5/29/2012

Escrever é o impoder






“Não escrevo mais”, disse e desapareceu Rimbaud. “A escrita é sempre o desacordo”,disse Blanchot. “Escrever não é algo que se possa”, disse Duras. Acuado por uma corrosiva abulia ouço: “Escrever é o impoder: a força que [pelas mãos] nos escapa". ... "Escrever é uma passagem na qual ato não se consolida jamais, pois aquele que escreve é o neutro cuja soberania só consolida no intervalo, entre a folha branca e o outro, no momento em que a escrita se efetua".  Nilson Oliveira

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IMPODER

Não será a poesia mais do que aquele momento em que a linguagem, roçando a verdadeira natureza do ser, nele descobre o silêncio e assim se auto‑destrói? É esta, no fundo, a questão que Maurice Blanchot coloca em Le livre à venir (1959) ao contemplar as reflexões de Antonin Artaud sobre a essência do ser. Blanchot detém‑se na tese central patente na Correspondance avec Jacques Rivière, colectânea epistolar que Artaud fizera publicar 1927, onde é expressa a sua incapacidade de pensar o pensamento. Tornara‑se evidente, segundo Blanchot, que o autor dos dois manifestos do «théatre de la cruauté» chegara a um ponto sem retorno no qual assistia impotente à desagregação do acto de pensar e, consequentemente, à desintegração do seu produto final: o texto. Reconhecia assim implicitamente que toda a literatura em geral, e a poesia em particular, falhavam como fenómeno comunicativo. Para Artaud, a escrita poética instituía‑se como locus privilegiado do impoder («impouvoir»), i. e., da impossibilidade de pensar, espaço onde a inscrição das palavras mais não seria do que um gesto guiado pela angustiosa descoberta de que nada há para exprimir.

*
O momento de criação poética não se tratava, portanto, de um breve instante em que imperava a ilusão de se poder tanger o vazio e o inefável por via da linguagem. Pelo contrário; nascia da dolorosa consciência de que era impossível construir sentidos ante a ausência do ser, centro de toda a existência humana. Como dirá Blanchot, “l’être, ce n’est pas l’être, c’est ce manque de l’être, manque vivant que rend la vie défaillante, insaisissable et inexprimable, sauf par le cri d’une féroce abstinence” (Blanchot, 1959: 55). Mesmo que eventualmente a poesia partisse de um ensejo de comunicar ao próximo algo que só ao poeta pertencia, o grau de entropia seria praticamente nulo, uma vez que a linguagem com que ele trabalha lhe é única e, por isso, inacessível aos demais. Além disso, a confrontação com o incomunicável e o inominável gera um processo de erosão do pensamento que inexoravelmente o remete para formas estéreis e desprovidas de significado, qual olhar de Medusa empedernecendo todo e qualquer gesto, toda e qualquer expressão. Nesse caso, com que objectivo escreve o poeta — como que arrebatado pela vertigem do aniquilamento da sua própria voz — senão para admitir que nada há para escrever? Ainda assim, ele persiste em residir na poesia porque crê que somente através dela é possível acalentar a esperança de se evadir da inanidade, de iludir a vacuidade.Artaud teria certamente dado uma resposta negativa à angustiosa pergunta que Samuel Beckett deixa em suspenso em The Unnamable, uma das suas mais inquietantes narrativas: “Strange task, which consists in speaking of oneself. Strange hope, turned towards silence and peace. Possessed of nothing but my voice, the voice, it may seem natural, once the idea has been swallowed, that I should interpret it as an obligation to say something. But is it possible?” (Beckett, 1959: 285)

Fonte: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=416&Itemid=2















5/23/2012

Ponte do Galo: a cidade como labirinto do desejo


Ponte do Galo: foto retirada do google earth






Por Ernani Chaves


 




Texto publicado na revista Polichinello nº 13 ׀ Experiência-Limite
● ISSN: 2178-1230 – 10



         Alfredo sonhava freqüentemente com Belém. Desde Chove nos campos de Cachoeira que sua fantasia, sua imaginação, seu desejo, estão fortemente ancorados a sua “viagem” a Belém (CCC, p. 189). Dalcídio Jurandir escreve “viagem” assim, entre aspas, como que a indicar sua outra significação, pois não se trata de qualquer viagem, mas da viagem, aquela que foi sonhada, acalentada, exigida: “Quantas vezes, já com o frio da febre ou ainda com a febre, não ia chorando se queixar, bater os pés na cozinha onde sua mãe lava as xícaras do café ou mexe a panela - mamãe, me mande para Belém. Eu morro aqui, mamãe. Cresço aqui e não estudo. Quero estudar, quero sair daqui!” (CCC, p. 189).


