Elas, igualmente, nos atravessam. Encontramo-nos diante delas implicados na presença desse acontecimento singular, pois aquele que nos era tão próximo, tão semelhante, passa a ser, com a mesma força, dissemelhante. Portanto, estar face a face com uma tumba nos permite pensar o impensável, a saber, a morte. O contato com a tumba nos permite também pensar a relação entre presença e ausência. Por quê? Ali não é simplesmente a morada de quem não se encontra mais entre nós; a morte, ali, não é somente a do outro, apenas lhe dizendo respeito. Os ornamentos colocados sobre as tumbas parecem desnaturalizar o nosso contato com a morte, como se ela não fizesse parte da nossa vida. A morte não está situada em um além, reservada ao espaço exclusivo do morto. Ela nos envolve, atravessa-nos, deixa um rastro em nossa experiência. Se for verdade que as tumbas podem nos propiciar uma experiência de paragem e de passagem na e pela soleira, ou seja, se elas criam o ritual do luto e da memória, visto que o morto não se encontra fora de nós, apartado do nosso corpo, então não deveria nos surpreender que essa mesma experiência nos possibilite novas estratégias para lidarmos com mais intimidade com o nosso próprio corpo. Ou seja, o corpo que se distancia – embora ainda presente em nossa memória – pode nos aproximar daquilo que nos é mais íntimo, isto é, o nosso corpo. Quando somos lançados no mundo ocorre uma das experiências mais paradoxais, pois é também o momento – e cada vez mais em nossos dias, com todas as estratégias biopolíticas a que estamos submetidos – em que nos distanciamos dele. Portanto, o desafio passa a ser o de operar uma dobra na própria soleira, em que o interior toca o exterior e vice-versa. Ou melhor: necessitamos efetuar um retorno à morte, tocando de perto uma parte íntima de nossa vida.

       Talvez, por isso, a risada fria de Goethe diante do gesto de Hölderlin, ao traduzir no limiar da loucura Antígona e Édipo, assim como lemos no ensaio “Traduire” de Blanchot. Traduzir é se encontrar profundamente nessa intimidade perigosa, possibilitando a abertura de novos sentidos, e não a apreensão e restituição de um sentido. Não à toa, Blanchot dedica seu livro L’amitié a Georges Bataille; do mesmo modo, não por acaso que Blanchot confronta o famoso prefácio de Benjamin,[20] trazendo à tona a risada de Goethe e a loucura de Hölderlin, pois, em última análise, sabia que não há redenção na tradução, assim como não há redenção na linguagem, pois tal como pensava Blanchot, tanto a queda como o salto fazem parte de uma mesma solidão: a solidão essencial. No entanto, encontrar-se nessa solidão essencial, que é, aliás, muito rumorosa, é abrir-se à possibilidade de ser-com fantasmas. Traduzir, afinal, é um gesto alucinado.



[1] BLANCHOT, Maurice. “Traduire”, In: L’amitié. Tradução do ensaio Davi Pessoa Carneiro. Paris: Editions Gallimard, 1971, p. 69.

[2] Especular, aqui, toca de perto a reflexão de Josefina Ludmer, em Aqui América Latina, ao argumentar: “Especular: literalmente e em todos os sentidos. Como adjetivo (do latim, speculãris), com o espelho e suas imagens, duplos, simetrias, transparências e reflexos. Especular como verbo (do latim speculãri): pensar e teorizar (com e sem base real, tudo poderia ser uma mera especulação). Ao mesmo tempo tramar e calcular os ganhos. Com um sentido moral ambivalente”. In: LUDMER, Josefina. Aqui América Latina. Tradução Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 7.

