9/09/2021

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  Eduardo Sterzi




"Charges escritas - Vol II"

 




"Um Grande cavalo..."

 



"Inflávio..."

 




"...pepperoni"




"Júpiter, Saturno"







"lixo, lixo (ou charge desdourada)"

 




"se Aquilante andar..."





"Dianted"








       A charge, como a crônica, pertence radicalmente ao tempo. Ao seu tempo, que é também o nosso: sua época, nossa época, a fatia de tempo que nos coube. Mas não só: se a charge, como a crônica, pertence ao seu-nosso tempo de forma radical, é porque pertence antes àquele tempo que jamais nos cabe de todo (e no qual também jamais cabemos completamente), tempo-torrente que nos atravessa e desmonta, perfurocortante embora fluido, fluxo ininterrupto e, por isso mesmo, cego como uma lâmina, passando por nós ― e por tudo ― sem porquê, contingência total: uma lâmina que errasse sempre o alvo e ainda assim o acertasse com uma força desconhecida para os acertos, porque tudo é alvo, não sendo, quando o que se move é o tempo. O esforço da charge, portanto, nesse duplo pertencimento ao tempo, parece ser, como o da crônica, o de perseguir o kairós enquanto (e porque) se é acossado ― e desmanchado ― pelo krónos. Daí que ela se produza sempre de olho no deadline, segundo o léxico do jornalismo, e tenha sempre, por assim dizer, prazo de validade. Acontecimento implica vencimento, e a novidade da notícia ― em inglês, não por acaso, news ― é prenúncio de uma antiguidade precoce.

*

 

       Ezra Pound definiu a literatura ― mas ele tinha em vista sobretudo a poesia ― como «news that STAYS news»: «novidade que PERMANECE novidade», notícia que permanece notícia. Se procuramos, do ponto de vista da concepção temporal, a diferença entre, de um lado, o poema e, de outro, a crônica e a charge, ela talvez esteja no fato de que o poema investe na ilusão de que o kairós pode vencer o krónos, ou pelo menos detê-lo, ainda que provisoriamente ― nos melhores poemas, sem jamais esquecer que é uma ilusão: o desencanto é parte do seu encanto. E, de fato, o poema como forma ― com a recorrência interna de palavras e imagens, sons e medidas fornecendo a estrutura ― tem sempre algo de encantamento, de feitiço, de charme, ou seja, mágica. A charge, por sua vez, não tem carme nem charme: é ― e quer ser ― imediatamente desencantada, terrena, vulgar. Esta é, por assim dizer, sua forma ideal; ou o contrário disso, forma não-ideal mas recorrente, dado que a charge desdenha daquele ideal a que o poema, por mais pé no chão, jamais deixa de aspirar, ainda que problematicamente, contraditoriamente, residualmente. Quando a charge mira o poema ou, como neste livro de Francisco dos Santos, o poema mira a charge, vem à tona ― tanto quanto nos versos de circunstância, que são a forma-crônica do poema ― algo como o segredo histórico da poesia contemporânea, que, nisto, é uma extensão da poesia moderna: seu pertencimento também radical ao tempo, que faz dela, inevitavelmente, antipoesia (e, portanto, tão mais poética quanto menos «poética»).

*

       De resto, se a poesia moderna é o momento de revelação da poesia como poesia, isto é, de desnudamento da estrutura do poema e exposição de seu maquinário, podemos supor que, nesta revelação do pertencimento radical do texto poético ao tempo, se dá a ver não somente um vínculo propriamente moderno entre poesia e tempo, mas, talvez, uma relação que, em outras épocas, deveria permanecer como segredo, porque era parte da grande fábrica de transcendências, que, por um lado, gera os deuses e, principalmente, «o Deus», por outro, «a Poesia», «a Arte», «a Literatura» etc. ― uns e outras como invalidações da história. Mas a história sempre tem a última palavra, porque é nela, história, que a palavra começa e termina, infindavelmente. O silêncio do fim (da história, da poesia, mas, antes, do poema) pertence ainda à ordem da linguagem e ao anseio de dizer ou, pelo menos, nomear; é, em suma, um silêncio essencialmente linguístico, com uma exigência de significação. E, mais do que parte da linguagem, ele é parte da escrita. É o próprio maneo da scripta, sua infinita reverberação. (Mesmo quando, no gesto de escrita, se prefere a urgência à permanência, invejando o voo da palavra falada.)