         Belém aparece assim, de início, aos olhos do menino como o lugar da “vida”, em oposição a Cachoeira, um lugar de “morte”. “Estudar” parece ser, desse modo, apenas um pretexto, uma boa razão para ir embora e, provavelmente, tentar esquecer os fantasmas que marcam a sua infância. Belém se torna a cidade-salvadora, cidade-redentora, cidade-acolhedora, cidade-mãe, que as narrativas de Bibiano, o “filósofo”, segundo o Major Alberto, transformavam em “embevecimento” (CCC, p. 191). Era também a cidade-circo, marcada pelo riso e pela alegria dos trapezistas e engolidores de fogo.


         A contraposição a Alfredo e seu desejo de ir embora é Eutanázio, preso a Irene e a Cachoeira, incapaz de viver e sobreviver na cidade grande e, por isso, retorna sempre a Cachoeira. Eutanázio tem um livro de predileção, que nunca leu, mas gostaria de comprar. O livro, diz ele, se chama Dores do Mundo e seu autor, jamais mencionado, tem “um nome complicado” (CCC, p. 22, 23, 205). Ora, sabemos de quem se trata: Dores do Mundo é uma coletânea de aforismos e pequenos textos de um filósofo de “nome complicado”, Arthur Schopenhauer, o “filósofo do pessimismo” que, não por acaso, detestava o barulho, o ruído da grande cidade. Nesta perspectiva, enquanto Eutanázio vai ficando, cada vez mais enrijecido e impossibilitado de andar, na sua doença-prisão, no seu gozo infinito no sofrimento, Alfredo sonha, a todo momento, com sua partida: “Mas Alfredo acorda com aquela cidade cheia de torres, chaminés, palácios, circos, rodas giratórias que lhe enchem o sonho e o carocinho. De olhos abertos para o telhado, pensa na sua ida para Belém. Seu sonho é ir para Belém, estudar” (CCC, p. 86).


         Em Ponte do Galo, publicado em 1971, já encontramos Alfredo ginasiano, estudando em Belém, isto é, realizando, de algum modo, o sonho infantil de sair de Cachoeira e ir morar na cidade. Entretanto, o que é interessante observar é o quanto entre a visão do menino e do ginasiano, já se instala uma ruptura. A cidade-risonha, construída pelos olhos de Bibiano (CCC, p. 86), cidade-luminosa, iluminada, esta “Paris dos Trópicos”, dá lugar aos contornos de uma outra cidade, preferencialmente noturna, sombria, chuvosa, estrategicamente vista a partir do bairro do Telégrafo, cuja delimitação topográfica, geográfica, já é significativa por si só: de um lado, no oeste, a Baía, que dá vida e embeleza a cidade; de outro, no leste, as “baixas”, como a “baixa da Manuel Evaristo”, os alagados, os igapós, como os que cortavam a José Pio, onde os pés afundam na lama, as pessoas se equilibram sobre pontes e convivem com o cheiro do estrume das vacarias; no sul, o Igarapé das Almas ( ou será das Armas?!) e sua ponte que ligava a Avenida Senador Lemos ao bairro do Reduto e ao norte, emblemática, ligando o Telégrafo a Sacramenta, ela, a Ponte do Galo. Todos esses lugares são lugares de passagem, de ligação, de transição, como se não houvesse mais nenhum ponto fixo, nenhum esteio a sustentar uma sólida cumeeira.


         A cidade adentra na poesia e na literatura como um lugar fundamental, a partir do século XIX. Com Baudelaire e Rimbaud, Verhaeren e os Expressionistas, apenas para citar alguns. Antes que Alfred Döblin e John dos Passos, já na primeira metade do século XX, a tomassem como tema, ela já era vista como “potência de enfeitiçamento, de maravilhamento, uma espécie de desejo e de violência que anuncia a mitologia expressionista”, onde a cidade se tornará um misto de “paisagem de sonho e de angústia que se reencontram sem cessar”[1] .


         Talvez pudéssemos encontrar um denominador comum às diferentes visões da cidade, que a literatura construiu entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX num certo sentimento de “mal-estar”, de um “mal-estar” em meio à cultura, tal como Freud o chamou em seu texto seminal, publicado em 1930 - Das Unbehagen in der Kultur - um texto percorrido, de ponta a ponta, por imagens de cidades. E no seu centro, a imagem da Viena limpa, ordeira, com flores na sacada, mas que para além dos imperativos do progresso e da ordem, esconde a miséria psíquica: por trás de cada cortina de veludo espesso, com a qual a burguesia pensava se defender do anonimato que reinava em meio à multidão da grande cidade, o sofrimento neurótico. Assim, Freud, como o menino Alfredo, como cada um de nós talvez, desejou intensamente conhecer e viver em uma outra cidade, quis sair de sua Viena-Cachoeira, alimentando por um sonho, que o conduzia sempre a esta outra cidade, a Roma, a cidade-eterna.


