4/29/2017

Escrever | Marguerite Duras








E S C R E V E R
Marguerite Duras


Tradução: Rubens Figueiredo





É numa casa que a gente se sente só. Não do lado de fora, mas dentro. Em um parque, há pássaros, gatos. E de vez em quando um esquilo, um furão. Em um parque a gente não está sozinha. Mas dentro da casa a gente fica tão só que às vezes se perde. Só agora sei que permaneci na casa dez anos. Sozinha. E para escrever livros que mostraram, para mim e para os outros, que eu era a escritora que sou. Como isso aconteceu? E como isso pode ser expresso? O que posso dizer e que o tipo de solidão que há em Neauphle foi feito por mim. Para mim. E que é apenas dentro dessa casa que fico só. Para escrever. Não para escrever como havia feito até então. Mas escrever livros desconhecidos para mim, e nunca previamente determinados, por mim nem por ninguém. La escrevi Le Ravissement de Lol V. Stein e Le Vice-cônsul. E outros depois desses. Compreendi que eu era uma pessoa sozinha com a minha escrita, sozinha e muito distante de tudo. Isso durou dez anos, talvez, não sei mais, raramente contei o tempo que passei escrevendo e qualquer outro tempo. Contei o tempo que passei esperando por Robert Antelme e Marie-Louise, sua jovem irmã. Depois, não contei mais nada.

Le Ravissement de Lol V. Stein e Le Vice-cônsul, eu os escrevi lá em cima, no meu quarto, aquele de armários azuis, hoje, que pena, destruídos por jovens pedreiros. Às vezes eu também escrevia aqui, nessa mesa da sala.

Guardei essa solidão dos primeiros livros. Ela me acompanha. Minha escrita, eu sempre a levo comigo, aonde quer que eu vá, Paris, Trouville. Ou Nova York. Foi em Trouville que cai na loucura de me tornar Lola Valérie Stein. Foi também em Trouville que o nome de Yann Andréa Steiner me veio com uma evidencia inesquecível. Foi há um ano.

A solidão da escrita e uma solidão sem a qual o texto não se produz, ou então a gente se acaba, exangue, de tanto procurar o que escrever. Sem sangue, o autor não reconhece mais o seu texto. E acima de tudo e necessário que ele nunca seja ditado a qualquer secretaria, por mais hábil que ela possa ser, e que nessa fase o texto nunca seja mostrado a um editor.

É sempre necessária uma separação da pessoa que escreve livros em relação às pessoas que a rodeiam. É uma solidão. É a solidão do autor, a solidão da escrita. Para começar, o autor se pergunta que silencio é esse ao redor de si. E praticamente em cada passo que ele dá no interior de uma casa, e em todas as horas do dia, em todas as luzes, tanto as do lado de fora como as lâmpadas acesas do lado de dentro. Essa real solidão do corpo transforma-se na outra, inviolável, a solidão da escrita. Eu não falava sobre isso com ninguém. Nesse período da minha primeira solidão eu já havia descoberto que escrever era o que eu precisava fazer. Eu já tinha sido aprovada por Raymond Queneau. O simples veredito de Raymond Queneau, aquela frase: “Não faça mais nada a não ser isso, escrever.”

Escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e que a encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca.

Meu quarto não é uma cama, nem aqui, nem em Paris, nem em Trouville. É uma certa janela, uma certa mesa, a intimidade com a tinta preta, marcas de tinta preta impossíveis de achar em outro lugar, e uma certa cadeira. É certos hábitos que reencontro sempre, a onde quer que eu vá ou esteja, mesmo nos lugares em que não escrevo, como quartos de hotel, por exemplo, o habito de sempre ter uísque na minha mala, para o caso de insônias ou súbitos desesperos. Durante aquele período eu tive amantes. Raras vezes fiquei sem amante algum. Eles se acostumavam a solidão de Neauphle. E, como seu encanto, ela as vezes lhes permitia escrever livros. Eu raramente dava meus livros para meus amantes lerem. Aos amantes, as mulheres não devem mostrar os livros que estão escrevendo. Tao logo terminava um capitulo, eu o escondia. A coisa e tão verdadeira, no que me toca, que eu me pergunto como e possível ser de outro modo quando se é mulher e se tem um marido ou um amante. Nesse caso, também se deve esconder dos amantes o amor do marido, O meu nunca foi substituído. Sei disso a cada dia da minha vida.

Esta casa e o lugar da solidão, no entanto da para uma rua, uma praga, um tanque muito antigo, a escola da cidade. Quando o tanque fica congelado, algumas crianças vêm patinar e me impedem de trabalhar. Não mando embora essas crianças. Tomo conta delas. Todas as mulheres que tiveram filhos tomam conta dessas crianças, desobedientes, doidas, como todas as crianças. Mas que medo, cada vez pior. E que amor.

A solidão não se encontra, se faz. A solidão se faz sozinha. Eu a fiz. Porque resolvi que ali eu deveria ficar só, para escrever livros. Foi assim que aconteceu. Eu estava sozinha nesta casa. Eu me fechei — eu tive medo também, e claro. E depois eu amei esta casa. Esta casa se tornou a casa da escrita. Meus livros saíram desta casa. Desta luz também, do parque. Desta luz que reverbera no tanque. Precisei de vinte anos para escrever isso que acabei de dizer.

Da para caminhar de uma ponta a outra dentro desta casa. Sim. Da para ir e voltar também. E depois há o parque. Lá, existem arvores milenares e arvores ainda jovens. Há lariços, e macieiras, uma nogueira, ameixeiras e uma cere- jeira. O pé de abricó morreu. Na frente do meu quarto, há aquela roseira formidável de L’Homme Atlantique. Um salgueiro. Há também cerejeiras-do-japão, palmas-de-santa-rita. E embaixo de uma janela da sala de música há uma camélia, que Dionys Mascolo plantou para mim.

Primeiro troquei a mobília da casa, depois mandei pintar as paredes de novo. E então, talvez dois anos depois, minha vida com a casa teve inicio. Aqui terminei Lol V. Stein, redigi o final do livro aqui e em Trouville, a beira-mar. Sozinha não, eu não estava sozinha, havia um homem comigo naquele tempo. Mas não falávamos disso. Como eu escrevia, era preciso evitar falar sobre livros. Os homens não suportam isso: uma mulher que escreve. E cruel para o homem. E difícil para todos. Exceto para Robert A.

Em Trouville, porem, havia a praia, o mar, a imensidão do céu, das areias. E era isso a solidão. Foi em Trouville que contemplei o mar até o nada. Trouville e uma solidão para a vida inteira. Ainda tenho essa solidão, inexpugnável, a minha volta. Por vezes, fecho as portas, corto o telefone, corto minha voz, não quero mais nada.

Posso dizer aquilo que quero, e não descobrirei jamais por que razão se escreve e como não se escreve.

Às vezes, quando estou aqui sozinha, em Neauphle, reconheço os objetos, como um radiador. Lembro que havia uma tabua grande em cima do radiador e que muitas vezes eu me sentava nessa tabua para ver os carros passar.

