Por
Nilson Oliveira
O ruidoso relógio das décadas move-se
outra vez. Dessa vez não é Musil, nem Broch, nem Canetti, mas Thomas Bernhard[1], ele e sua voz arfante, que irrompe o
silêncio para dizer o não dito – um pouco de possível nesses dias de
insuportável . Se
antes ele martelava no front, resistindo à tolice, às dissimulações do
intolerável, hoje corta as manhãs por pura intensidade. Retorna para afirmar o possível, para fazer
explodir o açougue das palavras adormecidas. Ou seja, retorna outra vez pela vida [irrigando o fértil
jardim da sublevação], manuseando seu alfabeto de intensidades, dançando
na noite como um trovão. Bernhard volta à cena nesses dias em que se
acumulam algumas décadas do seu sono derradeiro. Retorna, mas pelas trilhas de Nietzsche [a
literatura como martelada], numa investida alçada pela força da
escrita – imanente criatividade do ato literário –, numa
velocidade que se dobra ao infinito, mas sem cingir ao absoluto ou função
tagarela de falar de tudo. Bernhard, através da sua escrita, combate em
pequenas guerrilhas um combate que é pura vontade, tal como diz Pelbart, seus temas
cortam a um só tempo “amizade e inveja, escrito[s] num ritmo ofegante, alucinatório. O autor austríaco aciona sua
metralhadora giratória contra a sociedade burguesa – e como em toda sua obra, é
a literatura a serviço da extinção, isto é, da salvação” [2]. Da escrita de Bernhard
transborda um pensamento entranhado na vida, tangenciando ao dentro e fora
dessa vida, expondo em carne viva a frugalidade, a rotina e, com isso,
desvelando os microfascismos daqueles que passeiam ‘tacitamente’ pelas ruas de
Salzburg. Assim vemos em Extinção, através de Franz-Josef Murau
[narrador do romance], Bernhard incorrer num combate cerrado contra as
estruturas da igreja, da família, do estado e de todo ambiente
nacional-socialista impregnado na cultura austríaca do pós-guerra. Em Árvores
Abatidas, o narrador, sentado em sua bergère [num jantar
concedido pelos Auersberger a um ator veterano do burgtheater], dispara
e dispara, não faz concessão, diz a seco; das suas artérias pulsa uma escrita vibrátil que
age contra a máquina déspota, que se disfarça num
horroroso teatro de representação. Bernhard se empenhou em um combate contra as
dissimulações do racismo, do conservadorismo, sobretudo daquilo que, como
um verme, se esconde nas entranhas dos valores universalmente aceitos – nas
grandes ou pequenas verdades assentadas nos ideais que atravessam a religião, a
cultura, a política –, ventilados no porão ou em praça pública, engendrando um
árido campo de insuportável. Em Bernhard isso se descortina numa terrível
imagem: “em muitos cidadãos de Salzburgo reconheço sempre o prefeito, que para
mim era o nacional-socialista e o católico reunidos numa mesma pessoa, forma
humana e postura mental que, em Salzburgo, são as mais disseminadas e, até
hoje, predominantes na cidade”[3]. Por certo, as impressões de Bernhard,
que estão ligadas a um contexto da Segunda Guerra, perturbam. Ainda hoje –
frente à paisagem tenebrosa do presente em que, sobremaneira na Europa, as
ideias totalitárias ganham mais e mais força sob a insígnia de um discurso que
expurga o estrangeiro, fulmina “o sangue impuro”, destrata o diferente, em
favor de uma paisagem asséptica, harmônica, tutelada pelo axioma a
Europa é dos europeus –, a fala de Bernhard torna-se mais
atual e incômoda que nunca. Sua escrita desliza veloz, por vezes explode tudo,
num estilo torrencial que muito nos lembra Céline. Mas acontece também em outra
medida, pois há em sua obra atos de ruptura, um dizer que quebra continuamente,
num combate contra a denegação de um passado mórbido, que se lança contra os
zumbis desse passado cujos fantasmas vagam [dissimulados] pelos corredores,
gabinetes, salas e ante-salas do presente. A voz de Bernhard tem um ruído que
incomoda: Máquina de Guerra contra os déspotas, nazistas e
todo o abecedário do totalitarismo. Bernhard, porém, não é um ressentido, passa
alhures disso. Sua “agressividade decorre de uma instância mais
profunda, é a negatividade ativa, afirmativa”[4]; seu movimento contra é nutrido por uma saúde: a literatura.