         Com Freud e a Psicanálise, a cidade se converte numa configuração onírica e, com isso, torna-se o oposto da cidade do Barão Hausmann, o prefeito responsável pela transformação urbanística de Paris, na segunda metade do século XIX. Hausmann sonhara com uma cidade geométrica, perfeita, “cartesiana”, com suas largas avenidas, que facilitasse a circulação (mais dos carros que das pessoas!) e, principalmente, evitasse as revoltas e as manifestações populares. A cidade anti-Comuna, enfim, onde toda barricada fosse rapidamente vencida. A cidade freudiana é, portanto, ao contrário da do Barão Hausmann, “labiríntica”. Só que um labirinto sem o fio de Ariadne, um labirinto do desejo. Da mesma forma Dalcídio Jurandir, que superpõe à cidade de Antonio Lemos, cujo modelo era exatamente o prefeito parisiense, uma outra cidade, povoada de fantasmas, um “subúrbio fantasmal e gotejante, entre os fedores da vacaria, feira de peixe e bucho e a ruidosa insônia das crianças” (PG, p. 136).


         Personificando o desejo, essa deriva sem meta e sem fim, pois seu objeto está definitivamente perdido, encontramos as duas netas da parteira, Ana e Nini, descritas numa espécie de concluio mimético com a cidade. Podemos encontrá-las na esquina da Manuel Evaristo tomando tacacá (PG, p. 130), atravessando o Largo da Penitenciária em direção ao campo do Aston Vila Footbal Club (PG, p. 129), correndo pela Baixa da Manuel Evaristo para, mais adiante, cada uma tomar o seu rumo (PG, p. 1311). A avó-parteira, zelosa pelas netas, não se cansa de procurá-las, muitas vezes acompanhada por Alfredo. E assim, ela  conjectura o paradeiro das netas, aderindo, portanto, à mesma deriva, à mesma errância: talvez estejam no igarapé (PG, p. 132), na Sacramenta “fazendo velório” (PG, p. 133), quem sabe “varavam pela Pedreira” (PG, p. 133) ou “coorriam das cobras do Posto” (PG, p. 133).


         As netas, como a Irene de Chove, são figuras da sedução, da sexualidade, em especial Ana, que rouba a cena com sua sexualidade a transbordar na própria pele perfumada ou ainda no vestido de seda e no sapato. Para D. Dudu, a costureira que hospeda Alfredo, as netas têm uma “labareda” dentro de si (PG, p. 132). Alfredo corre atrás de Ana, como se quisesse livrá-la tanto do destino de Irene, quanto o de Luciana, a filha de D. Dudu, que “caíra na vida”. E nessa corrida contra o destino, Alfredo se embrenha na cidade, do Igarapé das Almas à Ponte do Galo, da Municipalidade ao fim da linha do bonde, já próximo ao curtume e aos estaleiros e navios do porto. Sempre atrás de Ana, que era “insaciável da rua e da noite” (PG, p. 137). É então que, finalmente, Alfredo a encontra e o diálogo deles constitui esta figuração da cidade como labirinto do desejo:





         “- Espionando? - pergunta Ana a Alfredo - Não tenho como que pagar a tua vigiação, amor dos outros. Larga o emprego, estudioso.


         - Ana, Ana, e tua irmã?


         - Corpo dela nasceu no meu? Nem de mim sei, que dirá.


         Um beiço de irritação e aposta, o rosto, agora pálido, à luz do poste, num ar de quem espera sentença. Alfredo não se mexia.


         - Mas então me apanha pela mão, me laça, me bota dentro de casa, costura a minha pele na parede, me prega com alfinete, me deixa pelada ao pé do fogão. Não és o domador? Me laça, me toca a vara: `pró chiqueiro, porca!`.


         E sorria à espreita, estendeu a mão, o braço nu, alvo, abandonado, a ilharga ao alcance. Alfredo pôs-se a rir, a fazer-lhe aceno que entrasse, a girar a mão, como se fosse laçá-la, entrasse, a porta estava encostada.


         - Tua vó te procura pelo planêto inteiro, mulher.


         - Mulher? Com que intenção `mulher`? Me diz!


         - Não és?


         - ´Mulher´, disseste com intenção, sim. Que te importa?


         E abanava, batia as chinelas ´mulher´!, olhava para ele, num resmungo. Mulher...


         - Eu só o que faço é andar pela noite”. (PG, p. 137-8).