[3] Segundo o filósofo Massimo Cacciari, “Confim se pode dizer de duas maneiras. Em geral, o termo parece indicar a ‘linha’ ao longo da qual dois domínios se tocam: cum-finis. Dessa forma, o confim distingue, tornando comum; estabelece uma distinção determinando uma ad-finitas. Fixado o finis (e em finis ressoa provavelmente a mesma raiz de figere) “inexoravelmente” se determina um “contato”. Mas – antes de desenvolver essa ideia essencial, que concresce na nossa linguagem – entendemos por ‘confim’ limen ou limes? O limen é a soleira, que o deus Limentinus guarda, o passo através do qual se penetra em um domínio ou se sai dele. Através da soleira somos acolhidos, ou eliminados. Ela pode se dirigir ao “centro”, ou abrir para o i-limite, para aquilo que não possui forma ou medida, ‘onde’ fatalmente nos perderíamos. Limes é, ao invés, o caminho que circunda um território, que engloba a sua forma. Sua linha pode ser oblíqua, por certo (limus), acidentada, todavia, ela equilibra, de uma certa forma, o perigo representado pelas soleiras, pelos passos, pelo limen. Onde bate o acento quando dizemos confim, limite: sobre o continuum do limes, do espaço de confim, ou sobre a ‘porta aberta’ do limen? E, todavia, não pode existir confim que não seja limen e ao mesmo tempo limes”. In: CACCIARI, Massimo. “Nomes de lugar: confim”. Tradução Giorgia Brazzarola. Publicado na Revista de Letras, São Paulo, v. 45, n. 1, 2005, pp. 13-22. Acessado, em 10/11/2013: http://seer.fclar.unesp.br/letras/article/view/56

[4] BLANCHOT, Maurice. “Traduire”, In: op. cit., p. 69.

[5] Ibidem, p. 70.

[6] Importante ressaltar que por vir não quer dizer futura, mas muito mais inoperante, onde aquilo que está por vir não cessa de chegar, resistindo sempre a uma apreensão totalizante. [N. A.]

[7] RELLA, Franco. La responsabilità del pensiero: il nichilismo e i soggetti. Milano: Garzanti, 2009, p. 69.

[8] “Se quisermos trazer a literatura ao movimento que torna acessível todas as ambiguidades, ele está ali: a literatura, como a palavra comum, começa com o fim que, somente ele, permite compreender. Para falar, devemos ver a morte, vê-la atrás de nós. Quando falamos, nós nos apoiamos num túmulo, e esse vazio do túmulo é o que faz a verdade da linguagem, mas ao mesmo tempo o vazio é realidade e a morte se faz ser. Existe ser – isto é, uma verdade lógica e expressável – e existe um mundo porque podemos destruir as coisas e suspender a existência. É nisso que podemos dizer que existe ser, porque existe o nada: a morte é a possibilidade do homem, é sua chance, é por ela que nos resta o futuro de um mundo realizado; a morte é a maior esperança dos homens, sua única esperança de serem homens”. BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 344.

[9] Recomendo a leitura do ensaio “Lindes, limites, limiares” de Raúl Antelo, publicado no Boletim de Pesquisa – Nelic, edição especial “Lindes/Fronteiras”, 2008, pp. 04-27. Acessado em 10/11/2013: https://periodicos.ufsc.br/index.php/nelic/issue/view/994/showToc

[10] DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 37.

[11] Ibidem, p. 40. Segundo Derrida, “se a estrutura do original é mercada pela exigência de ser traduzido, é que, fazendo disso a lei, o original começa por endividar-se também em relação ao tradutor. O original é o primeiro devedor, o primeiro demandador, ele começa por faltar – e por lastimar após a tradução. Essa demanda não é apenas do lado dos construtores da torre que querem se fazer um nome e fundar uma língua universal se traduzindo dela mesma; ela também obriga o desconstrutor da torre: dando seu nome, Deus também invocou a tradução, não apenas entre as línguas tornadas subitamente múltiplas e confusas, mas primeiramente de seu nome, do nome que ele clamou, deu e que deve traduzir-se por confusão para ser entendido, portanto, para deixar entender que é difícil traduzi-lo e assim entendê-lo. No momento em que ele impõe e opõe sua lei àquela da tribo, ele é também demandador da tradução. Ele também está endividado”.

[12] Ibidem, p. 41. “O duplo endividamento passa entre os nomes. Ele ultrapassa a priori os portadores dos nomes se se entendem por isso os corpos mortais que desaparecem atrás da sobrevida do nome. Ora, um nome próprio pertence e não pertence, digamos, à língua, nem mesmo, precisemos agora, ao corpus do texto a traduzir, do a-traduzir. A dívida não empenha sujeitos vivos, mas nomes à margem da língua ou, mais rigorosamente, o traço contratando a relação do dito sujeito vivo ao seu nome enquanto que este se mantém à margem da língua. E esse traço seria aquele do a-traduzir de uma língua a outra, dessa margem a outra do nome próprio”.