Aqui, quando estou sozinha, não toco piano. Não toco mal, mas toco bem pouco porque acredito que não posso tocar quando estou só, quando não há ninguém senão eu na casa. E muito difícil de suportar. Porque isso parece ter um sentido drástico. Porem, em certos casos bem pessoais, só a escrita faz sentido. Pois eu a manejo, a prático. Ao passo que o piano e um objeto distante, ainda inacessível, e para mim sempre o mesmo. Creio que, se eu tivesse tocado piano profissionalmente, não teria escrito livros. Mas não tenho certeza. Acho mesmo que é falso. Acho que teria escrito livros de um jeito ou de outro, mesmo no caso da música paralela. Livros ilegíveis, mas completos. Tao longe de todas as palavras quanto o desconhecido se encontra de um amor sem objeto. Como o de Cristo ou o de J. S. Bach — ambos de uma equivalência vertiginosa.

A solidão também quer dizer isso: ou a morte, ou o livro. Mas antes de tudo quer dizer álcool. Quer dizer uísque. Até agora, nunca fui capaz, nunca mesmo, realmente nunca, ou talvez fosse preciso procurar bem longe... nunca fui capaz de começar um livro sem terminar. Nunca fiz um livro que não fosse minha razão de ser na hora em que está sendo escrito, e isso vale para qualquer livro. E em toda parte. Em todas as estações do ano. Essa paixão, eu a descobri aqui em Yvelines, nesta casa. Eu tinha afinal uma casa onde me esconder para escrever livros. Queria viver nessa casa. Para que? Começou desse jeito, como uma brincadeira. Talvez escrever, disse a mim mesmo, quem sabe eu sou capaz? Já havia começado livros que deixara de lado. Esquecera até os títulos. Le Vice-cônsul, não. Eu não o abandonei, penso nele muitas vezes. Em Lol V. Stein não penso mais. Ninguém pode conhece-la, L. V. S., nem vocês nem eu. E mesmo aquilo que Lacan disse a respeito do livro, eu nunca cheguei a entender direito. Lacan me deixava atordoada. E aquela sua frase: “Ela não deve saber que escreve, nem aquilo que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe. ” Esta frase tornou-se, para mim, uma espécie de identidade de princípio, um “direito de dizer” totalmente ignorado pelas mulheres.

Achar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total, e descobrir que só a escrita pode nos salvar. Achar-se sem assunto para o livro, sem a menor ideia do livro significa achar-se, descobrir-se, diante de um livro. Lima imensidão vazia. Um livro eventual. Diante de nada. Diante de algo semelhante a uma escrita viva e nua, algo terrível, terrível de ser subjugado. Acho que a pessoa que escreve não tem a ideia de um livro, tem as mãos vazias, a mente vazia, e dessa aventura do livro ela conhece apenas a escrita seca e nua, sem futuro, sem eco, distante, com suas regras de ouro, elementares: a ortografia, o sentido.

Le Vice-cônsul é um livro que gritou, sem voz, por todo lado. Não gosto desta expressão, mas quando releio o livro eu a reencontro, qual- quer coisa desse tipo. E verdade, o vice-cônsul berrava todo dia... mas de um lugar secreto para mim, Como se reza todo dia, ele todo dia berrava. Isto e verdade, gritava com força e pelas noites de Lahore ele disparava nos jardins de Shalimar para matar. Não importava quem fosse, mas matar. Ele matava por matar. A partir do momento cm que não importava quem fosse, a Índia inteira podia se achar em estado de decomposição. Ele berrava em casa, na Residência Oficial, e quando estava sozinho na noite negra de uma Calcutá deserta. Ele está louco, louco de inteligência, o vice-cônsul. Ele mata Lahore todas as noites.

Nunca o encontrei em outro lugar, não o encontrei senão dentro do ator que o representava, meu amigo, o genial Michael Lonsdale — mesmo em seus outros papeis, para mim, ele ainda e o vice-cônsul da França em Lahore. É meu amigo, meu irmão.

E no vice-cônsul que eu acredito. O grito do vice-cônsul, “a única política”, ele também registrou-se aqui, em Neauphle-le-Château. Foi aqui que ele a chamou, a ela, sim, aqui. Ela, A. M, S. Anna-Maria Guardi. Foi ela, Delphine Seyrig. E todas as pessoas do filme choravam. Eram lagrimas livres, sem noção do sentido que possuíam, inevitáveis, as lagrimas verdadeiras, as lagrimas da gente da miséria.

Chega um momento na vida, e acho que isso e fatal, do qual não se pode escapar, no qual tudo e posto em dúvida: o casamento, os amigos, sobretudo os amigos do casal. Não as crianças. As crianças jamais são colocadas em questão. E nossa dúvida cresce a nossa volta. Essa dúvida existe sozinha, e a duvida da solidão. Nasce daí, da solidão. Já se pode nomear a palavra. Acho que muita gente não d capaz de suportar isso que estou dizendo, fugiriam. Talvez este seja o motivo por que todos os homens não são escritores. Sim. Esta e a diferença. Está é a verdade. Nada além disso. A dúvida e escrever. Portanto, e também o escritor. E com o escritor o mundo inteiro escreve. Sempre se soube isso.

Também acho que sem esta dúvida primordial sobre o gesto da escrita não existe solidão. Ninguém jamais escreveu a duas vozes. Foi possível cantar as duas vozes, e também tocar música, e jogar tênis, mas escrever não. Jamais. De saída, fiz livros chamados de políticos. O primeiro foi Abahn, Sabana, David, um dos que me são mais caros. Creio que isso e um detalhe, o fato de um livro ser mais ou menos difícil de guiar do que é a vida comum. A dificuldade e uma coisa que simplesmente existe. Um livro e difícil de guiar, na direção do leitor, na direção da sua leitura. Se eu não tivesse escrito, teria me tornado uma alcoólatra incurável. Trata-se de um estado prático, achar-se perdido sem poder mais escrever... É aí que se bebe. A partir do momento em que se está perdido e que não se tem mais o que escrever, mais o que perder, aí é que se escreve. Ao passo que o livro está ali, e grita, exige ser terminado, exige que se escreva. A pessoa se vê obrigada a se colocar a seu serviço. É impossível escapar de um livro, antes que ele esteja afinal escrito — ou seja: sozinho e livre de você que o escreveu. É tão insuportável quanto um crime. Não acredito nas pessoas que dizem: “Rasguei meu manuscrito, joguei tudo fora. ” Não acredito nisso. Ou o que estava escrito não existia para os outros, ou não era um livro. E sempre se sabe quando não é um livro. Se chegara um dia a ser um livro, não, isso nunca se sabe. Nunca.

Quando ia me deitar, cobria o rosto. Eu tinha pouco de mim mesma. Não sei como não sei por que. E por isso bebia álcool antes de dormir. Para me esquecer de mim. Isso passa num instante pelo sangue, e depois vem o sono. A solidão alcoólica e angustiante. O coração, sim, é isso. De repente ele começa a bater ligeiro demais.