Este trecho, uma amostra da maestria do escritor Dalcídio Jurandir, é extremamente significativo para os meus propósitos. Ana é aqui a figuração do desejo, repetindo uma figuração já clássica da prostituta: Ana, como uma mariposa, à luz do poste, desafiando despudoradamente o possível “domador”. O que diz Ana, o tempo todo, a não ser que não adianta querer amordaçar o desejo, atá-lo, imobilizá-lo? Pois não é o desejo esta força que nos arrasta, desafiando, antes de mais nada, a moral e os bons costumes? Ana, a “porca”, a “suinara” (PG, p. 142), que na sua pouca idade já é suspeita de ser “mulher”!. Ana, que como uma égua, “corria num galope, desaparecendo para os lados do curtume” (PG, p. 138). “Porca”, “suinara” e “égua galopando”: designações possíveis do desejo, para o que rompendo com a hegemonia da consciência e da unidade do sujeito, assinala para o que há de “animal” em nós. Figuração do corpo como sede dos afetos e das paixões, como o que resiste a dobrar-se à direção da alma. Mas também corpo feminino, corpo de mulher, a desafiar as imposições da cultura que a querem, preferencialmente, como esposa e mãe. Ana, coquete, sedutora, pedindo, num desafio: “me laça, me toca a vara: ´pro chiqueiro, porca!´”. E desaparece, galopando, não mais “porca”, “suinara”, não mais confinada à significação do desejo como sujeira, lama, lodo, como coisa “porca”, mas agora transmutada em “égua”, galopando, como se fosse alada, nesta outra significação do desejo como intensidade, vida, conquista do absolutamente insólito, do novo mais uma vez, como criação infinita, inesgotável, de outras possibilidades de existência, onde a errância é a condição de possibilidade da plenitude. As duas faces de Eros, que dominam a nossa cultura desde os gregos estão aí, juntas, reunidas em Ana


         A cidade de Ana é a rua, é a noite. Mas a rua não é aqui a dos palacetes dos barões da borracha, “a pacata rua chamada Benjamin Constant” de Eneida de Moraes[2], nem o “tranqüilo Umarizal” de de Campos Ribeiro[3], mas aquela que se oferece ao pé e à mão de Ana, ao desejo de Ana de percorrer vielas, de atravessar pontes, de perder-se nas matas do curtume, de misturar-se ao capim fresco, molhado de orvalho das vacarias, de entrar pelo Uma, correr pela Volta da Tripa e se acabar lá longe, cansada, arfante, esbaforida, na Ponte do Galo:





         “- Eu só faço é andar pela noite. Aleja?


         - É que a vó de vocês se esfalta.


         - ´tiveste no orfanato? Que tu sabes de mim?


         - Não discuto isso, Ana. O pé é teu, a noite na tua mão...


         - No meu pé, no meu pé, que a noite está. E olha, não deu a hora de recolher pro chiqueiro, adeus. Ou vai porfiar comigo ver quem corre mais até o curtume? Brincar de se esconder por dentro daqueles navios podres? Assustar as visagens deles?” (PG, p. 138).





         Assim é Ana, sempre assim, desafiadora como o desejo. Sim, a cidade está no seu pé e na sua mão. A cidade se estende diante dela como cúmplice, escondendo-a nas trevas da noite, facilitando sua correria, seu galope. Ana e a cidade: duas mulheres numa só.


         E Alfredo? O possível “domador”? Enquanto Ana vive o presente, Alfredo é obcecado pelas imagens do passado, por esses fantasmas que retornam à noite, nos sonhos. Assim, enquanto Ana corre, Alfredo fica ali, quase totalmente imóvel, enquanto a chuva cai sobre a José Pio. E então, como num sonho, onde fragmentos dispersos e diversos se reúnem e se sobrepõem, rompendo as costumeiras relações entre espaço e tempo, Belém é Cachoeira: “Agora na José Pio, chuva, chuva, naqueles bailes mortos sustentada, a casa trancava-se. Este tempe, em Cachoeira, é a apanha do tucumã e gogó” (PG, p. 138). A água da chuva ressuscita todos os fantasmas: Sabá Manjerona, o velho Araguaia, Isabel, Dada, Celina, Raul. E quanto mais a chuva cai, mais os fantasmas reaparecem: “Seguiu sob a chuva, não de Belém, chuvas de Cachoeira, as de outrora sobre o chalé, sobre a casa do seu Cristóvão, sobre Eutanázio andando” (PG, p. 139). Fragmentos do passado, permeados pela morte, assaltam Alfredo, de forma impiedosa. Alfredo, que sempre quis sair de Cachoeira, que sempre quis se libertar de sua própria infância, parece firmemente atado a esta campo movediço, a essa eterna busca, talvez sabendo que enquanto vai à busca de Ana, vai é em busca de si mesmo.


         Belém permanece para Alfredo uma imagem onírica, onde a criança e o ginasiano se encontram. A Belém idílica, sonhada tantas vezes em Cachoeira, não existe. A morte está em todo lugar. E a insaciável procura também. Não só por Ana, mas também por outra Ana, a Luciana, filha de D. Dudu, a sua hospedeira, que caíra na vida. Como se os filhos de Major Alberto, Alfredo e Eutanázio, estivessem condenados a esta eterna busca por mulheres, por uma mulher, como se nelas e apenas nelas, fosse possível encontrar a felicidade. É por Luciana também, que Alfredo bate a cidade. É por ela que a cidade também se oferece a ele e que, tal como para Ana, se encontra a seus pés:





         “Sem encontrar Luciana, que me enxota desta casa, agüento o Liceu? Toda a cidade aos meus pés. Entrocamento, Uma, Guamá, mata do Murutucu, ninguém sabendo de Luciana. Fujo. Deixo no pátio imundo nesta busca, aquela viagem, o barco a partir-se no quebra-pote debaixo da trovoada - a mãe atravessando a baia, sabia lá que sede ou poço oculto ou a sua ressurreição, por trazer o filho para a cidade, ´nada como saber, meu filho´, dizia o olhar dela, toda a verdade é o seu saber; sim tal qual a folha do lilás. Não era o barco que se partia, era o chalé, partido pelo mesmo raio que abriu a porta a Luciana” (PG, p. 149-50).