*

       A palavra charge é originalmente francesa. Se vamos a um dicionário da língua, aprendemos que, na pintura, charge é como se nomeia toda expressão que acrescenta algo de forçado, exagerado ou grotesco ao natural. A palavra também tem uso no teatro, onde indica o exagero na maneira de interpretar um papel. Porém, o termo tem muitos outros usos, nas mais variadas áreas. Designa, de início, tudo aquilo que, seja material ou imaterial, um veículo, um animal ou um homem podem suportar ou transportar. É a carga, mas também o cargo ou encargo. É o que incomoda, o que pesa: a carga sobre as nossas costas que, pelo gesto da charge, buscamos lançar por cima dos que nos sobrecarregaram. No plural ― charges ―, designa também os indícios e as provas contra um acusado. No vocabulário militar, como seu correspondente no português (carga), sinaliza o ataque impetuoso (charge de cavalerie, carga de cavalaria). Algo desse ímpeto, podemos dizer, sobrevive na relação da charge com o tempo que passa, com o acontecimento e seu quase imediato desfazimento.

*

       Diz-se em francês, também, que alguém está en charge de, isto é, está encarregado de algo. Encarregar-se de alguma função ou tarefa significa carregar o peso delas ― que é o peso do mundo, ainda que de um mundo, ou mundos, em pedaços. Em 2010, Georges Didi-Huberman deu, a uma exposição que tinha como ponto de partida a figura mítica do Atlas (em sua conexão com o atlas como forma inquieta do saber visual), o título de Atlas: Como levar o mundo nas costas? Não por acaso, na exposição e no livro a ela associado, Goya desempenha um papel tão importante ― vêm dele, por exemplo, os títulos de duas das três seções do trabalho (a seção central se chama exatamente Atlas), que são convertidos por Didi-Huberman em conceitos: Disparates e Desastres. Vale lembrar que as gravuras de Goya são já, em alguma medida, charges escritas, ainda que nelas se preserve a distinção entre o plano da imagem e o plano das palavras, entre o que é da ordem do desenho e o que é da ordem da letra. Porém, as palavras nessas gravuras ― que são títulos, mas também legendas, além de prenúncio de outra coisa (de poema, diríamos hoje) ― são tão relevantes que o mesmo Didi-Huberman transforma algumas delas, por meio de seleção e montagem, numa espécie de estrofe que serve de epígrafe ao seu livro:

Siempre sucede,

Amarga presencia,

Duro es el paso!

Y no hai remedio.

Por qué?

No se puede saber por qué.

No se puede mirar.

Bárbaros!

Todo va revuelto,

Yo lo vi!

También esto,

Y esto también.

Cruel lástima!

Que locura!

No hay que dar voces,

Esto es lo peor!

Murió la verdad.

Si resucitará?

Ressuscitar a verdade de um mundo em conflagração, dominado pela barbárie e pela loucura: o que mais pode querer quem carrega nas tintas ou nas letras? Mas, enquanto a verdade não ressuscita, cabe aos artistas e poetas ― convertidos em chargistas ou cronistas, isto é, em testemunhas eficazes ― fixar imagens e palavras.

*

       O gesto fundamental, nas Charges escritas de Francisco dos Santos, consiste em extrair não apenas fatos, mas falas, direto do noticiário (que é a forma como o real nos chega na maior parte do tempo, já recortado pela perspectiva jornalística), e literalmente enquadrá-las, transformando-as em quadrados ou retângulos textuais, na linha visual de alguma poesia brasileira contemporânea que passa por Augusto de Campos, Josely Vianna Baptista e Frederico Barbosa (o enquadramento ― com sua moldura virtual ― converte as palavras em imagens). Se a realidade já se apresenta como caricatura, como uma forma de irrealidade a que custamos, ou recusamos, dar crédito, cabe ao chargista, mais do que carregar nas tintas (já, de origem, excessivamente carregadas), produzir de novo estranheza contra aquilo que, no seu absurdo mesmo, já parecia se naturalizar ou normalizar. Acentuando o aspecto escritural nas transcrição das falas (daí que o título assinale que são, estas, charges escritas), afirma-se que não há, nelas, nada de normal ou natural, que o mundo é histórico e, no fim das contas, consiste no que conseguimos fazer dele.