[13] Segundo Walter Benjamin, “a tradução é uma forma. Para apreendê-la como tal, é preciso retornar ao original. Pois nele reside a lei dessa forma, enquanto encerrada em sua traduzibilidade. A questão da traduzibilidade de uma obra possui um duplo sentido. Ela pode significar: encontrará a obra alguma vez, dentre a totalidade de seus leitores, seu tradutor adequado? Ou então, mas propriamente: admitirá ela, em conformidade com sua essência, tradução e – em consonância com o significado dessa forma – consequentemente a exigirá também?”. In: BENJAMIN, Walter. “A tarefa do tradutor”, In: Escritos sobre mito e linguagem. Tradução Susana Kampff Lages. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 102. Walter Benjamin, portante, parece postular que a origem é sempre póstuma e postiça, já que a tarefa do tradutor é a própria traduzibilidade e não exclusivamente a tradução. Ainda segundo Benjamin: “A traduzibilidade é uma prioridade essencial de certas obras – o que não quer dizer que a tradução seja essencial para elas, mas que uma determinada significação contida nos originais se exprime na sua traduzibilidade. É mais do que evidente que uma tradução, por melhor que seja, jamais poderá significar algo para o original. Entretanto, graças à traduzibilidade do original, a tradução se encontra com ele em íntima conexão”. Ibidem, p. 104.

 

[14] DERRIDA, Jacques. Torres de Babel, op. cit., p. 20.

[15] Ibidem, p. 34.

[16] BENJAMIN, Walter. “A tarefa do tradutor”, In: Escritos sobre mito e linguagem, op. cit., p. 102.

[17] MEILLASSOUX, Quentin. “Deuil à venir, dieu à venir”, In: Critique, n. 704-705, janvier-février, 2006, p. 105-115.

[18] Ibidem, p. 105.

[19] Jacques Derrida, em Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade, escreve: “A questão da hospitalidade começa aqui: devemos pedir ao estrangeiro que nos compreenda, que fale nossa língua, em todos os sentidos do termo, em todas as extensões possíveis, antes e a fim de poder acolhê-lo entre nós? Se ele já falasse a nossa língua, com tudo o que isso implica, se nós já compartilhássemos tudo o que se compartilha com uma língua, o estrangeiro continuaria sendo um estrangeiro e dir-se-ia, a propósito dele, em asilo e em hospitalidade? É este paradoxo que vamos precisar”. In: DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade. Tradução de Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003, p. 15.

 

[20] Importante lembrarmos que o ensaio “A tarefa do tradutor” (Die Aufgabe des Übersetzers) é o prefácio escrito por Walter Benjamin para sua tradução dos Tableaux parisiens de Baudelaire, publicada em 1923, em Heidelberg, Alemanha.



Claudio Parmeggiani, Parla anche tu, 2005


Traduzir

Maurice Blanchot

 

       Sabemos o quanto devemos aos tradutores e, ainda mais, à tradução? Acredito que não. Mesmo se sentimos gratidão pelos homens que se adentraram corajosamente nesse enigma – a tarefa de traduzir –, mesmo se os saudamos de longe como os mestres ocultos de nossa cultura, ligados a eles e docemente submetidos ao seu zelo, nosso reconhecimento permanece silencioso, um pouco sustentado, além do mais, pela humildade, pois não somos capazes de sermos seus reconhecedores. A partir de um ensaio de Walter Benjamin, no qual o excelente ensaísta nos fala da tarefa do tradutor, vou tirar algumas considerações sobre essa forma original de nossa atividade literária. E se dizemos, com ou sem razão, que são os poetas, os romancistas, até mesmo os críticos, os responsáveis pelo sentido da literatura, é necessário citar, com a mesma importância, os tradutores, ou seja, os escritores da espécie mais rara e, de fato, incomparáveis.

       Traduzir, agora me veio à mente, permaneceu por muito tempo, em certas culturas, como uma espécie de pretensão maligna. Algumas pessoas não queriam que se traduzisse em sua língua, outras, sim, e a guerra foi imprescindível para que essa traição, em sentido exato, se realizasse: entregar ao estrangeiro a verdadeira expressão de um povo. (Lembremo-nos do desespero de Etéocles: “Não permitam que seja arrancada pelas raízes, quando tomada pelo inimigo, uma cidade que fala a língua grega”)[1]. Mas o tradutor é culpado por uma impiedade ainda maior. Inimigo de Deus, ele pretende reconstruir a Torre de Babel tirando ironicamente vantagem e proveito da punição celeste que separa os homens, confundindo as línguas. Em um tempo, acreditava-se poder remontar a uma linguagem originária, palavra importante, tanto que bastaria proferi-la para afirmar a verdade. Benjamin conserva algo desse sonho. As línguas, diz ele, compreendem a mesma realidade, mas não do mesmo modo. Quando digo Brot e quando digo pain, ouço a mesma coisa de maneiras diferentes. Tomadas uma a uma as línguas são incompletas. Com a tradução não nos contentamos em substituir uma modalidade por outra, um traço por outro, mas fazemos referência a uma linguagem superior, entendida como a harmonia ou como a unidade complementar de todos esses diferentes modos de compreensão, podendo exprimir-se de forma ideal na convergência do mistério entre todas as línguas faladas por todas as obras. Daí o singular messianismo do tradutor, quando atua para colocar as línguas em direção a essa linguagem última já testemunhada em cada língua presente, no devir que ela conserva e da qual a tradução se apropria.