         A cidade aos pés de Alfredo! O que isso pode significar? Em primeiro lugar, uma precisa delimitação geográfica da Belém na década de vinte do século passado: o Entroncamento, o Uma, o Guamá, o Murutucu. A cidade inteira e seus limites. Em segundo lugar, a figura de Teseu-Alfredo em busca de Ariadne-Luciana-Ana, só que não há nenhum fio a seguir. Da cidade-labirinto, ele só pode saber dos limites, daquilo que designa o que não piode ser ultrapassado, como se para além desses limites houvesse o nada, o vazio, o caos absoluto, o não-mundo, esse espaço enigmático que antecede toda criação. Em terceiro lugar, a memória, o passado de novo assaltando sem piedade, a lembrança da tão sonhada viagem a Belém para estudar, com D. Amélia, a mãe, numa travessia difícil em meio ao temporal e ao quebra-pote das ondas da baía. Difícil travessia essa, alegoria das travessias na vida do próprio Alfredo.


         Este trecho, exemplar da forma cinematográfica do estilo de  Dalcídio Jurandir nos seus últimos livros, termina com uma indagação crucial, a mais fundamental de todas, talvez: “A ponte, passo? Por causa da Luciana, todos culpados, ou toda a culpa deles carrego eu?” (PG, p. 150). Não por acaso, neste momento Alfredo está passando por uma igreja e escuta o canto que vem de lá e a morte, mais uma vez, atravessa o caminho deste “andador da noite, rastreador do subúrbio”:





         “O eco das águas há pouco despejadas pela selva. Barco de náufragos, a igreja cantava. O canto, ou o coro de adeus e de socorro, despencava as quarenta noites de Eutanázio no chalé e aquelas de Luciana (...) A busca de Luciana junto à morte do irmão, visto agora pelo rapaz, por este andador da noite, rastreador de subúrbio, atrás do pastor, ali na igreja, que prega a esperança, por demais desprezada” (PG, p. 152).





         Mas, ao contrário do pastor, Dalcídio Jurandir não nos dá nenhuma esperança. Apesar de “comunista”, sua obra não deixa nenhum espaço para o otimismo baseado na crença do progresso, que alimentava as esquerdas, desde a 2ª. Internacional. Talvez porque, tal como seu personagem Eutanázio, o escritor Dalcídio Jurandir tivesse sempre diante de si uma página das Dores do Mundo, só que transformando o pessimismo schopenhaureano - como o faz Max Horkheimer - numa arma crítica contra as fáceis ilusões alienantes da Modernidade:





         “Não há nada fixo na vida fugitiva, nem dor infinita, nem alegria eterna, nem impressão permanente, nem entusiasmo duradouro, nem resolução elevada que possa durar toda a vida! Tudo se dissolve na torrente dos anos. Os minutos, os inumeráveis átomos de pequenas coisas, fragmentos de cada uma das nossas ações, são os vermes que devastam tudo quanto é grande e ousado...Nada se toma a sério na vida humana, o pó não vale esse trabalho”.





Ernani Chaves é professor da Ufpa, autor de No Limiar do Moderno: um estudo sobre F. Nietzsche e Walter Benjam – editora Paka-Tatu














[1] PALMIER, Jean-Michel, L´Expressionisme et les arts, vol. I, Paris, Payot, 1979, p. 314-5.
[2] Cf. Aruanda. Banho de Cheiro, Belém, Secult/Fcpnt, 1989, p. 49.
[3] Cf. Gostosa Belém de outrora..., Belém, s/d, p. 35.









5/14/2012

O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam



O ABANDONO NOSSO DE CADA DIA
Sobre o novo livro de Evandro Affonso Ferreira
Por Márcia Tiburi


O título já pode produzir inquietação. Afinal que aquilo que supomos saber de um mendigo jamais incluiria que fosse culto, que soubesse quem foi Erasmo e muito menos que tivesse lido seus adágios sobre os quais, aliás, poucos sabem. O personagem criado por Evandro Affonso Ferreira inverte essa lógica nos dando o que pensar no instante em que a erudição de um homem se mede com seu próprio abandono e o abandono generalizado do mundo ao seu redor. O que sabemos, por meio desse homem com profundas cicatrizes interiores é que a miséria das ruas pertence a todos: “somos todos – cada um à sua maneira – fedentinosos e desvalidos e patéticos e constrangedores.” Que no fundo, de certo modo, todos pertencemos a este “grupo dos suicidas graduais vivendo à margem das estatísticas”.

