Tradução: Marcelo
Jacques de Moraes*
Pode-se tomar a
consideração – essa percepção que é também um cuidado, esse olhar que é também
um respeito – como uma virtude de poeta.
Francis Ponge, por
exemplo, exigia que se tivesse “respeito” pela realidade, até na maneira que se
tem de mantê-la sob os olhos e falar dela; era isso que convocava nele o
furor da expressão [1].
Em “Margens do Loire”, ele inventava algo como um direito do real, um direito
do real diante do qual nós, falantes, não teríamos senão deveres, e que poderia
até apelar e apresentar queixa contra nós quando justamente nos atabalhoássemos
ao considerá-lo e qualificá-lo.
Reconhecer o maior direito do objeto, seu direito imprescritível, oponível a qualquer poema… Já que em relação a nenhum poema jamais deixa de haver apelação a mínima por parte do objeto, assim como não deixa de haver acusação de fraude. O objeto é sempre mais importante, mais interessante, mais capaz (cheio de direitos [2]
Furor da expressão,
furor pela expressão: ira contra todos os atabalhoamentos e desatenções de toda
espécie, sobretudo ao tomar a palavra; não apenas a ira, portanto, mas o espaço
particular em que a ira se articularia a certa intensidade de atenção, uma
vigilância quase procedural quanto às formas tão múltiplas da vida e às
verdadeiras ideias que nelas se engajam: uma ira tomada de justeza, uma ira
poética, um pensamento de poema.
Bourdieu, outro
homem de iras, não se enganara ao honrar no esforço poético de Ponge o próprio
modelo da operação sociológica, aquela que consiste em “reivindicar” o real,
isto é, em enfrentá-lo, em vê-lo tal como é, em compreendê-lo sem com isso
apreciá-lo ou justificá-lo; em outros termos, em tomar o partido do real e
conformar-se com ele. Bourdieu voltou diversas vezes a Ponge para explicitar
sua atitude em relação à realidade social, em entrevistas e na obra
inabitualmente militante que foi A miséria do mundo.
Eis o furor da
expressão: esse nó de esforços em que a teimosia da palavra e a teimosia do
real em ser o que é, em ser “tal qual”, como teria dito Valéry (nem mais
indizível, justificável ou amável do que isso), se substituem incessantemente
uma à outra. E isso vale muito bem a liberação de uma ira contra todas as
maneiras, inclusive as doutas e virtuosas, de ser desatento.
Belas iras estas
que têm por único inimigo o desatento: aquele que não vê a diferença,
aquele que não vê o problema, aquele para quem “isso não é nada”; belas iras
estas em que o que está ferido em mim (em que o que fere o “coração de rei” que
cada um porta em si, e que Sêneca via apertar-se nos irados) é essa exigência
de atenção, de vigilância, isto é, de justeza e justiça; pois a ira é esse
momento em que o que é tido como pouco, negligenciado, pilhado é justamente
aquilo a que me apego, ela chega até mesmo a me dizer (às vezes é uma surpresa)
aquilo a que me apego, aquilo pelo que estou disposto, ou disposta, a me
comprometer, a entrar na arena dos conflitos, das incertezas e das
justificações.
Belas iras estas
que podem então tentar dizer-se também na paciência e na dúvida: iras críticas
e calmas, iras irreconhecíveis (é o caso de Michaux, furioso como poucos, em Postes
angulares: “O sábio transforma sua ira de tal maneira que ninguém a
reconhece. Mas ele, sendo sábio, a reconhece… às vezes”.)
Não apenas “a ira”
resoluta, mas nem toda ira, não qualquer uma; pois “a ira” não é um valor, a
ira não é em si um bem, ela é essa emoção que revela os valores e os bens que
nos dividem, os objetos necessários de nossos conflitos: diga-me o que causa
sua fúria, eu direi em que você acredita, o que importa para você (e talvez,
justamente, não para mim), a que você se apega ou quer se apegar, o que você
precisa proteger para preservar seu amor pela vida, dê-me suas razões e seus
motivos para viver, diga-me onde está seu bem, e tentemos talvez julgar, mudar
tudo isso, duvidar… (uma vez que é preciso também, como propunha Baudelaire a
si mesmo, “datar sua ira”).
Pois uma ira em
poesia (a de Ponge, mas também as de Baudelaire, Hugo, Pasolini, Sebald,
Glissant, Deguy, Koltès…) se ergue sempre diante dos mesmos culpados: a indiferença,
o ter-por-pouco, por conseguinte a violência e a dominação (sim, a dominação,
todas as dominações, as que justamente aumentam de modo bastante concreto a
precariedade). Poeta é aquele que vai mal ali onde o mundo vai mal. Baudelaire
lembrava isso em suas Novas notas sobre Edgar Poe:
Genus irritabile
vatum! Que os poetas […] sejam uma raça irritável, isso é bem sabido; mas o
porquê não me parece tão geralmente compreendido. […] Os poetas nunca veem a
injustiça onde ela não existe, mas com muita frequência onde olhos não poéticos
de modo algum a veem. Assim, a famosa irritabilidade poética não tem relação
com o temperamento, entendido no sentido vulgar, mas com uma clarividência além
do comum relativa ao falso e ao injusto. Essa clarividência nada mais é do que
um corolário da percepção viva do verdadeiro, da justiça, da proporção, em uma
palavra do belo. Mas há uma coisa bem clara, o homem que não é (para o juízo
comum) irritabilis não é de modo algum poeta.