Tudo escrevia quando eu escrevia na casa. A escrita estava por todo lado. E quando via os amigos, as vezes mal os reconhecia. Houve muitos anos assim, difíceis, para mim, dez anos talvez, foi quanto durou. E quando os amigos, mesmo os mais queridos, vinham me ver, também era terrível. Não sabiam nada de mim: me queriam bem e vinham por gentileza, acreditando que me faziam bem. E o mais estranho era que eu não pensava em nada disso.

Isso torna a escrita selvagem. Vai-se ao encontro de uma selvageria anterior a vida. E sempre a reconhecemos, e aquela das florestas, tão antiga quanto o tempo. O medo de tudo, algo distinto e ao mesmo tempo inseparável da própria vida. Encarniçado. Não se pode escrever sem a força do corpo. E preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. E uma coisa gozada, sim. Não e apenas a escrita, o escrito, e o grito das feras noturnas, de todos, de você e eu, os gritos dos cães. É a vulgaridade maciça, desesperadora, da sociedade. A dor, também Cristo e Moises e os faraós e todos os judeus e todas as crianças judias, e é também a bondade mais violenta. Sempre, acredito nisso.


Esta casa em Neauphle-le-Château, comprei-a com os direitos da adaptação do meu livro Un Barrage contre le Pacifique para o cinema. Ela me pertencia, ela estava em meu nome. Essa compra precedeu a loucura da escrita. Uma espécie de vulcão. Acho que esta casa e assim para muitos. Ela me consola de todas as dores da infância. Quando a comprei, soube logo que tinha feito alguma coisa importante, para mim, e definitiva. Alguma coisa só para mim e para meu filho, pela primeira vez na vida. E me dediquei a rasa. Limpei-a. Fiquei bastante “ocupada” com ela. Depois, quando embarquei nos meus livros, me ocupei menos.

A escrita vai muito longe.... Até se acabar. Às vezes e algo insustentável. De súbito, tudo adquire um sentido em relação escrita, e de deixar a gente doida. As pessoas que conhecemos não as conhecemos mais, e aquelas que não conhecemos, achamos tê-las visto antes. Não há duvida de que eu estava já simplesmente, e um pouco mais que os outros, cansada de viver. Era um estado de dor sem sofrimento. Não tentava me proteger dos outros, sobretudo das pessoas que me conheciam. Não era triste. Era desesperado. Eu tinha embarcado no trabalho mais difícil da minha vida: meu amante de Lahore, escrever sua vida. Escrever Le Vice-cônsul. Precisei dedicar três anos a este livro. Não podia falar do assunto porque a menor intrusão no livro, a menor informação “objetiva” teria apagado tudo do livro. Uma outra escrita, corrigida, teria destruído a escrita do livro e o que eu sabia de mim em relação ao livro. Essa ilusão que se tem — e que é justa  de ser o único que escreveu o que está escrito, seja uma nulidade ou uma maravilha. E quando lia os críticos, a maior parte do tempo eu me achava sensível ao fato de que se dizia que aquilo não se parecia com nada. Quer dizer que aquilo vinha ao encontro da solidão inicial do autor.

Eu achava que tinha adquirido esta casa em Neauphle também para meus amigos, para recebe-los, mas eu estava enganada. Comprei-a para mim. É só agora que o entendo e que o digo. Certas noites havia muitos amigos, os Gallimard vinham muitas vezes, e suas esposas e seus amigos. Eram muitos, os Gallimard, uns quinze talvez, às vezes. Eu pedia que viessem um pouco antes para colocar as mesas em um mesmo cômodo a fim de ficarmos juntos. Estas noites de que falo eram, para todos, muito alegres. As mais a alegres de todas. Ha via sempre Robert Antelme, Dionys Mascolo e seus amigos. E meus amantes também, sobretudo Gerard Jarlot, que era o sedutor em pessoa, e que se tornou amigo dos Gallimard.

Quando havia o mundo, me sentia ao mesmo tempo menos só e mais abandonada. Essa solidão, para aborda-la, e preciso atravessar a noite. À noite, imaginar Duras em seu leito tentando dormir sozinha em uma casa de quatrocentos metros quadrados. Quando eu ia até o fim da casa, lá do outro lado, na direção da “casa pequena”, tinha medo do espaço como de uma emboscada. Posso dizer que tinha medo todas as noites. No entanto jamais fiz o menor gesto para que alguém viesse morar aqui. Às vezes, de noite, eu saia já tarde. Adorava as caminhadas, com as pessoas da aldeia, os amigos, os habitantes de Neauphle. Bebíamos. Conversávamos bastante. Íamos a uma espécie de cafeteria grande como Uma aldeia de muitos hectares. O auge vinha às três horas da manhã. Lembro o nome: era Parly II. Lugares onde estamos também perdidos. Os garçons vigiavam, como se fossem policiais, aquele imenso território da nossa solidão.


Não é uma casa de campo, esta casa, aqui. Não se pode dizer isso. Antes, era uma chácara, com o tanque, e depois virou a casa de campo de um tabelião, o grande Tabelionato de Paris.

Quando abriram para mim a porta de entra- da, vi o parque. Durou alguns segundos. Eu disse que sim, que ia comprar a casa, desde o instante em que atravessei a porta. Comprei-a imediata- mente. Paguei no ato, em espécie.

Agora ela se tornou uma casa de todas as estacoes. E dei-a também ao meu filho. Ela pertence a nos dois. Ele se sente tão ligado a ela quanto a mim, agora creio nisso. Guardou tudo o que e meu dentro desta casa. Nela, ainda posso estar sozinha. Tenho minha mesa, minha cama, meu telefone, meus quadros e meus livros. E os argumentos de meus filmes. E quando entro nesta casa, meu filho fica muito contente. Essa alegria, do meu filho, € agora a alegria da minha vida.


É uma coisa curiosa um escritor. Uma contradição e também um absurdo. Escrever é também não falar. E se calar. E berrar sem fazer barulho. E muitas vezes o repouso de um escritor, e ele tem muito a ouvir. Não fala muito porque é impossível falar com alguém de um livro que se escreveu e sobretudo de um livro que se está escrevendo. É impossível. É o contrário do cinema, o contrário do teatro, e de outros espetáculos. É o contrário de todas as leituras. E o mais difícil de tudo. É o pior. Porque um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é assim. É o livro que avança, que cresce, que avança nas direções que se supõem exploradas, que avança para o seu próprio destino e do seu autor, agora aniquilado pela sua publicação: a separação entre os dois, o livro sonhado, como a criança recém-nascida, sempre a mais amada.


Um livro aberto e também a noite.

Não sei por que, estas palavras que acabei de dizer me fazem chorar.

Escrever apesar do desespero. Não: com desespero. Que desespero, eu não sei, não sei o nome disso. Escrever ao lado daquilo que precede o escrito e sempre estragá-lo. E é preciso, no entanto, aceitar isto: estragar o fracasso significa retornar para um outro livro, para um outro possível deste mesmo livro.

Esse perder-se de si no interior da casa não é voluntario, em absoluto. Eu não dizia: “Estou fechada aqui todos os dias do ano.” Eu não estava, isso seria dizer algo falso. Ia dar voltas, ia ao café. Mas ao mesmo tempo estava aqui. A aldeia e a casa são semelhantes. E a mesa diante do tanque. E a tinta preta. E o papel branco e parecido. Com os livros, não, de repente, com eles nunca e parecido.

Antes de mim, ninguém havia escrito nesta casa. Perguntei ao administrador da municipalidade, aos vizinhos, aos comerciantes. Não. Nunca. Telefonei diversas vezes para Versailles a fim de tentar saber o nome das pessoas que tinham morado nesta casa. Na série dos nomes dos moradores e seus prenomes e sua profissão não havia um só escritor. Ora, todos esses nomes podiam ser nomes de escritores. Todos. Mas não eram. Em volta, havia chácaras de várias famílias. O que encontrei na terra foram as lixeiras dos alemães. A casa foi de fato ocupada por oficiais alemães. Suas lixeiras eram buracos, buracos na terra. Havia muitas conchas de ostras, caixas vazias de produtos caros, sobretudo patê de fois gras, caviar. E muita louça quebrada. Mandei jogar tudo fora. Exceto os cacos de louça, sem dúvida nenhuma louça de Sèvres, os desenhos estavam intactos. E o azul era o azul inocente dos olhos de algumas de nossas crianças.

Quando um livro chega ao fim — quero dizer, um livro que se terminou de escrever —, não se pode mais dizer, ao ser lido, que este livro seja um livro escrito por você, nem que coisas estão escritas nele, nem em que estado de desespero ou em que felicidade, a de um achado ou de um fracasso de todo o seu ser. Porque, no final, em um livro, não se pode ver nada igual. A escrita e, de algum modo, uniforme, ajuizada. Nada mais pode entrar em um livro assim, terminado e distribuído. E ele recupera a inocência indecifrável da sua vinda ao mundo.

Estar sozinha com o livro ainda não escrito significa estar ainda no primeiro sono da humanidade. E assim. E também estar sozinha com a escrita ainda não semeada. Tentar não morrer por isso. Estar sozinha em um abrigo durante a guerra. Mas sem preces, sem Deus, sem qualquer pensamento salvo o louco desejo de matar a nação alemã até o último dos nazistas.

A escrita sempre foi destituída de quaisquer referencias, caso contrário ela e... Ela ainda se acha como no primeiro dia. Selvagem. Diferente. Exceto a gente, as pessoas que circulam no interior do livro, durante o trabalho o autor nunca as esquece, nunca as lamenta. Não, disto estou certa, não, a escrita de um livro, o escrito. Portanto e sempre a porta aberta para o abando no. Existe o suicídio na solidão de um escritor. E possível sentir-se sozinho no interior da sua própria solidão. Sempre inconcebível. Sempre perigosa. Sim. Um preço a pagar por ter ousado sair e gritar.

Na casa, era no primeiro andar que eu escrevia, não escrevia embaixo. Depois, ao contrário, escrevi no grande cômodo central no térreo para estar menos só, talvez, não sei mais, e também para ver o parque.

Existe isso no livro: a solidão nele e a solidão do mundo inteiro. Está em toda parte. Invadiu tudo. Sempre creio nesta invasão. Como todos. A solidão é aquilo sem o que nada fazemos. Aquilo sem o que nada pode ser visto. É uma forma de pensar, de raciocinar, mas apenas com o pensamento cotidiano. Isso também existe na função de escrever e sobretudo, talvez, dizer a si mesmo que não e preciso se matar todos os dias, visto que é possível se matar a qualquer dia. Isto e a escrita de um livro, isto não é a solidão. Falo da solidão mas não estava sozinha pois tinha esse trabalho para realizar, trazer a luz, esse trabalho de condenado: escrever Le Vice-cônsul  de France a Lahore. E foi feito e traduzido para línguas do mundo todo, e foi guardado. Nesse livro, o vice-cônsul atira na lepra, nos leprosos, nos miseráveis, nos cães e depois atira nos Brancos, nos governantes brancos. Matava tudo menos ela, aquela que na manhã de um certo dia se afogou no Delta, Lola Valérie Stein, essa Rainha da minha infância e de S. Thala, essa mulher do governador de Vinh Long.

Esse livro foi o primeiro livro da minha vida. Foi em Lahore, e também lá, no Camboja, nas plantações, em toda parte. Le Vice-cônsul começou com uma criança de quinze anos que esta gravida, a pequena Annamite, expulsa da casa da mãe e que se volta para o maciço de mármore azul chamado Pursat. Não sei mais como continua, depois disso. Lembro que tive muita dificuldade para encontrar esse lugar, a montanha de Pursat, aonde nunca fui. O mapa estava ali, na minha escrivaninha, e segui os atalhos da marcha dos mendigos e das crianças de pernas quebradas, abandonadas por suas mães, e que comiam lixo. Era um livro bem difícil de fazer. Não existia piano algum possível para expor a amplitude da infelicidade porque já não havia restado mais nada dos fatos visíveis que a provocaram. Nada havia senão a Fome e a Dor.

Não havia mais encadeamento algum entre os fatos de natureza selvagem, assim não havia nunca programação. Isso jamais existiu na minha vida. Jamais. Nem na vida nem nos livros, nem uma única vez.

Escrevia todas as manhas. Mas sem horário certo. Nunca. Exceto quanto à cozinha. Sabia quando precisava vir porque a panela estava fervendo ou para que a comida não queimasse. Quanto aos livros, também era assim. Juro. Tudo, eu juro. Nunca menti em um livro. Nem na vida. Exceto para os homens. Nunca. E isso porque minha mãe me assustou com a mentira de que as crianças mentirosas acabavam sendo mortas.

Acho que é isso que condeno nos livros, em geral, o fato de que não são livres. Vê-se isto através da escrita: eles são fabricados, organizados, regulamentados, convenientes, poderíamos dizer. Uma função de revisão que o escritor, muitas vezes, exerce em relação a si mesmo. O escritor, assim, se converte em policial de si mesmo. Entendo desta maneira a busca da boa forma, ou seja, a forma mais corrente, a mais clara e a mais inofensiva. Ha ainda gerações de mortos que fazem livros pudibundos. Mesmo os jovens: Livros charmosos, sem o menor prolongamento, sem noite. Sem silencio. Em outras palavras: sem autor verdadeiro autor verdadeiro. Livros do dia, de passatempo, de viagem. Mas não livros que se incrustam no pensamento e que exprimem o luto negro da vida inteira, o lugar-comum de todo pensamento.

Não sei o que é um livro. Ninguém sabe. Mas dá para saber quando aparece um livro. E quando não há nada, dá para saber, do mesmo modo que se sabe que estamos vivos, que ainda não morremos.