       Trata-se, evidentemente, de um jogo utópico de ideias, pois se supõe que toda linguagem tenha um único e mesmo modo de abordagem, e sempre com o mesmo significado, e que todos os modos de entendimento podem se tornar complementares. No entanto, Benjamin sugere outra coisa: cada tradutor vive da diferença das línguas, cada tradução se funda nessa diferença, mesmo seguindo, aparentemente, o desenho perverso no momento em que a suprime. (A obra bem traduzida é louvada em dois modos contrastantes: não parece traduzida, diz-se; ou, de outra forma, é realmente a mesma obra, acredita-se que seja extraordinariamente idêntica; mas, no primeiro caso, a origem da obra é apagada em benefício da nova língua; no segundo caso, em benefício da obra se apaga a originalidade das duas línguas; em cada caso, algo de essencial se perdeu). Na realidade, a tradução não está totalmente destinada a fazer desaparecer a diferença, que, pelo contrário, é seu jogo: faz-se constantemente alusão a ela, dissimulando-a, porém, talvez, revelando-a e por vezes acentuando-a, ou seja, ela é a própria vida dessa diferença, encontra nesta a sua nobre função e também a sua fascinação, quando chega a unir orgulhosamente as duas línguas com uma força unificante semelhante àquela de Hércules ao aproximar as duas margens do mar.

       Mas é preciso acrescentar: a obra está madura e é digna de ser traduzida apenas se esconde, de algum modo, – caso esteja à disposição – essa diferença, ou porque faz referência originalmente à outra língua, ou porque reúne de maneira privilegiada as possibilidades de cada língua viva, quando é diferente de si mesma, estrangeira a si mesma. O original jamais é estático e tudo aquilo que é certo acontecer numa língua num dado momento, tudo aquilo que nela indica ou convoca outro estado, às vezes perigosamente outro, afirma-se na deriva solene das obras literárias. A tradução está ligada a esse devir, pois o gesto de “traduzir” o realiza, e só se torna possível mediante esse movimento e essa vida de que se apropria, por vezes, simplesmente para libertá-la, ou para mantê-la com muito esforço. Em relação às obras-primas clássicas que pertencem a uma língua que não falamos, elas exigem a tradução justamente pelo fato de serem as únicas depositárias da vida de uma língua morta e as únicas responsáveis pelo porvir de uma língua sem porvir. Vivem unicamente através da tradução; além disso, são, mesmo em sua língua original, constantemente retraduzidas e reconduzidas em direção àquilo que têm de mais singular: voltadas à sua estranheza diante da origem.

       O tradutor é um escritor de uma originalidade singular, precisamente onde parece não reivindicar nenhuma originalidade. Esse é o maior segredo da diferença das línguas não abolida, mas utilizada para despertar algo em si mesma, provocando mudanças violentas ou sutis, por exemplo, uma presença daquilo que existe de diferente, originalmente, no original. Como afirma, de fato, Benjamin, não se trata aqui de uma semelhança: caso se queira que a obra traduzida se assemelhe à obra a ser traduzida, então, não há tradução literal possível. Trata-se, ao contrário, de uma identidade a partir de uma alteridade: trata-se da mesma obra em duas línguas estrangeiras, seja em razão de sua estranheza, seja porque elas tornam visível aquilo que fará com que essa obra sempre pareça outra, movimento a partir do qual é necessário ressaltar a luz que iluminará, em transparência, a tradução.