O mendigo narra a história a um senhor debaixo de uma marquise como um Riobaldo que perdera seu sertão e tem agora o cenário da catástrofe urbana a sua frente. Entre a mulher-molusco, arremedo confuso de maternidade e o menino-borboleta, arremedo de filho, nosso mendigo erasmiano, como o narrador do Grande Sertão: Veredas, observa o desfecho da vida dos despossuídos como ele. Enquanto isso, sendo daquela estirpe de poetas românticos que idealizam uma musa, impressionantemente culta como ele e da qual só lhe restaram as lembranças, ele tenta manter-se inteiro entre a razão e a sensibilidade prestes à devoração pela loucura.

Não é à toa que Erasmo, o autor de Elogio da Loucura, seja o alter ego desse homem perdido nas ruas, que olha para a desnudez da condição humana e pede passagem à poesia sustentada a despeito da miséria. O texto é o mantra do nonsense, ritmo diário que escutamos sem ouvir, do qual este livro é o grito sutil. Por isso é que Evandro marca certas frases e as repete fazendo de sua literatura uma lembrança da oralidade.

Mais longe, descobrimos que é a erudição como emblema do conhecimento inútil, que está sendo questionada como escape, como resto que se tem às mãos em um mundo que só valoriza bens materiais, poder e vida fácil, e que reduz a corpo, à mera vida sobrevivente, todo aquele que por motivos vários, não suportou a luta de vida e morte em que sempre vence a ordem aviltante das coisas. No fundo, há o sistema sustentado em miséria e dor, um sistema em que toda a cultura é tratada como lixo e em que o lixo tem muito mais chance de se tornar “cultura”.

SOBRE O AMOR

O drama do personagem, cujo desfecho diz o quanto a literatura de Evandro Affonso Ferreira não está para acordos fáceis, mostra o conflito e a dor presentes no encontro entre realidade e fantasia, idealização e concretude, esperança e ameaça de esquecimento. Podemos dizer que este é um romance sobre a fragilidade da memória. E mais ainda que se trata do amor enquanto ele é uma forma de desespero.

A musa, o objeto da idealização desesperada desse sentimento sob ameaça de extinção, é uma médica oncologista, ou é Billy Holliday, não importa. Seu nome verdadeiro é apenas uma letra grafada pelas ruas, em todos os espaços vazios da cidade, como emblema do amor, da memória e da esperança. N de nada, é a logomarca do amor perdido que, grafitada pela cidade, tem a chance de criar a antinarrativa da vida. Essa vida em N feito esquina, esse ziguezague das ruas, essa “insígnia esperançosa” com que todos estamos marcados.

Nosso mendigo pichador nos faz ver também que é o poeta e o escritor que estão em extinção em um mundo de barbárie cada vez mais descarada. Um mundo em que não há memória, porque não há história já que os narradores foram extintos. Ser escritor é ser o anti-herói, esse mendigo em um mundo analfabeto, no qual a literatura se vende ao jornalismo, à publicidade e à Medusa petrificante da indústria cultural. Resta uma letra como esperança final, e também ela pode ser devorada pelos ratos que sinalizam o “destrambelho in totum” ao qual todos que ainda sonham com um mundo melhor, um mundo com amor, estão condenados.

Para os que não tem medo do pensamento e do estilo de Evandro Affonso Ferreira, o efeito é o aprendizado da coragem com que ele erigiu essas páginas fazendo ver que, para além da esperança, ainda há a chance da literatura.

Obrigada Evandro Affonso Ferreira por ter escrito esse livro. Acho que todos os que amam a literatura brasileira agradecem.
RESENHA SOBRE O MENDIGO QUE SABIA DE COR OS ADÁGIOS DE ERASMO DE ROTTERDAM de Evandro Affonso Ferreira (ed. Record, 2012. 127p.)

***


Trecho de O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam




Evandro Affonso Ferreira
* 

 