Cada livro, como cada escritor, tem alguma passagem mais difícil, incontornável. E ele deve tomar a decisão de deixar este erro no livro para que permaneça um livro verdadeiro, e não de mentira. A solidão, ainda não sei em que ela se transforma depois. Ainda não posso falar disso. O que acho é que essa solidão se torna banal, com o tempo ela se torna vulgar, e que isso é uma felicidade.

Quando pela primeira vez falei do amor entre Anne-Marie Stretter, a embaixadora da França em Lahore, e o vice-cônsul, tive o sentimento de ter destruído o livro, de ter retirado o livro do estado de espera. Mas não, isso não só foi preservado, mas também o contrário disso. Existem erros dos autores, coisas que na verdade são acasos. Os erros bem-sucedidos entusiasmam muito, são coisas magníficas, e até os outros, aqueles fáceis como os relativos a infância, muitas vezes são também maravilhosos.

Os livros dos outros, eu muitas vezes os acho "adequados”, mas muitas vezes me parecem dependentes de um classicismo sem risco algum. A palavra seria fatal, sem dúvida. Não sei.

As grandes leituras da minha vida, aquelas que só eu fiz, são as escritas por homens. É Michelet, Michelet e sempre Michelet, até as lágrimas. Os textos políticos também, mas menos. É Saint-Juste, Stendhal, e de uma forma Bizarra não e Balzac. O Texto dos textos é o Velho Testamento.

Não sei como sai disso que se pode chamar uma crise, como se diria crise de nervos ou crise de moleza, de degradação, como seria um sono fingido. A solidão também era isso. Um tipo de escrita. E ler era escrever.

Alguns escritores são apavorados. Têm medo de escrever. O que contou no meu caso foi talvez nunca ter tido medo desse medo. Fiz livros incompreensíveis e foram lidos. Há um que li i recentemente, que não relia há trinta anos, e que acho mágico. Seu título é La Vie tranquille. Dele, eu esquecera tudo, salvo a última frase: "Ninguém, a não ser eu, tinha visto o homem se afogar. ” É um livro feito de uma assentada só, segundo a lógica sombria e bastante banal de um assassino. Nesse livro, é possível ir mais longe do que o livro mesmo, do que o assassino do livro. Não dá para saber para onde se vai, sem dúvida para a adoração da irmã, a história de amor da irmã e do irmão, ainda, sim, para a eternidade de um amor deslumbrante, irrefletido, castigado.

Somos doentes da esperança, nós, os de 68, a esperança era aquilo que colocávamos no papel do proletariado. E lei alguma, coisa alguma, nem nada nem ninguém vai nos curar dessa esperança. Eu queria voltar a me inscrever no PC. Mas ao mesmo tempo sei que não seria necessário. E queria também me dirigir a direita e insultá-la com toda minha cólera. O insulto e tão forte quanto a escrita. E uma escrita mais dirigida. Insultei pessoas em meus artigos e é tão satisfatório quanto escrever um belo poema. Para mim, há uma diferença radical entre um homem de esquerda e um homem de direita. Parece que são as mesmas pessoas. Na esquerda, há Beregovoy, que ninguém vai substituir. O Beregovoy número um é Mitterrand, que não se parece com ninguém.

Eu pareço com todo mundo. Acho que ninguém jamais me reconheceu na rua. Sou a banalidade. O triunfo da banalidade. Como aquela velha senhora do livro: Le Camion.

Viver assim, como digo que eu vivia, nessa solidão, por um longo tempo, cria riscos que se precisa correr. E inevitável. Desde o momento em que o ser humano se vê sozinho, ele oscila para a demência. Acredito nisso: acredito que uma pessoa entregue a si mesma já se acha acometida de loucura, porque não há nada que barre seu caminho quando ocorre um delírio pessoal.

Nunca se está só. Nunca se está só, fisicamente. Em parte alguma. Sempre se está em algum lugar. Ouvem-se barulhos na cozinha, na televisão, ou no rádio, nos apartamentos vizinhos, e no prédio inteiro. Sobretudo quando nunca se precisou do silencio como eu sempre fiz.

Vou adorar contar a história que contei pela primeira vez a Michelle Porte, que tinha feito um filme sobre mim. Àquela altura da história, eu me encontrava naquilo que se chama a “despensa” na “casa pequena”, que se comunica com a casa grande. Estava sozinha. Esperava por Michelle Porte naquela despensa. Muitas vezes fico assim em lugares calmos e vazios. Por longo tempo. E foi no interior desse silencio, naquele dia de repente vi e ouvi, rente a parede, bem perto de mim, os últimos minutos da vida de uma mosca comum.

Sentei no chão para não assustá-la. Não mexi mais.

Estava sozinha com ela na casa inteira. Nunca tinha pensado nas moscas até então, exceto para rogar pragas contra elas. Como vocês. Fui educada, como vocês, no horror dessa calamidade para o mundo inteiro, que transmite a peste e o colera.

Cheguei perto para vê-la morrer.

Ela queria escapar a parede, onde corria o risco de se tornar prisioneira da areia e do cimento que se depositavam sobre a parede, com a umidade do parque. Olhei como uma mosca dessas morria. Foi demorado. Ela se debatia contra a morte. Durou talvez algo entre dez e quinze minutos e depois cessou. A vida precisara cessar. Ainda fiquei ali para ver. A mosca continuou parada junto a parede como eu a tinha visto, como chumbada a parede.

Eu estava enganada: ela ainda vivia.

Ainda estou ali, a olhar, na esperança de que ela recomece a esperar, a viver.

Minha presença tornava aquela morte ainda mais atroz. Sabia disso e fiquei ali. Para ver. Ver como aquela morte invadia a mosca progressiva- mente. E também tentar ver de onde vinha essa morte. De fora, ou da espessura da parede, ou do sol. De que noite ela vinha, da terra ou do céu, das florestas vizinhas, ou de um nada ainda inominável, talvez muito próximo, talvez de mim, que tentava refazer os caminhos da mosca no esforço de passar para a eternidade.

Não sei mais qual foi o final. Sem dúvida, a mosca, no final de suas forças, acabou tombando. As patas se desprenderam da parede. E ela caiu da parede. Não sei mais nada, exceto que sai de lá. Disse para mim mesma: “Você está a ponto de ficar doida. ” E sai de lá.

Quando Michelle Porte chegou, mostrei a ela o lugar e contei que uma mosca morrera ali as três e vinte. Michelle Porte riu um bocado. Ela teve um ataque de riso. Tinha razão. Sorri paia ela, como intuito de pôr um fim naquela história. Mas não: ela riu ainda mais. E eu, quando conto de novo a história para vocês, assim, a pura verdade, a minha verdade, foi tudo como acabei de dizer, aquilo que se passou entre mim e a mosca, e que ainda não se presta a risos.