       Sim, o tradutor é um homem estranho, nostálgico, que sente em sua língua a falta de tudo aquilo que a obra original (que não pode, de resto, alcançar, já que não mora ali, tal como um eterno hóspede que não a habita) lhe preanuncia sob a forma de afirmações presentes. Deriva de tais afirmações, segundo os especialistas, tanto que ao traduzir ele se encontra sempre em maior dificuldade em sua língua do que embaraçado pela língua que não possui. Não vê apenas tudo o que falta à língua francesa (por exemplo), para reencontrar o texto estrangeiro que domina, mas possui agora a língua francesa de modo carente, pois repleta dessa privação que deve ser preenchida pelos recursos de outra língua, ela mesma tornada outra na única obra, na qual se recolhe momentaneamente.

       Benjamin cita, através da teoria de Rudolf Pannwitz, uma passagem surpreendente: “Nossas versões, mesmo as melhores, partem de um princípio falso quando se propõem a germanizar o indiano, o grego, o inglês, ao contrário de tornar indiana, grega e inglesa a língua alemã. Tais versões têm um respeito muito maior pelos usos de sua língua do que pelo espírito da obra estrangeira (...). O erro fundamental do tradutor é ficar conformado com o estado contingente de sua língua, ao contrário de deixá-la poderosamente estremecida e agitada pela língua estrangeira”. Sugestão ou reivindicação perigosamente atraente. Deixa entender que cada língua poderia tornar-se todas as outras, ou que, ao menos, deveria mover-se sem danos em cada nova direção. Supõe que o tradutor encontrará muitos recursos na obra a ser traduzida e que também encontrará autoridade suficiente em si mesmo para provocar essa mudança brusca; presume, enfim, uma tradução tanto mais livre e inovadora quanto mais for capaz de uma maior literalidade verbal ou sintática, que tornaria inútil, no limite, a tradução.

       Pannwitz, para comprovar suas teses, pôde apelar para nomes importantes, tais como Lutero, Voss, Hölderlin e George, que não hesitaram, sempre que assumiram o papel de tradutores, em romper com os esquemas da língua alemã, com o intuito de ampliar suas fronteiras. Em última análise, o exemplo de Hölderlin mostra o risco que corre o homem fascinado pela potência da tradução: as traduções de Antígona e de Édipo foram, mais ou menos, suas últimas obras, na soleira da loucura, obras extremamente meditadas, controladas, escolhidas e conduzidas com inflexível firmeza. Seu objetivo não era levar o texto grego à língua alemã, nem levar a língua alemã às fontes gregas, mas queria, por outro lado, unificar as duas forças que trazem em si: uma, com as vicissitudes do Ocidente, a outra, com as do Oriente, na simplicidade de uma língua total e pura. O resultado é quase terrível. Ele acredita ter descoberto nas duas línguas um pacto tão profundo, uma harmonia tão fundamental, capaz de substituir seu sentido ou capaz de fazer do hiato que se abre entre elas a origem de um novo sentido. O efeito é tão poderoso que passamos a entender a risada fria de Goethe. De que ria Goethe? De um homem que não era mais nem poeta, nem tradutor, mas que se encaminhava corajosamente em direção ao centro em que acreditava encontrar reunido o puro poder de unificação, assim daria um sentido para além de todo sentido determinado e limitado. Podemos entender que essa tentação tenha sido provocada em Hölderlin pela tradução; porque o homem pronto a traduzir está numa intimidade constante, perigosa, exemplar, com o poder unificador da obra em toda relação prática, igualmente como em toda linguagem, que o coloca, ao mesmo tempo, na pura cisão inicial. É dessa familiaridade que ele traz o direito de ser, entre os escritores, o mais orgulhoso ou o mais secreto – com a convicção de que traduzir, afinal, é uma loucura.

 

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BLANCHOT, Maurice. “Traduire”, In: L’amitié. Tradução do ensaio de Davi Pessoa Carneiro. Paris: Editions Gallimard, 1971, pp. 69-73.

[1] [Ésquilo, Sete contra Tebas, vv.78-79].

 

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Davi Pessoa é professor de língua e literatura italiana (UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UniRio). 

Autor de Terceira Margem: Testemunha, Tradução (Editora da Casa, 2008), Dante: poeta de toda a vida, com Maria Pace Chiavari (Biblioteca Nacional, 2015) e Pasolini: retratações (7Letras, 2019), com Manoel Ricardo de Lima. 

Atua também como tradutor, tendo já traduzido livros de Giorgio Agamben, Pier Paolo Pasolini, 

Donatella Di Cesare, Roberto Esposito, Furio Jesi, Elsa Morante, Italo Svevo, entre outros.