Decerto seria
preciso comparar, e até opor, essa ira do respeito, essa poesia da
consideração, quase jurídica, à poesia da “compaixão” reclamada por Yves
Bonnefoy: compaixão pelos mortais, cuja finitude é preciso amar uma vez que
todos compartilhamos dela; compaixão pelos lugares que a bela meditação de L’Arrière-pays
[Interior do país] lança; compaixão pelo vivo em sua grandeza e generalidade:
“Não é que eu tenha antipatia pelo conceito, mas eu diria que o que reclamo da
poesia é antes compaixão”. A compaixão é uma piedade cristã pela própria
vida, por sua vulnerabilidade. Ela é bela e forte. Mas não é dela que
precisamos para perceber a igualdade das vidas na distribuição desigual da
precariedade. A consideração, por sua vez, é mais política, mais social, menos “humanitária”,
se quisermos.
Exigir a
consideração (até na emoção de piedade, aliás) é pedir que se escrutem os
estados de realidade e as ideias que eles enunciam, é pedir ao mesmo tempo que
se digam as coisas com justeza e que elas sejam tratadas com justiça,
mantendo-as acima de tudo no âmbito de seus direitos. Sim, exigir a
consideração como tarefa política e jurídica, pois apenas aqueles cujas vidas
“não são ‘consideradas’ como sujeitas ao luto e, portanto, dota das de valor
estão destinados a carregar o fardo da fome, do subemprego, da incapacitação
legal e da exposição diferencial à violência e à morte”, como diz Judith Butler
em Ce qui fait une vie [O que faz uma vida].
A consideração
reclama antes de tudo o direito das vidas, menos seu reconhecimento do que sua
reconhecibilidade (jurídica, política); por consequência, a vigilância, e
quando for preciso a guarda, a vigília intensa, até mesmo a espionagem (speculari:
espionar). Foi o que animou o trabalho de investigação concebido por Charles Heller
e Lorenzo Pezzani, “Forensic Oceanography”, em que eles se transformaram em
vigias das embarcações e das vidas perdidas no Mediterrâneo, defensores de seus
direitos e consequentemente vigilantes dos vigilantes. Esses geógrafos se
debruçaram sobre o caso de um barco abandonado à morte, the left-to-die boat,
uma embarcação de migrantes que em 2011 ficou à deriva durante catorze dias
numa zona vigiada pela Otan, enviou múltiplos sinais, foi várias vezes
identificada, recebeu a visita de um helicóptero e cruzou a trajetória de um
navio militar, mas jamais foi socorrida, e na qual 73 migrantes morreram, num
eclipse silencioso das jurisdições e numa fragmentação dos espaços de controle,
à margem aparente de toda responsabilidade. Ignoradas, essas vidas deixaram, contudo,
rastros na água, até mesmo os de seus apelos de desamparo, e se decifrarmos atentamente
esses rastros poderemos transformar o próprio mar “numa testemunha suscetível
de ser interrogada”.
Siderar/considerar,
portanto, como um batimento, uma respiração que conjuga a ira e a atenção, o
ser afetado e o escrúpulo. Ou, como diz ainda melhor Georges Didi-Huberman
diante das situações de violência e de precariedade: “Exercer duas vezes a
paciência, uma vez para o pathos e outra para o conhecimento”
⁂
SIDERAR, CONSIDERAR
migrantes, formas de vida
Bazardo Tempo, 2018
Marielle Macé Nascida na França em 1973, é pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e professora de Literatura na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) e na New York University (NYU). É autora de diversos livros – dentre os quais Le temps de l’essai (Belin,2006), Façons de lire, manières d’être (Gallimard, 2011) e Styles: Critique de nos formes de vie (Gallimard, 2016). Faz parte do comitê de redação de revistas importantes como Critique e Po&sie. Siderar, considerar: migrantes, formas de vida (Verdier, 2017) é seu primeiro título em língua portuguesa. Em 2023 publicou (também pela Bazar do Tempo) Nossas Cabanas: lugares de luta, ideias para vida em comum.
※ ※
* Marcelo
Jacques de Moraes é professor titular de literatura francesa na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, tradutor e pesquisador do CNPQ. Dirige a
Editora UFRJ desde outubro de 2019. É autor de A incerteza das formas. O fracasso do poema. Língua contra língua. Sobre a forma,
o poema e a tradução. Todos publicados pela 7Letras.
[1] Alusão à La rage de l’expression, título de um livro de
Francis Ponge, referido entre nós com mais frequência por “A raiva da
expressão”. Mas rage remete também, em francês – e a autora explorará esse
sentido em mais de uma ocasião ao longo do livro –, a uma necessidade ou a um
desejo obstinado, daí a opção por “furor”. “Margens do Loire” é uma
espécie de prefácio ao livro.
[2] Tradução de Júlio Castañon
Rodrigues. Revista USP, mar. abr. maio 1989, p. 74. Disponível em:
<www.revistas.usp.br/revusp/article/download/25443/27188>.
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