A morte de uma mosca e a morte. E a morte em marcha para um determinado fim do mundo, que estende o campo do sono derradeiro. Vemos morrer um cão, vemos morrer um cavalo, e dizemos qualquer coisa, por exemplo, coitado do bicho... Mas se uma mosca morre, não dizemos nada, não registramos nada.

Agora está escrito. E, talvez, a este tipo de derrapagem não gosto desta palavra — muito sombria que nos arriscamos. Não chega a ser grave, mas d um fato em si mesmo, total, de um sentido enorme: de um sentido inacessível e de uma extensão sem limites. Pensei nos judeus. i Odeio a Alemanha como nos primeiros dias da guerra, com todo meu corpo, com toda minha força. Assim, durante a guerra, a cada alemão que passava na rua, eu pensava no seu assassinato, que eu cometeria, inventado e aperfeiçoado por mim, pensava nessa alegria colossal, um corpo alemão aos meus pés, morto.

E bom também se o escrito conduz a isso, a essa mosca em agonia, quero dizer: escrever o pavor de escrever. A hora exata da morte, registrada, a tornava já inacessível. Isso lhe dava uma importância de caráter geral, digamos, um lugar preciso no mapa geral da vida sobre a terra.

Essa exatidão da hora da morte faria com que a mosca tivesse funerais secretos. Vinte anos depois da sua morte, a prova esta aqui mesmo, ainda falamos dela,

Nunca contei a morte dessa mosca, sua demora, sua lentidão, seu medo atroz, sua verdade.

A exatidão da hora da morte remete a coexistência com o homem, com os povos coloniza- dos, com a massa fabulosa dos desconhecidos do mundo, as pessoas sós, na solidão universal. A vida, ela está em toda parte. Da bactéria ao elefante. Da terra aos céus divinos ou já mortos.

Não organizei nada em torno da morte da mosca. As paredes brancas, lisas eram já sua mortalha e fizeram com que sua morte se tornas- se um acontecimento público, natural e inevitável. Aquela mosca evidentemente estava no final da vida. Eu não podia me impedir de vê-la morrer. Ela não se mexia mais. Também havia isso, e de saber também que não se pode contar que essa mosca existiu.

Isso foi há vinte anos. Nunca contei este fato como acabei de contar aqui, nem mesmo para Michelle Porte. O que eu sabia — o que eu via — era que a mosca já sabia que aquele gelo que a atravessava era a morte. Isso era o mais assusta- dor. O mais inesperado. Ela sabia. E ela aceitava.

Uma casa só, isso não existe desse jeito. E preciso que o tempo passe ao redor dela, pessoas, historias, “reviravoltas”, coisas como o casamento ou a morte daquela mosca, a morte, a morte banal — a da unidade e do nome ao mesmo tempo, a morte planetária, proletária. A morte provocada pelas guerras, as montanhas de guerras que existem na Terra.

Naquele dia. Naquela data, deum encontro com minha amiga Michelle Porte, um fato visto apenas por mim, naquele dia sem hora, uma mosca morreu.

No momento em que olhei para ela, de repente eram três horas e vinte da tarde, um pouco mais: o ruído dos elitros havia cessado.

A mosca estava morta.

Aquela rainha. Negra e azul.

Aquela, que eu tinha visto, eu, ela estava morta. Lentamente. Ela se debatera até o ultimo sobressalto. E em seguida ela cedeu. Isso durou talvez de cinco a oito minutos. Foi demorado. Foi um momento de medo absoluto. E assim foi a partida da morte para outros céus, outros planetas, outros lugares.

Eu queria me salvar e ao mesmo tempo me dizia que era preciso olhar na direção daquele barulho no chão, apesar de já ter ouvido, certa vez, aquele ruído de fogo na madeira verde que tem a morte de uma mosca comum.

Sim. E isso, essa morte da mosca tomou-se um deslocamento da literatura. Escreve-se sem saber. Escreve-se sobre olhar uma mosca morrer. Existe o direito de fazê-lo.

Michelle Porte teve um ataque de riso quando eu disse a que horas a mosca tinha morrido. E agora penso que talvez não tenha sido eu que contou essa morte de um jeito engraçado. Àquela altura eu me achava privada dos meios de expressão porque eu olhava essa morte, a agonia daquela mosca negra e azul.

A solidão está sempre acompanhada de loucura. Sei disso. A loucura não se vê. Às vezes apenas a pressentimos. Não creio que possa ser de outro modo. Quando um livro inteiro sai de dentro da pessoa, e inevitável o estado particular de uma certa solidão que não se pode partilhar com ninguém. Não se pode fazer nada para partilhar isso. E preciso ler sozinho o livro que se escreveu, enclausurar-se no livro. Isto possui evidentemente um aspecto religioso, mas não se percebe de imediato, podemos pensar nisso mais tarde (como penso neste momento) em razão de algo que seria a vida, por exemplo, ou uma solução para a vida do livro, da palavra, dos gritos, dos urros surdos, silenciosamente terríveis de todos os povos do mundo.

À nossa volta, tudo escreve, e isso que se deve perceber, tudo escreve, a mosca, ela também escreve, sobre as paredes, ela escreveu bastante na luz da grande sala, refratada pelo tanque. A escrita da mosca era capaz de sustentar uma página inteira. Então já e uma escrita, A partir do momento em que poderia ser uma escrita, já e uma escrita. Um dia, talvez, no correr dos séculos futuros, alguém lera essa escrita, ela também será decifrada, traduzida. E a imensidão de um poema legível se desdobrara pelo céu.

Mas, apesar de tudo, em qualquer lugar do mundo fazem-se livros. Todo mundo faz. Acredito nisso. Tenho certeza de que é assim. Para Blanchot, por exemplo, e assim. Existe a loucura que gira a seu redor. A loucura e também a morte. Não para Bataille. Por que Bataille se achava a salvo do pensamento livre, louco? Eu não saberia responder.

Sobre a história da mosca eu gostaria.de dizer ainda alguma coisa,

Ainda a vejo, ela, aquela mosca na parede branca, morrendo. Primeiro na luz solar, depois na luz refratada e sombria do chão de ladrilhos.
E também possível não escrever, esquecer uma mosca. Apenas olhar para ela. Ver como ela rodopiava, se debatia de uma forma terrível e compatibilizada comum céu desconhecido e de nada.

Eis tudo.



Vou falar de nada.

De nada.

Todas as casas em Neauphle são habitadas: no inverno, mais ou menos, e verdade, mas mesmo assim são habitadas. Não são reservadas para o verão como ocorre muitas vezes. Ficam abertas o ano inteiro, habitadas.

O que conta nesta casa de Neauphle-le-Château são as janelas que dão para o parque e a estrada de Paris diante da casa. A estrada por onde passam as mulheres de meus livros.

Dormi bastante naquele aposento que se converteu em sala. Por muito tempo acreditei que um quarto de dormir fosse uma coisa convencional. Foi quando trabalhei ali que um quarto de dormir se tornou algo indispensável como os demais quartos, mesmo aqueles vazios, dos outros andares. O espelho da sala era dos proprietários que me precederam. Deixaram-no para mim. O piano, eu o comprei logo depois de comprar a casa, quase pelo mesmo preço.
       