*

       Numa das charges deste livro, lê-se: «ALTO ESCALÃO / BAIXO CALÃO». Em momentos como este, fica evidente o vínculo do Francisco dos Santos chargista com a tradição do epigrama satírico-político, tal como esta já havia sido retomada no Brasil, em chave contemporânea, pelo José Paulo Paes dos Epigramas, de 1958, mas sobretudo das Anatomias, de 1967 ― cuja primeira edição traz, na capa e em quatro páginas internas, ilustrações de Moby que são, literalmente, charges. Penso sobretudo em poemas como «Epitáfio para um banqueiro», «Exercício ortográfico», «Ocidental», «À moda da casa» e «Cronologia», nos quais Augusto de Campos, no texto que escreveu para a orelha do livro, identificou «admiráveis epigramas-epitáfios da Western Civilization». Campos deu, ao seu texto, o título de «Anatomias: do epigrama ao ideograma». No entanto,  contrariando o que sugere o título, assinala não exatamente a passagem de uma forma à outra, com a superação da primeira, mas, sim, a convergência de ambas: «O epigrama e o ideograma se deram as mãos». No mesmo texto, Campos assinala a força do epigrama ― «gênero maldito», «depreciativamente apelidado de “poema-piada” ― entre os modernistas e observa que sua recuperação por José Paulo Paes fez dele, pelo menos por um «momento», «o mais oswaldiano dos poetas». É curioso que, poucos parágrafos adiante, o poeta feito crítico lance mão justamente da expressão «poema-piada» ― agora, em chave positiva, ou pelo menos neutra, ao lado de «poema-pílula» ― para dar conta dos aspectos que, na poesia de Oswald, José Paulo Paes teria levado «às últimas consequências». Vale lembrar que Anatomias se abre com uma epígrafe extraída das Mythologies de Roland Barthes (e talvez se possa mesmo ver o eco de um título no outro): «Je réclame de vivre pleinement la contradiction de mon temps, qui peut faire d’un sarcasme la condition de la vérité». Eis, mais uma vez, a questão da verdade associada a uma forma de escrita, como já tínhamos visto nos «versos» finais do poema que Didi-Huberman montou a partir das legendas de Goya. O sarcasmo como condição da verdade: uma boa síntese da profissão de fé do chargista. Porém, como observou Alfredo Bosi na introdução que escreveu para a poesia reunida de Paes (e que pode ser lida, em certos trechos, como uma resposta à orelha de Augusto de Campos), o autor, em Anatomias, mas também em livros seguintes como Meia palavra e Resíduo, conduz o humor ― não mais apenas «sarcasmo» ― em direção ao «escárnio» do «instinto de morte» e da «volúpia do nada». Buscando caracterizar os limites supostos desse encontro do «jogador» e do «terrorista» «sob o signo da entropia» e do niilismo, Bosi pergunta-se: «Ri o sátiro das pretensões alheias? Sim, mas não deixa de rir-se também das próprias: não vá o homem de letras cair na tentação fácil de confiar demais nos seus instrumentos para mudar a ordem das coisas». Por mais que Bosi se esforce para, em seguida, encontrar uma saída, na obra do próprio Paes, para o impasse que assinalou, o que persiste do seu texto é o diagnóstico preciso sobre a relação que esta poesia estabelece com o mundo: «O mundo muda de forma, apouca-se, envilece, nadifica-se». Ou, como diz à mesma altura, ao ler o poema «Epitáfio para um banqueiro»», «o signo final é zero». Talvez esteja aqui a diferença entre as atitudes de José Paulo Paes e do autor das Charges escritas: Francisco dos Santos parece se manter no limiar dessa confiança, se não na possibilidade de realmente «mudar a ordem das coisas», na necessidade ― poética, ética e política ― de expor a desordem. Talvez esteja aí também a diferença entre charge e poema, que está inscrita no título do livro. Se, num dos textos, flagra-se um «deputado destruindo charge / que denunciava violência poli- / cial exposta no Congresso», o próprio livro ― ao reivindicar o estatuto da charge ― apresenta-se como desagravo.

