3/02/2012

UMA IMAGEM INTOLERÁVEL DO PRESENTE: Lúcio Flávio Pinto e as malhas do poder



Por Nilson Oliveira






Nosso trabalho consiste em saber ler em todo jogo do mundo, todo e qualquer jogo e, principalmente, o jogo do mundo. E não somente ler, mas jogar, derrubando necessariamente as convenções e regras. Kostas Axelos

 
 
O processo como crueldade
É o outro de Josef K, e, por tanto, o processo do jornalista Lúcio Flávio Pinto, por razões óbvias, se difere, é mais cruel. O processo tem rosto, tem origem, requintes peculiares. Maquinação judiciária tutelada por interesses parciais que, numa rotação asfixiante, subtraem gradualmente as forças do querelado. É uma guerra da “máquina désposta”, na qual as estratégias são traçadas com toda maestria para sentenciar e punir. É um processo de morte à liberdade do dizer: um tiro crucial no pensamento, na sua possibilidade ativa, contra o ato de pensar. Um golpe, anomalia política, aliança torpe entre judiciário-grilagem-latifundiários, a serviço da mordaça para que o pensamento não mais se efetue, para que a morte, o abuso de poder e o extermínio (na Amazônia) imperem. O processo é uma imagem pública, queima aos olhos de todos. Encontra Kafka pelos absurdos, nuances, manipulações, arbitrariedades, talvez, com o mesmo requinte da punição exposto em A Colônia Penal.


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Dos 33 processos movidos contra o jornalista, quatro resultaram em condenação. Foi censurado diversas vezes e em uma delas chegou a desafiar a ordem de um juiz federal: “Foi um caso exemplar porque o juiz federal, que é considerado o melhor nível do Judiciário, me mandou uma ordem, que veio no mesmo dia em que ele deu o despacho, dizendo o seguinte: ‘você está proibido de falar sobre este tema sob pena de multa e prisão incontinenti’. Eu amanheci o dia com o oficial de Justiça na minha porta”[1]


Um pensamento de combate

Lúcio Flávio Pinto delineia um combate de dupla ressonância: de um lado destrança (pensa, interpreta) os laços de uma ‘história obscura’ da política contemporânea paraense, numa espécie de cartografia política do presente, procedendo sem concessão; confrontando a paisagem cristalizada do poder midiático, num movimento exterior, propõe uma outra paisagem: móvel, aberta, imanente ao acontecimento (em tempo real, do subsolo a superfície), num modo de resistência ativa pela informação, sobremaneira, por uma política verticalizada da informação. Pinto traça com estilo, portanto, com ética (no sentido de Spinoza), uma leitura de mundo, da Amazônia para o mundo e vice-versa. Com efeito, alargando a condição intermediária do intelectual (tal como Zola no caso Dreyfus), imprime uma intervenção no espaço público por meio da palavra, do pensamento.



Resistência ativa

Em mais de duas décadas de circulação, o Jornal Pessoal se afirma como um criativo instrumento de resistência aos processos seriais de subjetivação, uma máquina de combate que resiste às palavras de ordem, num percurso por fora do marketing e do texto publicitário. Organizado a partir da congregação de forças e de afetos, máquina de agenciamentos coletivos [2], acontece em velocidade, num intensivo ciclo que converge para o seu seio: ética, independência, força. Movimento que atravessa o impensado, o intratável, constitui vias de fuga (uma dobra que escapa ao manipulável), inventa, pelos seus enunciados, uma diferença que pulsa e engendra um corte sem concessão nas malhas do poder.



Acontecimento amazônico

O Jornal Pessoal, no seu percurso, erige uma das experiências mais singulares com o universo amazônico, pois pensa a Amazônia além dos clichês, do exotismo, dos tiques do discurso preservacionista, no qual a imagem é, conforme diz Pinto, “uma Amazônia muito exótica. As pessoas estão dispostas a aceitar a Amazônia do rio enorme, com a vastidão das florestas. Mas não conseguem entender a Amazônia como tendo há cinquenta quilômetros de onde estamos (de Belém) a oitava maior fábrica de alumínio do mundo”[3]. Pinto, num contraponto, nos traz uma imagem outra: “Para entender a Amazônia dos nossos dias, transformada também em paisagem humana, é preciso dispor dos sensores mais sofisticados. A tecnologia de ponta combinada com a mais íntima vivência da região, que esconde suas diferenças e sutilezas sob o manto da uniformidade, do verde único. É preciso ir ao interior da região, observá-la sem pressa, com acuidade. Mas entrar na mata carregando na mochila o saber humano. Sem isso, podemos até chegar a compreender a Amazônia, mas não evitaremos o destino cruel que lhe estão impondo atualmente. E ser útil, fazer uma história digna, é o maior desafio dos intelectuais na região. Por intelectual entendido aquele que come três vezes ao dia e pode usar o cérebro como ferramenta de trabalho”[4]. Dessa experiência, entendemos que ao contexto amazônico não cabe opiniões avulsas, mas investigação, percepção, sobremodo, interpretação.



Um contra fluxo

Circulando por fora das grandes tiragens, mas com um alcance extraordinário, o Jornal Pessoal é uma vertiginosa potência que, conforme pensa Gilles Deleuze, empreende um expressivo contraponto ao majoritário, ao pensamento maior. Maior implica numa constante, num modelo preponderante, o que dita verdades. Neste caso, o Jornal Pessoal desenvolve um jornalismo Menor, pois se desvia do modelo, ao mesmo tempo teórico e político. O minoritário é um devir potencial que se desvia do modelo dominante, ou seja, um pensamento "menor" (conforme as Idéias de Deleuze e Guattari), ou a potência que incitar a pensar. Pela procura de um fora (o que pulsa fora do estabelecido), de um pensamento de nuances próprias, corajosamente afirmativo. Trata-se da constituição de modos de diferença, da invenção de possíveis, seguindo regras facultativas, capazes de resistir ao poder.
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Lúcio Flávio Pinto é um vibrante caso de resistência ao intolerável do presente / é uma voz que não cessa (apesar das violências, dos processos).


Nilson Oliveira é editor da revista Polichinello



Notas: