12/11/2018

p o é t i c a s - d o - d e s a s t r e









TESSITURAS DO DESASTRE
Nilson Oliveira


 “Diante dos meus olhos, um desmoronamento”

Giorgio Caproni


O desastre não é um fenômeno ou acontecimento, mas uma experiência de pensamento, «pensamento do desastre» (baseado na concepção de Maurice Blanchot): é o que se abre no limiar de toda extremidade. A desextensão, sem o efeito rigoroso de uma destruição. O desastre é o que regressa, num sentido de ‘retorno ilimitado’, com efeito, ‘ele’ seria sempre “o desastre depois do desastre”. De outro modo, “é o que desliga aquilo que está ligado”, interrompendo a ordem das coisas.  É a cesura mais silenciosa: des/astre. Nesse caso, o desastre, tal como pensamos, é o que se efetua aquém de qualquer domínio, «fora de todo poder», é o próprio “contratempo: a desordem nômade”. 
«Poéticas do desastre» são decorrências de um agenciamento coletivo, com as atenções viradas para as erosões do presente. Efetivamente, operando pelas fendas da literatura, com Lima Barreto e Maura Lopes Cançado, no limiar de alguns dos seus escritos, os Diários. Com efeito, a partir de uma descida vertical no coração das respectivas obras, sensível às nuances e metamorfoses, com atenção as rasuras, linhas (e movimentos), mas também aos descarrilamentos, as falhas, silêncios e rupturas, no anseio de depreender - entre o mais fundo e a instigante descida aos abismos da criação literária. Descida vertiginosa aos infernos dos diários, «Cemitério dos Vivos» e «Hospício é Deus». Duas escritas obstinadas das quais derivam testemunhos, acontecimentos que oscilam entre fragmentos de dias insuportáveis, pequenos júbilos, espetros e inquietações. Dois raros momentos da literatura. Duas singularidades, escrituras cujas linhas se cruzam num núcleo essencial: a escrita contra a clausura. Ou seja, a escrita do diário como modo de deslocamento do mais sombrio, experiência através da qual o gesto de escrever implica em traçar uma passagem fundamental: descida aos infernos (das casas manicomiais), para o impossível do mundo. Tal como diz Lacoue-Labarthe, pensando a jornada de Ulisses: “A experiência de Ulisses não é ela própria uma mera navegação; nem mesmo o furor do retorno. Ela culmina na travessia da morte, a descida aos infernos”.
O laboratório de Criação Literária «Poéticas do desastre» se realizou em três módulos, durante o segundo semestre de 2018, na Casa das Artes.

Foram encontros intermitentes, férteis de êxodos e avizinhamentos, atados por uma intensa zona de flutuação, convergência sutil entre afetos e errâncias. Trânsito mais heterogêneo, nexo entre escritores, poetas, artistas, articulados na direção de uma experiência cujo ponto de partida consiste em fazer do encontro um processo de criação.

Como não se sai ileso de algumas experiências, os textos delineados nesses «Cadernos de Laboratório» são fragmentos dessa jornada, tessituras moldadas a partir de múltiplas linhas de transcriação, dobra entre o testemunho e o porvir; acontecimento transitivo cujo ir e vir conforma uma espécie de “eterno retorno do outro escritural”.


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OS “COLETES AMARELOS” MOSTRAM O QUANTO O CHÃO SE MOVE SOB OS NOSSOS PÉS


Por David Graeber

Tradução: João Camillo Penna 



«Tradução do artigo do antropólogo norte-americano, David Graber, sobre os Gilets Jaunes, postado (FB) por Tatiana Roque, publicado no Le Monde e no site anarquista Infoshopnews»



f o n t e :





Foto: Parham Shahrjerdi




Se uma característica de um momento verdadeiramente revolucionário é o fracasso completo das categorias convencionais para descrever o que está acontecendo à nossa volta, então temos um bom sinal de que estamos vivendo em tempos revolucionários.

A confusão profunda, ou até mesmo a incredulidade, demonstrada pelos comentaristas franceses e estrangeiros, diante dos “atos” sucessivos do drama dos Coletes Amarelos, que agora vai se aproximando rapidamente de seu clímax insurrecional, é o resultado de uma quase total incapacidade de se levar em conta os modos com que o poder, o trabalho, e os movimentos que se posicionam contra o poder, mudaram no curso dos últimos 50 anos, e particularmente desde 2008. Os intelectuais em sua maior parte fizeram um péssimo trabalho em entender essas mudanças.

Permita-me oferecer duas sugestões sobre as origens dessa confusão:

1. Em uma economia financeirizada, apenas os que se encontram mais perto dos meios de criação de dinheiro (essencialmente, os investidores e as classes de profissionais gestores) estão em posição de empregar a linguagem do universalismo. Como resultado, qualquer reivindicação política baseada em necessidades e interesses particulares tendem a ser tratadas como manifestações de política identitária, e no caso da base social dos Coletes Amarelos, portanto, não se pode imaginar que seja nada senão protofascista.

2. Desde 2011, houve uma transformação em escala mundial dos pressupostos do senso comum sobre o significado de participar em um movimento democrático de massa – ao menos da parte dos que mais provavelmente participariam dele. Os outros modelos “verticais” ou vanguardistas de organização deram lugar rapidamente a um ethos horizontal aonde a prática e a ideologia (democrática, igualitária) são no final de contas dois aspectos da mesma coisa. A incapacidade de compreender isso dá a falsa impressão de que movimentos como os Coletes Amarelos são anti-ideológicos, ou até mesmo niilistas.

Deixe-me fornecer alguns argumentos de fundo para essas afirmativas.

Desde o abandono do padrão monetário do ouro em 1971, vimos uma mudança profunda na natureza do capitalismo. A maioria dos lucros corporativos não derivam mais da produção nem da comercialização do que quer que seja, mas da manipulação do crédito, dívida, e “capital rentista regularizado”. À medida que as burocracias governamentais e financeiras se tornaram tão intimamente interligadas ao ponto de se tornar cada vez mais difícil diferenciar uma da outra, a riqueza e o poder – particularmente o poder de criar dinheiro (ou seja, o crédito) – também se tornou na prática a mesma coisa. (Era para isso que estávamos chamando atenção no Occupy Wall Street quando falávamos dos “1%” – aqueles com a capacidade de transformar a sua riqueza em influência política, e sua influência política de novo em riqueza.) Apesar disso, comentadores políticos e midiáticos recusaram-se sistematicamente a reconhecer a nova realidade. Por exemplo, no discurso público, fala-se de política fiscal como se esta fosse principalmente a maneira como o governo levanta fundos para financiar as suas operações, quando na verdade é cada dia mais simplesmente uma maneira de: 1) assegurar-se que os meios de criação de crédito não serão democratizados (já que apenas o crédito oficialmente aprovado é aceitável para pagamento de imposto), e 2) redistribuir o poder econômico de um setor da sociedade para outro.

Desde 2008 os governos vêm injetando dinheiro novo no sistema financeiro, o qual, devido ao notório “efeito de Cantillon”, tendeu a ser acumulado majoritariamente por aqueles que já têm ativos financeiros, e seus aliados tecnocratas das classes profissionais gestoras. Na França obviamente esses são precisamente os macronistas. Os membros dessas classes sentem-se como a encarnação de todo e qualquer universalismo, a sua concepção de universal sendo firmemente enraizada no mercado, ou de maneira crescente, na fusão atroz entre burocracia e mercado que é a ideologia dominante no que se chama “centro político”. Os que trabalham nessa nova realidade centrista são cada dia mais impedidos de aceder a qualquer possibilidade de universalismo, já que eles literalmente não podem pagar por ele. A habilidade de agir a partir de uma preocupação com o planeta, por exemplo, e não a partir das exigências de mera sobrevivência, é agora um efeito colateral direto de formas de criação de dinheiro e de distribuição gestionária da renda; qualquer pessoa forçada a pensar exclusivamente em si mesmo ou nas necessidades materiais imediatas da sua família é vista como afirmando a sua própria identidade particular; e enquanto certas identidades podem ser permitidas com indulgência e condescendência, as da “classe trabalhadora branca” só podem ser uma forma de racismo. Vimos a mesma coisa nos Estados Unidos, aonde os comentaristas liberais de esquerda foram capazes de argumentar que se os mineiros de carvão votavam em Bernie Sanders, um socialista judeu, isso só poderia ser expressão de racismo, ou na insistência estranha que os Coletes Amarelos sejam fascistas, mesmo que eles não o tenham percebido.

Esses são instintos profundamente antidemocráticos.

Para entender o apelo do movimento – ou seja, a repentina emergência e a disseminação incendiária de uma política realmente democrática ou mesmo insurrecional – creio que é preciso atentar para dois fatores em geral não levados em consideração.

O primeiro é que o capitalismo financeiro envolve um novo alinhamento de forças, sobretudo ao opor os gestores-técnicos (cada vez mais empregados em simples “trabalho de merda”, como parte do sistema de redistribuição neoliberal) à classe trabalhadora, que é agora vista mais como as “classes cuidadoras” – como aqueles que nutrem, cuidam, mantêm, sustentam, mais do que os “produtores” de antigamente. Um efeito paradoxal da informatização é que ao mesmo tempo que a produção industrial se tornou infinitamente mais eficiente, a riqueza, a educação, e outros setores do cuidado se tornaram menos. Isso combinado com o desvio dos recursos para as classes administradoras sob o neoliberalismo (e os cortes no estado do bem estar associados a ele) significou que, em quase toda parte, foram os professores, enfermeiros, trabalhadores em clínicas de repouso, paramédicos, e outros membros das classes cuidadoras que se tornaram a vanguarda da militância trabalhadora. Os choques entre os trabalhadores de ambulância e a polícia em Paris na última semana podem ser tomados como um símbolo nítido do novo arranjo de forças. Mais uma vez, o discurso público ficou aquém das novas realidades, mas com o tempo, vamos ter que começar a fazer perguntas completamente diferentes: não que tipos de trabalho podem ser automatizados, por exemplo, mas quais queremos afetivamente que o sejam, e quais não; quanto tempo estamos dispostos a manter um sistema no qual quanto mais o trabalho de uma pessoa ajuda imediatamente ou beneficia imediatamente outros seres humanos, menos ele será provavelmente pago por isso.

Em segundo lugar, os acontecimentos de 2011, a começar pela Primavera Árabe, passando pelos movimentos das praças até o Occupy, parecem ser marcados por uma quebra fundamental do senso comum político. Uma maneira de saber que um momento de revolução global de fato aconteceu é que ideias consideradas loucas pouco tempo antes repentinamente se tornam pressupostos fundamentais da vida política. A estrutura sem liderança, horizontal, diretamente democrática do Occupy, por exemplo, foi quase universalmente caricaturada como idiótica, sonhadora e pouco prática, e assim que o movimento foi suprimido, pronunciada como a razão para o seu “fracasso”. De fato, ele parecia exótico, ao se basear profundamente não apenas na tradição anarquista, mas no feminismo radical, e até mesmo, em certas formas de espiritualidade indígena. Mas agora ficou claro que este passou a ser o modo default de organização democrática em qualquer lugar, da Bósnia ao Chile, a Hong-Kong ao Kursditão. Se um movimento democrático de massas emerge, essa é a forma que se espera que ele tenha. Na França, o Nuit Debout pode ter sido o primeiro a abraçar esse tipo de política horizontal em uma escala de massa, mas o fato de um movimento originado entre trabalhadores rurais, pequenas cidades, ou auto-empregados ter adotado espontaneamente uma variação desse modelo mostra o quanto se trata de um novo senso comum sobre a natureza da democracia.

Talvez a única classe de pessoas que parece incapaz de captar essa nova realidade sejam os intelectuais. Da mesma forma como durante a Nuit Debout, muitas das autodenominadas “lideranças” do movimento pareciam incapazes ou relutantes em aceitar a ideia de que formas horizontais de organização eram na verdade uma forma de organização (eles simplesmente não podiam entender a diferença entre a rejeição de estruturas hierarquizadas e o caos total), também agora os intelectuais de esquerda ou de direita insistem que os Coletes Amarelos são “anti-ideológicos”, incapazes de entender que, para movimentos sociais horizontais, a unidade da teoria e da prática (que para os movimentos sociais radicais do passado tendiam a existir muito mais na teoria do que na prática) existem de fato na prática. Esses novos movimentos não precisam de uma vanguarda intelectual para fornecer-lhes uma ideologia porque eles já têm uma ideologia: a rejeição das vanguardas intelectuais, a adoção da multiplicidade e da própria democracia horizontal.

Certamente há um papel para intelectuais nesses movimentos, mas ele terá que envolver muito menos fala e muito mais escuta.

Nenhuma dessas novas realidades, seja as relações entre dinheiro e poder, seja a nova compreensão da democracia, vão sumir num futuro próximo, aconteça o que acontecer no próximo Ato do drama. O chão se moveu sob os nossos pés, e faríamos bem em pensar sobre aonde devemos depositar nossas lealdades: sobre o pálido universalismo do poder financeiro, ou sobre aqueles cujos atos de cuidado tornam a sociedade possível.


Bottom of Form
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3/28/2018

«alguns espectros da poesia em Belém hoje»





























LABORATÓRIO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA

« as pequenas fabulações do contemporâneo ou alguns espectros da poesia em Belém »




Datas e linhas gerais do laboratório:

17 a 20 de Abril 2018 | 16 às 19h
O DESASTRE TOMA CONTA DE TUDO
de Ney Ferraz Paiva

15 a 18 de maio 2018 | 16 às 19h
A INTRUSA
de Izabela Leal

12 a 15 de junho 2018 | 16 às 19h
A LETRA DA ÁGUA
de Luciana Brandão Carreira

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Inscrições: literaturafcp@gmail.com
Casa das Artes: das 9h00 às16h00
Valor de 20,00 | Fone: 3323.0350