*

       A força de testemunho poético das charges fica evidente em alguns momentos. Num ano como 2020, em que o real se apresenta sob a forma de tsunami ou avalanche, numa espécie de fluxo maciço e incessante de notícias ruins, o que foi novidade logo se torna mais um ponto perdido na memória ― e precisamos às vezes nos esforçar para lembrar que aquilo que nos parecia, num momento do passado, uma imagem de fim do mundo agora pode ser só nota de rodapé no horror mais geral ― o que torna tudo ainda mais grave, porque, ao crime, se soma o esquecimento. Veja-se, por exemplo, aquela charge que, rememorando o vazamento de petróleo cru que atingiu inúmeras praias brasileiras no segundo semestre de 2019, cujo responsável ainda não se conhece por pura incompetência ou inapetência das autoridades, diz que o «governo patina no óleo». Mas é a catástrofe da pandemia ― na qual o déspota identificado no livro como BZ, forma abreviada de «Bozo», ou apenas B. encontrou uma ocasião propícia para os seus ímpetos genocidas jamais ocultados ― que dá o tom geral e unifica o livro sob o signo do horror.

* 

       A sátira se voltava, de praxe, contra a hipocrisia dos poderosos, contra o teatro por meio do qual ocultavam os procedimentos utilizados para conquistar e conservar o poder. O poeta satírico queria desmascará-los. O que acontece, porém, quando nem a hipocrisia resta, entre os que governam, como simulacro de civilidade? O que sobra para a sátira quando os maus atores desistem até mesmo do mau teatro? Talvez, antes de tudo, desnaturalizar os próprios gestos. É por isso que Francisco dos Santos tematiza, numa de suas imagens-textos, o próprio gesto da charge ou do cartum: recordando o caso do cartunista canadense Michael de Adder, que foi demitido do jornal em que trabalhava por conta de uma desenho no qual representa Donald Trump «jogando golfe / ao lado dos / corpos dos dois / imigrantes sal- / vadorenhos  en- / contrados / mortos na fron- / teira com o México»; no desenho, o presidente norte-americano, com um taco na mão, olha para os corpos e pergunta: «Impor- / tam-se que eu / continue o / jogo?». O chargista se importa.


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Eduardo Sterzi nasceu em Porto Alegre em 1973 e vive em São Paulo desde 2001. É escritor, crítico e professor de Teoria Literária na Unicamp. Atualmente, conta com uma bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq. Publicou, entre outros, ProsaPor que ler Dante, A prova dos nove: alguma poesia moderna e a tarefa da alegria, Aleijão, Cavalo sopa martelo e Maus poemas. Organizou, entre outros, Do céu do futuro: cinco ensaios sobre Augusto de Campos. Com Veronica Stigger, foi responsável pela curadoria da exposição Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo, apresentada em São Paulo, Araraquara, Frankfurt (na Alemanha) e Guimarães (em Portugal).  Eduardo Sterzi <eduardosterzi@gmail.com








8/19/2021

CARTAS NÃO CURAM CATÁSTROFES

 



Nilson Oliveira [1]

 

 

«Vivemos numa época em que tudo desmorona» [2]

Filippo Brunelleschi.

 

 

 

«O desastre toma conta de tudo». Esse talvez seja, sem nenhuma analogia, o título mais respectivo ao presente dada a situação absurda – um estado de exceção efetivo – para a qual somos tragados. Tempo crepuscular, da força pela força, circularidade entre a violência e o terror cujo alcance não tem limites.

É desse contexto, como um tipo de dissonância ativa, que sobrevém o mais recente trabalho do poeta Ney Ferraz Paiva – «O desastre toma conta de tudo» – sobre o qual permeamos nesta incursão.