A-hã: estou falando dele, Erasmo de Rotterdam. Dizia que cada momento da vida seria triste, fastidioso, insípido, aborrecido, se não houvesse prazer, se não fosse animado pelo tempero da Loucura. Veja: chovendo. Também ela, a chuva, chama-me à memória minha amada. Nas noites chuvosas, sem trovões e relâmpagos, não ficávamos debaixo, mas sobre a cama. Este som pluviométrico nos excitava. Nossos corpos, nus, juntos, um pedindo silencioso carinho ao outro, fazíamos acreditar, ingênuos, na injustiça da não-imortalidade humana. Hoje sei que a natureza é sábia providenciando infalível nosso desfazimento in totum. Sábia em desfazer. Menino-borboleta, mulher-molusco, por exemplo, não deveriam ter sido feitos. Uma vez, sentado num banco de praça, ouvi de repente barulho seco. Virei-me, vi, na esquina ao lado, corpo de homem dando três piruetas no ar: atropelamento. Tarde toda fiquei pensando nela nossa vulnerabilidade, e nos tais acontecimentos desagradavelmente imprevisíveis – além de tudo. Ambulância não chegou a tempo para vê-lo respirando pela última vez. Sim: vi-vivi cenas muito desagradáveis. Algumas comoventes. Foi bonito ver aquele saxofonista, dois anos atrás, tocando numa esquina My funny valentine para senhora elegante, octogenária, cujas lágrimas escorriam numa tentativa inútil de desenhar no rosto o s de saudade – ou de solidão. Perdi aos poucos o juízo sem perder a esperança. Sempre sonho em encontrar-me com ela num canto qualquer da cidade. Às vezes deliro. Semana passada fui empurrado bruscamente por brutamontes que acompanhava moça parecida com minha amada imortal. Reconheço a precipitação tentando beijar de súbito seu rosto. Sei que criei num átimo situação insólita motivando reação de igual natureza. Veja: hematomas no braço. Mas não desisto: vou encontrá-la um dia. Possivelmente, dirá: Insólito; você é insólito. Depois riremos. Sempre foi assim: em seguida à repreensão, risos. Eu, desajeitado para quase tudo; deslocado também. Ela, ao contrário, prática, pragmática, partícipe. Muito bonita. Lábios sensuais. Desisto; você vai aprender jamais a beijar – ela dizia-me, inconformada. Desajeitado para quase tudo – sou sim. Vida toda se entregou aos livros. A-hã: Erasmo de Rotterdam. Atualizou versão grega do Novo Testamento, traduzindo-o para o latim. Vou abrir ao acaso este livrinho de adágios; ouça: Sero molunt dorum molae – As mós dos deuses moem devagar. Não é por obra dos caprichos que sou paciente com ela deusa do reencontro – esta que, mais cedo, mais tarde, colocará minha amada outra vez no meu caminho. Às vezes acordo de madrugada, delirando, vendo o rosto dela, cujas narinas sopram suaves o lado extremo do N desenhado no tatame. Depois, desiludido não durmo mais. Fico ouvindo a própria tosse intermitente que se sobressai diante da quietude noturna. Vez em quando, nessas noites insones, cantarolo alguma canção de Billie Holiday. Gostávamos de ouvir Billie.











5/11/2012

ESCREVER POR AUSÊNCIA









Temos constantemente necessidade de dizer (de pensar): chegou-me aí alguma coisa (de muito importante), o que quer dizer ao mesmo tempo, isso não saberia ser da ordem do que chega, nem da ordem do que importa, mas, antes, exporta e deporta. A repetição.







Entre certos « selvagens » (sociedade sem estado), o chefe deve provar sua dominação sobre as palavras: nenhum silêncio. Ao mesmo tempo, a palavra do chefe não é dita para ser escutada – ninguém presta atenção à palavra do chefe, ou antes, finge-se a desatenção; e o chefe, efetivamente, não diz nada, repetindo como que a celebração das normas de vida tradicionais. A qual demanda da sociedade primitiva responde essa palavra vazia que emana do lugar aparente do poder? Vazio, o discurso do chefe o é justamente porque é separado do poder – é a sociedade ela mesma que é o lugar do poder. O chefe deve se mover no elemento da palavra, quer dizer, no oposto da violência. O dever de palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia (não vazia, tradicional, de transmissão) que ele deve à tribo, é a dívida infinita, a garantia que interdita ao homem de palavra devir homem de poder.








Há questão, e, entretanto, nenhuma dúvida; há questão, mas nenhum desejo de resposta; há questão, e nada que possa ser dito, mas somente a dizer. Questionamento, colocação em causa que ultrapassa toda possibilidade de questão.








Aquele que critica ou repele o jogo, já entrou no jogo.








Como se pode pretender: « O que tu não sabes de maneira alguma, de maneira alguma saberia te atormentar? » Não sou o centro daquilo que ignoro, e o tormento tem seu saber próprio que recobre minha ignorância.








O desejo: faça com que tudo seja mais que tudo e permaneça o tudo.



Escrever pode ter ao menos esse sentido: usar os erros. Falar os propaga, os dissemina fazendo crer numa verdade.








Ler: não escrever; escrever na interdição de ler.








Escrever: recusar escrever - escrever por recusa, de sorte que seja suficiente que se lhe peça algumas palavras para que uma espécie de exclusão se pronuncie, como se se o obrigasse a sobreviver, a se prestar à vida para continuar a morrer. Escrever por ausência.