Ao lado da casa, cem anos atrás, havia uma trilha para o gado vir beber no tanque. Agora o tanque se encontra dentro do meu parque. E não existe mais gado. Na aldeia, não há mais leite fresco de manhã. Há cem anos.

Na verdade, e quando se roda um filme aqui que a casa aparece como outra casa, aquela que existiu, certa época, para gente que viveu antes de nos. Na solidão, mostra imediatamente sua graça, como uma outra casa que pertenceria ainda a outras pessoas. Como se algo tão monstruoso como a perda da posse desta casa pudesse ser visto.

O lugar onde se colocam as frutas, os legumes, a manteiga salgada, para manter tudo fresco, lá dentro.... Havia um lugar assim... escuro e frio... acho que era assim, uma despensa, e isso mesmo. Esta e a palavra. Para pôr a salvo as provisões de guerra.

As primeiras plantas que nasceram aqui são as que estão no parapeito das janelas da entrada. E o gerânio-rosa vindo do sui da Espanha. Aromático como o Oriente.

Nesta casa, nunca se jogam as flores fora. É um habito, não uma regra. Nunca, mesmo quando estão mortas, elas sempre ficam onde estão. Existem pétalas de rosas que estão no mesmo lugar ha quarenta anos, na mesma jarra. Estão ainda bem rosadas. Secas e Rosas.

O problema, o ano todo, e o crepúsculo. Tanto no verão quanto no inverno.

Há o primeiro crepúsculo, aquele do verão, e não e preciso iluminar o interior da casa.

Depois há o verdadeiro, o crepúsculo do inverno. Às vezes, fecho os postigos das janelas para não ver isso. Ha também as cadeiras, elas são arrumadas para o verão. E no terraço que se costuma ficar no verão. Ali converso com os amigos que vem durante o dia. Para isso, muitas vezes: conversar.

Sempre e triste, mas não trágico, o inverno, a vida, a injustiça. O horror absoluto de uma certa manhã.

É apenas isso, triste. Nem com o tempo dá para se acostumar com isso.

O mais difícil, nesta casa, e o temor pela sorte das arvores. Sempre. E cada vez. Cada vez que há tempestade, e há muitas tempestades por aqui, a gente torce pelas arvores, tem medo do que possa acontecer com elas. Não sei mais seus nomes na ponta da língua.

A hora do crepúsculo do anoitecer é a hora em que, ao redor do escritor, todo mundo para de trabalhar.

Nas cidades, nas aldeias, em toda parte, os escritores são pessoas sós. Em toda parte, e sempre, foram assim.

No mundo inteiro, com o fim da luz, vem o fim do trabalho.

E sempre senti essa hora como não sendo, para mim, a hora do fim do trabalho, mas a hora do começo do trabalho. Existe, na natureza, um tipo de inversão de valores em relação ao escritor.

Para os escritores, o outro trabalho e aquele que as vezes chega a dar vergonha, aquele que provoca, na maior parte do tempo, um desgosto de ordem políticos, o mais violento de todos. Sei que isso deixa a pessoa inconsolável. E que a gente acaba malvada, como cães da polícia.

Aqui, a gente se sente separada do trabalho manual. Mas contra isso, contra esse sentimento a que € preciso se adaptar, se habituar, nada poderá ser eficaz. O que vai dominar sempre, e isto nos faz chorar, e o inferno e a injustiça do mundo do trabalho. O inferno das fabricas, os rigores do desprezo, a injustiça do patronato, seu horror, o horror do regime capitalista, toda a infelicidade que ele emana, o direito dos ricos terem o proletariado a seu dispor e fazerem dele a razão de seu fracasso, nunca de seu sucesso. O mistério e por que o proletariado aceita. Mas são numerosos, e cada dia cresce mais o número daqueles que acreditam que isto não pode durar mais muito tempo. Que alguma coisa foi alcançada por nós todos, uma nova leitura talvez de seus textos desonrosos. Sim, e isso mesmo.

Não insisto, vou embora. Mas digo aquilo que todos sofrem, mesmo quando não sabem que sofrem.

Muitas vezes, com o fim do trabalho, nos vem a lembranças da maior injustiça. Falo do cotidiano da vida. Não t de manhã, e de noite que isso acontece, entra nas casas, vem até nos. E se não e assim, então não e absolutamente nada. Não é: nada. E sempre, em todos os casos, em todas as aldeias, sabe-se disso.

A libertação ocorre quando a noite começa a se instalar. Quando o trabalho cessa lá fora. Resta esse luxo que temos, nos, de poder escrever durante a noite. Podemos escrever a qualquer hora. Não recebemos autorização de ninguém, horários, chefes, armas, muitas, guardas, chefes dos chefes. E galinhas chocas dos fascismos de a manhã.

A luta do vice-cônsul é uma luta ao mesmo tempo ingênua e revolucionaria.

E esta a maior injustiça de todos os tempos: e se não chorarmos por isso, pelo menos uma vez na vida, não vamos chorar por mais nada. E não chorar nunca e não viver.
       
Chorar, e preciso que isto também aconteça.

Se chorar é inútil, mesmo assim creio que e preciso chorar. Pois o desespero é tangível. Perdura. A lembranças do desespero, isto perdura. As vezes mata.

Escrever.

Não posso.

Ninguém pode.

E preciso dizer: não se pode.

E se escreve.

É o desconhecido que trazemos conosco: escrever, é isto o que se alcança. Isto ou nada.

Pode-se falar de uma doença da escrita.

Não e simples o que tento dizer aqui, mas acho que e possível reencontrarmo-nos aqui, camaradas de todos os países.

Ha uma loucura de escrever que existe em si mesma, uma furiosa loucura de escrever, mas não e por isso que se cai na loucura. Ao contrário.

A escrita e o desconhecido. Antes de escrever, nada se sabe do que se vai escrever. E em total lucidez.

E o desconhecido de si mesmo, de sua cabeça, de seu corpo. Escrever não e sequer uma reflexão, e um tipo de faculdade que se possui ao lado da personalidade, paralelo a ela, uma outra pessoa que aparece e avança, invisível, dotada de pensamento, colera, e que por vezes acaba colocando a si mesma em risco de perder a vida.

Se soubéssemos algo daquilo que se vai escrever, antes de fazê-lo, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não ia valer a pena.

Escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria se fossemos escrever — só se pode saber depois — antes, é a pergunta mais perigosa que se pode fazer. Mas também a mais comum.

A escrita vem como o vento, nua, é de tinta, a escrita, e passa como nada mais passa na vida, nada, exceto ela, a vida.
               





4/12/2017

Enfrentar o risco de morte a permanecer obediente | Edson Passetti







Edson Passetti




















Fala do anarquista e pesquisador do nu-sol «Edson Passetti» durante a entrega da Medalha Chico Mendes. OAB-RJ. 03 de abril de 2017

...