Desde logo, nos primeiros momentos do livro, o relevo é uma sensível percepção da cidade, em imagens moduladas pelo que soçobra: corredores desabitados, zona de caos e deterioração, num espectro desolador.


A cidade se contempla pelo avesso

Um caos de detritos

Ruína de navio ao largo

Um tipo de luto

Cidade oculta na sucessão de ruas

Corredores fechadas janelas

Estreitos desfiladeiros

Não existe mais

Nada sobrou

 

O horizonte é tão melancólico quanto o atual, a cidade atravessada pelo insuportável, numa perspectiva do vazio. Mas apesar do quadro desolador, paradoxalmente, ao invés de escapar, ele avança sobre as ruinas, vai ao mais fundo, fazendo dessa jornada a experiência mais essencial: «ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar seus fragmentos». Como não pensar nessa referência tão fundamental – em conexão com o «Desastre» – o «Anjo da História», que «de costas para o futuro, vê no passado, à sua frente, um montão de ruínas».

A história, a partir desse atrito entre o «Anjo» e o «Desastre», constitui-se como sucessão de acontecimentos que apenas se repetem. Com efeito, não suscita no presente a força suficiente para uma renovação. E o futuro descortina-se como se fosse um evento do passado.

O poema deflagra-se neste recorte impossível – espectro de «Angelus Novus» – como possibilidade de montagem (entre tempos) suscitando das entranhas do presente, uma composição própria do desastre: fisionomia desconcertante.

Desse modo, muito mais do que um olhar passivo diante do tempo, o poeta com uma escrita pungente, impõem (contra o presente) uma experiência de pensamento: o pensamento do desastre. Pensamento do qual se vale e atravessa a cidade, entre poros e entranhas, num mergulho sem concessão. E pacientemente vai colecionando, em anotações atentas, destroços, restos, ordenando fragmentos cujo bloco – «O desastre toma conta de tudo» – é o testemunho irrevogável.

Experiência que não pode ser confundida com extorsão (de substratos) do real. Já não se trata disso, a poesia nessa atmosfera vem sem nenhuma concessão ao real, muito mais para uma implosão do real. Ao que equivale na subversão desastrosa da poesia pela qual faz ressoar uma multitude de vozes: rumorosa constelação do desastre. Nesse contexto, a poesia dobra o limiar de toda extremidade, fora do sentido estrito de uma destruição. É o que retorna, sem nostalgia, numa esfera de perpétua repetição: o desastre depois do desastre. O próprio contratempo, ou seja, a poesia como desordem, fora de todo poder.  

Outro traço que é recorrente na composição da obre de NFP é a evocação de uma comunidade, modo de fazer juntos, experiência repleta de referências e vitalidades, num fazer povoado de encontros (com uma multidão de outros poetas), em citações diretas, aludindo nomes, situações, que fazem da obra um espaço plural: afluente do diverso.

Exercício severo do escrever, isto é, recusa de qualquer forma de submissão e imobilidade, movimento pelas fendas da linguagem e nutrido por ela, num curso que, segundo percebemos, irrompe com a ideia de impossibilidade da busca da experiência. Combate no seio da poesia, para a qual escrever equivale a traçar um campo, por vezes nas condições mais improváveis, declinando num sim que distende de todo limite.

E assim, dando evidências de que o poema é também um horizonte de combate, em enfrentamento, sublinha NFP:


«Após a guerra se continua a fazer poesia

Não sem o gosto amargo da descrença

Após a guerra se recomeça outra guerra

O poeta recomeça a escrever a guerra

Cada vez é como se fosse a primeira»[3]

 

A partir desse ponto o que vem, em atrito com a guerra, é uma revigorante capacidade de traçar outros ares, de recomeçar, apesar de tudo, continuar a fazer. A ideia do poema como incessante, portanto, como o que advém sem cessar, que subverte a zona nebulosa, em afirmação, numa poderosa relação com as formas de vida, sempre em transformação, numa repetição fundamental: «Cada vez é como se fosse a primeira». Ou seja, a cada vez como um nascimento, ou melhor, como uma forma de criação.