Bernhard diz o indizível, vai ao fundo disso, alcança a vitalidade da arte, a
escrita, e com ela navega contra a herança da violência em favor de
um possível da vida – aventura vivida sem nenhuma reserva. É um caso de
velocidade, ele se move, segue um ritmo, tem sabor, perspectiva, ferocidade,
fazendo da escrita uma potência nômade que migra de livro a livro, disparando
as suas rajadas. Todavia, a velocidade em Bernhard nada tem a ver com estar na
frente da corrida, mas com devires, tal como linhas que deslizam rachando as
palavras, taxiando entre a escrita e o pensamento, dançando pelo meio das
coisas. “Escrever é produzir velocidade, que
nada tem a ver com escrever depressa, é na escrita mais lentamente trabalhada
que se atinge a velocidade absoluta”[5]. Quanta Beleza em Jean Santeuil ou em Morte a Credito ou em O Inominável, obras que se diferenciam entre si por
singularidades e, sobretudo, por conduzirem linhas de tempo, por conduzirem e
serem conduzidas, alçadas por fluxos peculiares à lentidão de quem as teceu [um
rosto? uma identidade?], às potências criativas. A escrita, nesse sentido,
navega em velocidades extraordinárias, lento/veloz/arrastado, num intenso
devir-velocidade. Movimento aliviado dos sentidos; das cloacas que maquiam a
superfície das coisas, salto ao coração da imanência: mergulho que
atravessa o abscesso de um pensamento perturbador. Assim são os Livros
de Thomas Bernhard, escritos para dar vazão ao caminho, para seguir em
frente, fazendo jorrar o seu fluxo desejoso, pensamento bomba: “Toda a gente sabe o que um escritor faz. Assim como
as vacas comem forragem, os escritores comem idéias. São sempre as mesmas ou
variam, é coisas que não depende deles. Trata-se de uma inspiração superior.
Por mim, tudo começou aos dezoito anos, quando fui internado num hospital e me
deram a extrema-unção. Depois estive num sanatório, na alta montanha, durante
meses sem sair da cama e sempre com o mesmo cume à minha frente. Não podia me
mexer, e por causa desse aborrecimento e desse estar só, meses e meses, com
aquela montanha a minha frente (...) ou ficava louco ou começava a escrever.
Resolvi escrever e assim venci meu ódio aos livros e à escrita”[6]. Não se trata de idiossincrasia, e
sim de uma interioridade selvagem, de uma ruminação que atravessa a escrita
pelo meio, revolvendo o coração do problema: a escolha, a opção pelo ato
criativo, pelos combates em favor da escrita. Mas também o tema da força:
vontade de afetar e ser afetado, deixando-se levar pelas águas da escrita,
numa entrega total, que alcança o que Foucault chamou de processo de
subjetivação: trata-se da constituição de modos de existência, subjetivar é
construir pregas, é vergar a força, dobrar a dobra, alcançar o lado de fora. O
grande escritor nunca escreve para se tornar escritor, mas por outra razão:
escreve por vontade; vontade que passa pela escrita, mas a
ultrapassa fazendo da escrita um laboratório de invenção, uma máquina em eterno
devir. Escrever já não tem seu fim em si mesmo, precisamente porque a escrita
já não é qualquer coisa de pessoal, ultrapassa a latitude do sujeito, e aí a
finalidade de escrever é levar a vida a uma intensidade impessoal. E mesmo
quando escreve na primeira pessoa, como Céline e Bernhard, o escritor está
falando uma linguagem nova, gaguejando na língua, desenhando uma nova imagem no
pensamento, tal como as “pinturas” de Marcel Proust [a força da sensação contra
a fraqueza do pensamento] ou a “fórmula” desconcertante de Bartleby [vontade de
recusa ao estabelecido]. Questões presentes em raras obras produzidas pela
literatura, mas que expressam com beleza a singularidade do espaço
literário. Bernhard é sem engano uma fissura no horizonte da escrita
literária, suas obras empurram a literatura para um Aberto – um espaço
livre de demagogia, de egocentrismo. Bernhard escreve veloz, escreve numa
intensidade que vaza, que arrasta tudo. Escrita-corpo que é pele, mas também é
dura, como nesta passagem de Extinção: “O
fotografar é uma mania sórdida que pouco a pouco se apodera de toda humanidade,
porque ela não está somente apaixonada pela deformação e pela perversidade, mas
louca por ela, e com o tempo, de tanto fotografar, ela torna efetivamente o
mundo deformado e perverso como o único e verdadeiro”[7]. Corte afiado na nuvem tesa,
Bernhard com sua escrita
amolada tenciona tudo,
com diz Benjamim: “a tensão que atravessa o romance se assemelha
muito à corrente de ar que alimenta e reanima a chama”[8]. A literatura se edifica sobre a
superfície dessa tensão. Esse paradoxo é para nós um lugar de força. Thomas
Bernhard apresenta uma ruptura na paisagem da escrita literária; sua obra traz
o deslizamento, o deslocamento de uma potência que vindo à luz expressa a
singularidade da atividade literária. Com ele entendemos tão bem a frase
de Deleuze: “que o pensamento seja lançado como uma
pedra por uma máquina de guerra”[9].
Nilson Oliveira (Belém-PA). Escritor e editor da Revista POLICHINELLO. Autor dos livros: “A OUTRA MORTE DE HAROLDO MARANHÃO” (Premio IAP de Literatura de 2006); “APENAS BLANCHOT” (Editora Pazulin, 2009); “A LITERATURA E OS POSSÍVEIS DA ESCRITA LITERÁRIA” (Lumme Editor, 2010); “NIETZSCHE/DELEUZE: NATUREZA/CULTURA” (Lumme Editor, 2011)
Muito boa resenha, não li nada de Bernard, mas após a leitura aqui, vou procurar agora mesmo.
ResponderExcluirParabéns pelo texto, Nilson! Beijo.
ResponderExcluirQuerida MjC,que surpresa boa. Valeu pela leitura. O melhor abraço, Nilson
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