A transgressão não pode ser conhecida. Quando ela é conhecida não passa de ajuste legal ou normativo. É preciso enfrentar o risco de morte a permanecer obediente. Estou, aqui, ao lado de vivos e mortos que marcam suas revoltas inscritas na presença de Chico Mendes. 


Por convenções, o professor e o pesquisador se fazem segundo princípios rígidos que governam suas condutas. Eles os dispõem em uma comunidade que reconhece seus escritos, vínculos e produção ajustados ao que se acordoucomo real e hegemônico.

Mas, ainda bem, esse núcleo sólido pode e deve ser perfurado, produzindo fissuras em ambos os lados. Para mim, o professor não se instala na instrução competente aos alunos, mas é quem faz do saber e da produção das verdades um feixe irradiador aos estudantesdos desconcertos capazes de atiçar querer saber, fazer, revolver e se revolver.


O pesquisador não está dissociado do professor. Ele deve recusar os benefícios de poder, e se instalar onde estão os dejetos humanos e suas maneiras de viver em uma sociedade que não os suporta. Estes insuportáveis, inclassificáveis (muitas vezes tidos como desclassificados) não dão sossego aos equacionamentos sócio-políticos e culturais supostamente pacificadores. Diferente do intelectual e suas profecias racionais-históricas, o pesquisador permanece dentro das lutas, não se contenta com a retórica democrática.


Interessam-me não só os jovens pauperizados tomados como objetos de investimento de governos que os determinam como infratores, delinquentes, perigosos. Mas, jovens que querem viver e que atiçam com suas atitudes o fogo da revolta. 

Recusam estar incluídos em programas e políticas revestidas de humanitarismos que pretendem pacificar suas existências tidas como desviantes, psicopatas, vândalas, carências das quais se serve a empresa, o sistema assistencial, educacional e penal como mote para suas perpetuações.


Onde há prisão, há o medo do povo. Por isso é inadmissível engolir o discurso bio-psico-social-cultural ressocializante do Estado, do seu sistema penal, de suas filantropias e dos humanistas juramentados em organizações ou sob o manto das ciências e do Estado. Não é possível consolidar uma juventude livre governada sob a ameaça da prisão, inaceitável aos humanos livres, e a direitos humanos que nenhuma declaração universal contempla. A prisão é uma tecnologia de governo que funde o legal aos ilegalismos consentidos e que está sempre aberta a aperfeiçoamentos das sujeições entre os súditos, tomados como cidadãos que cumprem deveres. Pelo menos, hoje em dia, e entre nós, poderíamos concluir que a prisão para jovens é inadmissível.

Nossa cultura com base no castigo e na punição é escandalosamente contra outros povos que devem ser subordinados ou simplesmente extintos. Ainda estamos sob o regime da naturalização do rei, da lei e de Deus. Mata-se e prende-se em nome da democracia vigente, daquelaa ser construída a partir de golpes, como vivemos no Brasil... mas não esqueçamos que a polícia é o cotidiano golpe de Estado sobre nós. Ela mata, recruta seus funcionários no exército de reserva de poder, entre os chamados desclassificáveis ou assujeitadosconformistas, incrementando a guerra entre os governados. O fluxo é contínuo e macabro: perpetuar a guerra entre os sujeitados. Porém, de tempos em tempos acontece a revolta.

Os anarquistas não lutam somente contra a propriedade e o Estado. Eles não lutam contra ideias e fazem acontecer sua força de liberdade a qualquer momento. Lutam, antes de tudo, contra a sociedade. Revolvem e abolem os costumes fundados no castigo, produzem suas relações livres em seus espaços ou como andarilhos. Sabem que todo prisioneiro é um preso político.


Os anarquistas reviraram esse país, no início do século passado, com seus costumes quanto à educação, cultura, liberdades pessoais sem as quais não há liberdade coletiva. Produziram a grande greve geral de 1917, foram perseguidos, presos e exilados. Pretenderam reduzi-los à pré-história do movimento operário no Brasil. Porém, os anarquistas lidaram e lidam com diferenças. Hoje, sabem e fazem anarquias de outro modo, planetário como sempre, contra os monitoramentos, o controle sobre inteligências no trabalho e nas ruas e avenidas, as fantasias pacificadoras, o abstrato contrato, a metamorfose do trabalhador em capital humanocomo exige a racionalidade neoliberal,as fragmentações das lutas sócio-econômicas em diretos de minorias e culturais, os regimes políticos, suas leis e os macabros ajustes normativos de condutas. São inimigos da prisão, da polícia, do militarismo, do tribunal, da propriedade seja ela qual for e do Estado, seja ele qual for. Os anarquistas são aos seus modos abolicionistas penais. A sociedade é feita de homens, mulheres, crianças e jovens pulsando, contagiando, e contaminando o ideal de saúde como peste benigna.


Por aqui, brevemente andei acompanhado de vários analistas que não requerem a nomeação de autorias individualizantes que lhes empoderam. Permaneçamos incógnitos entre os inclassificáveis, de vez em quando mostrando nossa face oculta. Agradeço a gente como Chico Mendes e aos que fazem de sua existência trágica e transgressiva um momento para aproximar diferenças entre os que não temem enfrentar o insuportável. Termino com dois versos de um poeta: “eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ apenas sei de harmonias bonitas possíveis sem juízo final”.
Saúde!...

edson passetti 
03/04/2017



Edson Passeti | Graduou-se em Ciências Sociais na PUC-SP, em 1974. Iniciou-se como professor e pesquisador na mesma instituição em 1976, concluindo o mestrado com a dissertação Política Nacional do Bem-Estar do Menor, abordando política, legislação e criança como política de segurança nacional, durante a ditadura militar no Brasil. Defendeu o doutorado O impasse liberal por Ludwig von Mises, situando neoliberalismo, conservadorismo e libertarismo no momento de esgotamento do socialismo autoritário e do welfare-state. Apresentou a tese de livre-docência Amizade. Foucault, Nietzsche, Stirner..., junto ao Depto. de Política da Faculdade de Ciências Sociais, problematizando anarquismos, amizade e estética da existência na contemporaneidade. É professor no Depto. de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Orienta trabalhos de iniciação científica, mestrado e doutorado; supervisiona Pós-Doutorado. Foi Coordenador do Curso de Ciências Sociais e Diretor da Faculdade de Ciências Sociais; pertenceu às Comissões de Revisão e Avaliação Curriculares do Curso de Ciências Sociais; atualmente integra o Conselho Universitário da PUC-SP. Coordena o Nu-Sol, desde 1997. Atuou no coletivo que editou a revista libertárias, e atualmente vincula-se à revista autogestionária verve. Realizou diversos vídeos exibidos em universidades e eventos libertários. Publica livros, artigos e ensaios no país e no exterior; organiza coletâneas e colóquios universitários; escreve, em parceria, e coordena, semestralmente, aulas-teatro; realizou com integrantes do Nu-Sol três séries de antiprogramas para o Canal Universitário-TV PUC.


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