 

Em outra medida, no ir e vir da obra, a relação com o mar: « voltai ao mar»[4]. Entre correntezas: «Estou num transatlântico». Outros recomeços: «À margem do mundo» [5].  Certamente, mas não por mera navegação ou retorno e sim, como diz Lacoue-Labarthe, com o que «culmina na travessia da morte, a descida aos infernos – um topos obrigatório, doravante, para toda a grande literatura» (2004. p, 15). Portanto, por algo mais substancial, sentido total da poesia, tal como em Ulisses ou Melville, jornada, travessia. Ou mesmo Blanchot: «Passo Além».

 

«devo ir de visita a Ítaca

devo perder lá o coração

desaparecer sem deixar

notícia um corte súbito

talvez por alguns anos

outra passagem de ar

anteprojetos de escrita

todas as outras coisas

das quais devo me livrar

sei que não quero estar

aqui pra que meus lábios

ressequem rachem mudos

nem ser guiado pra algum

destino já traçado mapeado

percorrer falsas promessas

amar o mar como Melville»[6]

 

Ulisses atravessa o horizonte, o mar, mas não naufraga, produz linhas, silêncios, figurações, aberturas (ao por vir). Este é o desígnio de «O desastre toma conta de tudo»: passar forçadamente. Ultrapassar o limite do interrompido e do ininterrupto, tornando-se, neste ciclo sem fim, a linha indivisível entre busca e impossível.

Nestes abismos da poesia escrever equivale à imposição de um sentido:

 

«escrever

pra não se matar

pra voltar à vida»[7]

 

Com efeito, trata-se de uma compreensão que remete o escrever a uma dinâmica de outro tipo: ao que persiste. Isto é, a um plano de reiteração, em favor dos fluxos de criação, baseado no entendimento fundamental segundo o qual, apesar de tudo, «poesia ainda possível em dias de horror».

A poesia de NRF, neste evento tão singular, enreda um profuso campo de experimentações, em agenciamentos que permeiam arte, literatura, pensamento. Num trabalho generoso e exigente, traz um surpreendente caminho para pensar a poesia.

Outubro de 2019.




[1] Escritor e editor da revista polichinello.

[2] Tradução: Davi Pessoa.

[3] Escrever poema é um ato bárbaro.

[4] Encontros marítimos para uma nova literatura.

[5] A todos vocês.

[6] Julho devo viajar.

7] No silêncio e pelo silêncio.












8/18/2021

A vontade do comunismo : Duras & Blanchot



 

Marguerite Duras


Maurice Blanchot


Carta de Maurice Blanchot à Marguerite Duras

14 de outubro de 1968

 

 

Querida Marguerite,

Não nos vemos desde julho. Naquela época, quando estávamos nos separando, decidimos publicar o que chamamos de “boletim”*. Tenho pensado nisso desde então. Acho que nunca estivemos tão desamparados e desamparados como somos hoje. Ao mesmo tempo, a vontade do comunismo nunca precisou ser afirmada como é hoje. Quão? Não de uma forma calma e tradicional, mas questionando tudo e mais. De tal modo que nos obriga, a nós, os dependentes dos outros, a fazer a revolução da revolução, a revolução por dentro da revolução. Necessariamente o que quer que façamos é extremamente pequeno, insignificante, invisível. Pode não ter nenhuma importância, mas se quisermos cuidar dessas coisas, para que possamos avançar, é melhor admitir imediatamente ou ter a coragem de admitir que nos juntamos ao outro lado. A vontade do comunismo: estamos prontos, somos capazes? Resposta? Com o poder que temos, com o poder que não temos? A vontade do comunismo nos deixou? Esta é uma pergunta para mim e para você, minha amiga muito próxima.

Maurice

 


Refere-se ao boletim do Comitê de Luta de Estudantes-Escritores, cujo primeiro número foi publicado em outubro de 1968 sob o título “Comitê”. O Comitê foi fundado por Robert e Monique Antelme, Marguerite Duras, Dionys Mascolo, Michel Leiris, Maurice Nadeau, Louis-Rene des Forets, Maurice Blanchot & outros.