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5/05/2012

RECADO IMPESSOAL - sobre A Outra Morte de Haroldo Maranhão



Por Marcelo Azevedo


Este livro disputa à morte e ao tempo imagens que eles precipitam no esquecimento e na obscuridade. Para o autor dessa disputa não há descanso nem livro sem alcançar a surpresa da descoberta, em seus desvios, de uma persona real, arrancada à sua primeira morte, ressuscitada sob a forma de livro. Assim, que nome dar, com efeito, a esse espécie de duplo que por toda a parte nos contos acompanha cada personagem, seguindo-os, e que no entanto os deixa a sós consigo mesmo? Não tendo à sua frente ninguém para quem olhar, falar e ser, resta-lhes então o caminho que se abre à fala do impessoal: a ele que caminha furtivamente atrás de suas costas; às vezes antecede a sua chegada ou mesmo a sua saída em um lugar qualquer; e ele, o autor, está preocupado: pelas suas costas alastra-se a sensação de que outros entraram através delas, como que através de uma porta.



Ao agir desse modo, cada personagem verídico, o populista, a neutra, o falado, impossível em sua identidade, pretende recuar em sua diferença para provar ares de pensamentos estranhos. Nem maturação, nem crise, muito menos a agonia da memória. Outra coisa. Contar em segredo com a potência de acolhida das imagens mais inumanas estilhaçadas entre o inferno, a infância, o primeiro solo, a velhice, a loucura. Sem ambiente em nosso viveiro antropológico, essa matéria pura vem de outra parte do livro abandonado. Desconcerta e ultrapassa qualquer fácil inspiração recebida. A vontade espontânea de escrever separa-se de quem a dá para não ser mais, ou não ser ainda, por si só. Cada personagem vem ou fica por vir singularmente do outro do livro. Só por ele se enfrenta a força dessas imagens, se refere realmente às condições selvagens do ato de escrever, que ele afeta e que o afetam na criação literária.

Como se verá, o livro lhes reserva uma nova origem e a um só tempo suas vidas ganham um outro sentido. Então como reunir, a partir dos livros dos personagens, seus restos sempre ausentes, que a todo instante ameaçam voltar por causa da fadiga, da desatenção e dos ardis da posteridade que ainda persistem? Decifrar e dedicar-se a esta tarefa que, não obstante já ter visto outros a ela recolhidos, Nilson Oliveira retoma uma vez mais, creio, sozinho em uma mesa no terraço do Grande Hotel, por sua vez sob os olhares velados de Paulo Plínio Abreu, Henry Michaux, Oswald Goeldi, José Veríssimo, Dalcídio Jurandir, Ismael Nery, Robert Stock e outros, desconfiado de que pudesse haver uma relação entre aqueles homens desconhecidos entre si e o livro que procurava. O autor, em seu livro, traça da vida de seus personagens a imagem desaparecida e salva da morte de uns poucos da região que chegaram a habitar o presente da escrita. A fina linha de atualidade em que cada um deles vive à medida que distorcem para o lado de sua própria imagem literária.

O que se segue então é a paciente transferência para a escrita, para o livro, e para a imagem sem verdade, da responsabilidade de revolver a memória da literatura. Escritores reais e alguns de seus personagens serão deslocados para fora de si a fim de ocupar desta vez o lugar de destinatário exterior do que eles próprios dizem ao repetir, é claro, o que escutam de outros, duplicados alhures. O jogo que se impõe ao leitor é um jogo de sombras, indistintas. Amigos, parentes ou a fortuna póstuma não poderiam oferecer senão informações escassas e pouco elucidativas; confiáveis mesmo, apenas as informações que vêm do livro para o livro, e através do ciclo reaberto, que é aonde A Outra Morte de Haroldo Maranhão se insere, assistimos a antigos rostos conhecidos regressarem pouco a pouco a si... como estranhos desfigurados pelas conseqüências do seu próprio ato de escrever. Aí sim nos são oferecidas, indissoluvelmente ligadas a escrita, a vida e a outra morte do herói.


Estes são como que roteiros potenciais por onde A Outra Morte encaminha o jogo de sua escrita a partir da desmontagem e cruzamento de fragmentos de conversas sem interlocutor definido, de excertos de livros enterrados pela metade nos escombros da cidade com passagens inventadas de reservas inconfessas. O que é a biografia, desde então, nessa disputa? Quem se vê invocado a narrar senão ele como imagem de força anônima que se faz ouvir? Pois há algo no tom de voz... certa inflexão ou ênfase, um tal brilho na monotonia emanada da atmosfera inapreensível dos contos que existe, cresce e se faz sentir além das palavras, chega à respiração do leitor ameaçando sobrepor-se até mesmo ao livro. Logo, o que vem é como ponta intempestiva de uma renovação, acontece se debatendo contra o tempo, mas em absoluto acontece a tempo – e jamais de acordo com ele –de todos poderem testemunhar, reconhecer, aprovar ou a ele resignar-se.


Marcelo Azevedo é filosofo.