 


Estética como acontecimento de Daniel Lins

 


Os relevos de um pensamento-radical

Nilson Oliveira

 

 

O pensamento do deserto, escrita que mutila seus traços: não mais um caminho, não mais um objetivo, porem errância de um fantasma – ataque irremediável ao corpo[1].

Abdelkebir Khatibi

 

 

 

O contexto, para o pensamento, não deixar de ser um desafio: enfrentar o presente, sem receios, com uma determinação improrrogável, necessariamente em travessia, na tensão das encruzilhadas, mas subvertendo os roteiros ou as saídas dadas sempre tão inclinadas ao jogo vicioso da manutenção do mesmo. Nesses dias de recrudescimento e chumbo, nenhuma concessão. A saúde do pensamento consiste, diante de fisionomia tão atroz, em coragem. Com efeito, o sentido desta presente e oportuna reedição vem com essa prerrogativa: “Atravessar o caos: não explicá-lo ou comentá-lo, mas atravessá-lo, por todos os lados, em uma travessia que ordena planos, passagem, marcas”[2]. “Ora, este confronto, ou luta com o caos, significa precisamente, que o artista e o filosofo devem também em seu trabalho encarar frente a frente o caos sem se deixarem levar por ele”[3]. E nessa coreografia das fraturas as efusões de um pensamento radical, o qual se dobra numa experiência que subverte o lugar: experiência do livro, da escrita, do acontecimento sempre por vir, num reiterado combate para escapar à morte. Nesse caso, escrever/pensar significa resistir: resistir à servidão, resistir ao intolerável, resistir ao presente, resistir à morte.

 

Essa é a acepção, nossa, do retorno desta obra tão singular e tão necessária. É assim que vem, movendo afetos de desassossego, «Estética como acontecimento. O corpo sem órgãos», de Daniel Lins.

 

Experiência de uma atualidade que não se rende e, nesse campo de possibilidades, se afirma, em atrito contra o laboratório do terror, dimensionado pela pandemia do novo corona vírus, que se alastra com prejuízos em todas as escalas, sanitária, securitária, ética, política. A derrota é global. Cabe ressaltar, no contexto brasileiro, o peso da mão fascista de um governo, cujas medidas, abertamente, obliteram as vias de respiração, rebaixando a vida a uma condição de limite, verdadeira asfixia entre o infortúnio e a morte.

 

Diante de tal contexto, mas pensando a partir de outra perspectiva, por um horizonte de evasão e contra fluxo, cabe oportunamente perguntar – contra esse estado de coisas–: o que é (e o que pode) uma radicalidade?  É nessa esfera que, efetivamente, tal experiência sobrevém, como prática de pensamento-radical. É pelos laços dessa questão (o que pode uma radicalidade?) que ressoam, num nexo entre combate e devir, os enunciados e as dobras deste importante volume de Daniel Lins. Aqui, o pensamento ressoa totalmente afetado pela vida, em intenso jogo de diferenciação, numa correlação ativa com as coisas do mundo: modos de vida, exterioridades, resistências e seus respiros, pensando o ilimitado dessa conjunção, com vislumbre nos processos de evasão através dos quais se conectam as fendas e as erosões que excedem o já pensado e suas estruturas.  

 

O ponto aqui consiste em escapar ao insuportável e transitar pelos dédalos de outra composição, na necessária mudança de ar, mas revisitando os temas e mananciais da arte, da literatura e o do pensamento, numa leitura transdisciplinar e plural através da qual devora citações e autores, elaborando um ambiente de ruminação, vigorosa usina de combate, cujos lampejos, fragmentos, pensamentos e dobras emergem como aquilo que de-outra-maneira-retorna emanando um sopro de possibilidades (relevos de um pensamento-radical).

 

Em que consiste tal «Estética como acontecimento»?

 

Consiste num pensamento a engendrar uma política do desejo e do prazer, isto é, numa ética da estética a qual concebemos como «Estética como acontecimento». Portanto, como potência além do sensível, ilimitada, cujos conceitos gravitam conforme as ondas, entre o tempo e o vento, sempre conectados com as circunstâncias, em detrimento da essência, imbuída de uma positividade que compreende o ser como devir, de tal maneira que, como as transmutações cósmicas da obra de arte, excede o humano em favor da vida.

 

Trata-se de uma noção sensível, demasiadamente leve como alguns conceitos da filosofia da diferença, que concebe a estética como experimento, ou seja, como produção de modos de existir, uma forma que inventa para si o seu próprio sentido: uma vida, sem contenção ou molde, com o horizonte aberto ao desconhecido. Mais que isso, que almeja o desconhecido e que almejando aspira, sem receios, a surpresa que sempre vem, tal como vem o vento que tudo atravessa, sem cessar.

 

Nesse sentido, «A estética como acontecimento» “é a intercessora primordial da vida: a vida como máquina afirmativa de enfrentamento. A vida como transvalorização que, ao buscar nas malhas indenitárias os devires imperceptíveis ali camuflados, abre-se à eclosão do inumano no humano. Ao escapar à dominação biológica e finita, a vida demanda ser inventada”.

 

Coexistência – vida e Estética como acontecimento – assentada por uma “Ética da Crueldade que passa por uma escrita da fúria e atesta uma experiência cruel dos limites, sob a força de uma crueldade radical”. Crueldade essa indivisível de um Corpo sem Órgãos, “intercessor singular à arquitetura conceitual da Estética como Acontecimento, cuja função primordial é a de, nesse encadeamento da multiplicidade, guardião dos sentidos, evitando que os sentidos sejam relegados à significação, à representação ou ao essencialíssimo, interpondo-os com os conceitos de uma filosofia aberta, de um pensamento vagante: indefinível”.

 

E no bojo de questões tão instigantes, na aventura do pensamento, deslizamos. Nossa aposta enreda-se por uma linha partida em duas, numa espécie de duplo imediato, consecutivo ou até mesmo simultâneo, entre literatura, arte, filosofia, levados por ventos transversais cujos fluxos nos remetem a uma percepção imediata: “toda esta escrita é um assalto contra as fronteiras”. Isto é, uma experiência que desdobra numa profusão de possibilidades: do sensível, do desassossego, das superfícies, dos extremos; sempre movendo os seus laços, dentro/fora da fronteira.

 

E assim, no trânsito por entre fronteiras, Daniel Lins atravessa a enseada, numa aposta que concebe ao pensamento uma relação afirmativa, no sentido de um pensamento ágil, que confronta sem receios a morte, numa aceitação radical da vida. O puro sim, do qual ecoa uma escrita que no escrever se reinventa e afirma uma vontade de vontade. São esses os lastros de «Estética como acontecimento. O corpo sem órgãos». E diga-se, movimento aferido com um repertório maiúsculo, alimentado por um refinado plano de referências.   

 

Para pensar as nervuras e contorções do corpo, Artaud, Nancy. Para perspectivar o intempestivo, mas também a ideia de valor, de potência e força, com a verve de uma leitura intensiva, Nietsche. E como satélite cruzando as constelações, as superfícies e os subterrâneos do não pensado, Deleuze, Guattari.  Para embaralhar o repertório e adicionar um pouco de ar fresco na paisagem, renovando o horizonte, Blanchot e a ideia de uma escrita como arrebentação ou suavidade avassaladora, atravessada por ecos de um pensamento que tudo trinca e tudo separa. E na outra margem, num mapa de outras leituras, o espectro de abecedário radicalmente outro, povoado de frestas, intrusões, vibrações da carne e signos incógnitos: Abdelkebir Khatibi, Carmelo Bene, Joë Bousquet, Étienne Souriau e alguns outros. 

 

Assim figura esse livro tão vigoroso e importante, assim vem nesta segunda edição, que é um presente para os leitores e pesquisadores interessados nos problemas do «corpo», dos «devires», do «impoder» e do «acontecimento».   

 

 

Nilson Oliveira. Escritor e ensaísta.

Editor da revista Polichinello

 

 



[1]. Abdelkebir Khatibi. La mémoire tatouée (1978).

 [2]. Jean Luc Nancy. Dobra deleuzeana do pensamento. Gilles Deleuze uma vida filosófica (2000).

 [3]. Daniel Lins. Estética como acontecimento. Corpo sem órgãos (2021).