R
É mais que tempo de voltar ao sol
O fogo do seu álcool purifica o ar
Bebemo-lo em longos tragos para esquecer aquela
Que veio na noite rasgar o coração
Dizer adeus com a mão infantil,
Uma candeia às vezes no ar
Que sopra como não querendo
Mas sem se demorar mais
Nem que a vejamos desaparecer.
●
É ela ainda sorrindo de pé
Por entre os ásteres e as rosas
Na plena luz da sua graça
Orgulhosa como sempre foi
Só se deixa ver em sonhos
Demasiado bela para adormecer a dor
Com tantos falsos regressos
Que atestam a sua ausência.
●
Que importa se o sono nos engana
É preciso queimar os olhos,
Aguentar este doce sofrimento,
Abalar, perder a razão,
Destruir o que viria a destruir
A aparição maravilhosa
Acolhida como quem treme
À vista de um rosto apanhado na morte
No último brilho da sua flor.
●
Que só dormimos para vê-la
Quando por vergonha, com medo das nossas lágrimas
De dia só sonhamos em fugir lá para fora
Sem deixar de espreitar também ali o seu regresso
E é em busca de um mau refúgio
Embrutecer sob o sol que queima.
●
Reencarnar em sonhos a forma abolida,
Atribuir à miragem as virtudes de um milagre
Será isto vencer a morte?
Quando muito duvidar de que ela nos separa,
De que seja um facto o facto de não estar em parte alguma.
●
Quebra irreparável. Dela tomemos nota.
Eis-nos desolados ao longo da vida,
A nossa memória aberta como um ferimento,
É nela que a veremos ainda,
Mas cativa da sua imagem, mas reclusa
Nesta obscuridade devoradora
Onde, para ligar o seu infortúnio ao nosso,
Sonhavamos ir perder-nos juntos
De amarras todas cortadas, e talvez alegres
Fora a soleira menos difícil de transpor,
Ser um só com ela na morte
Escolhida como a forma perfeita do silêncio.
●
A unir-se ao nada, o nada gera nada.
Se é preciso viver desperto para as coisas vivas,
Antes temer que a mágoa se apague
Assim como a memória enfraquece por fim
Deixar de sofrer por deixar de vê-la
Vir ter conosco na noite favorável aos encontros
Seria como deixar o coração empobrecer
Por duas vezes devastado e deserto.
●
Que se aplica aos melhores como aos piores,
Mesmo que a aplicação se faça lenta,
Deve inclinar à paz os nossos espíritos
Cuidadosos em resolver-se sem perder direitos,
Sendo qualquer queixa ato de contrição
Para os traficantes que especulam sobre o medo
Do qual dirão que foi uma graça do céu
Ó impostura dos tiranos da infância!
Nenhum desafio, mas que um porte altivo lhes estrague
No momento de abordar a prova suprema
As manhas com que querem dispor do nosso fim.
●
Um velho ator já sem crédito. É esta a lei,
Tens de te submeter, dizer adeus ao que deixas,
Penetrar com passo firme nessa espessura obscura
Para onde é coisa estranha o ter de voltar.
Não te insurjas, não te aflijas com a tua sorte,
Não tremas de angústia perante o limiar
Que estás em vias de tão mal transpor,
Aproxima-te do não ser sem compaixão para contigo
E como homem de boa fé, saúda-a esta vida
Que perdes com a sua carga de penas e desejos,
O cenário demasiado belo para o pouco tempo que ali se representa
A esbracejar em cima do palco, a esbanjar palavras inúteis
Tal e qual um cabotino a quem o cair do pano cala o bico.
●
Aqui o atrativo e o pavor vão de mãos dadas.
Como por causa do seu igual poder
Nenhum dos dois supera o outro,
A não ser que vejamos claro até ao desenlace
Saberemos nós quem ganha no final?
De um inimigo que finge querer curar e nos mata.
O lobo encolhido na parte mais estreita do covil,
Velho lobo, enquanto tem forças para se defender,
Avança e recua mostrando os dentes.
Que perder o desejo de desejar o que passa?
Para quê tanta pressa em desprender-se,
Fechar os olhos aos bens oferecidos e visíveis,
A tudo o que a alegria do sol deita
Sobre o mar, as folhas, um resto desconhecido
Que se cruza no fervor do seu tempo jovem?
É como dar-se por vencido antes da partida
Em vez de jogar abertamente cartas na mesa
********
Sobre os poemas de Louis-René des Forêts
Por Maurice Blanchot
Contentar-me-ei (palavra desde já inadmissível pelo que sugere de satisfação) com procurar ouvir de perto o texto de Lyotard intitulado «O sobrevivente», e ao mesmo tempo ir meditando sobre os poemas publicados e assinados por Louis-René des Forêts.
Onde fica o começo? Será alguém ou algo que começa?
Temos a resposta de Hegel: a morte é a vida do espírito. «O espírito não sobrevive à morte, ele é o render[1] da vida imediata…o espírito vive enquanto morto para a instância que ele mesmo FOI… A formação anterior já não está viva.» Donde resulta, e é muito importante, que: «A entidade que fui já não pode dizer eu». «Eu» já só pode dizer-se ENTÃO, na terceira pessoa. É assim que Hegel chega a «nós» (nós, quer dizer eu então e eu agora). Desta feita, nada se perde. A morte é sempre uma bela morte, pois que «retida» neste «nós» que formam em conjunto o eu então e o eu agora.
Mas será que verdadeiramente nada se perdeu? O que necessariamente se perdeu foi a presença «viva» ENTÃO do que AGORA é. A contingência está perdida, e podemos duvidar da presença do «então». E o próprio tempo, que se reduz ao render de um modo por outro modo, está perdido. Certamente que o voo da coruja significa um começo que garante a sobrevivência do todo, a transmissão do todo, excepto o «vivo» e aquilo que foi então presença tornada ausência ou que sempre foi ausência. Não podemos escapar à tristeza da coruja, tristeza que o próprio Hegel foi o primeiro a sentir e da qual fez o seu luto. Mas será possível o luto? Por culpa ou graças a Hegel, pressentimos que aquilo que no presente parece tão vivo precisou necessariamente do já morto. A isto chama Lyotard melancolia e outros chamam «niilismo».
Mas se o começo não é o fim, se pensamos o nascimento como uma morte, e a morte como um nascimento sem «verdade», porque razão há um duplo não-ser? Porque não-ser como nascimento e não-ser como morte?
É um enigma, e o enigma do começo revela que HÁ uma relação com o que não tem relação. Nascimento que não é só melancolia, mas infinitamente mais doloroso do que a morte.
***
estes fragmentos estão entre os mais belos que já li não só nos últimos anos, mas na vida. parabéns por nos proporcionarem!
ResponderExcluirque maravilha de postagem - não conhecia. muito obrigada!
ResponderExcluirVeja que coincidência, estou justamente lendo uma voz vinda de outro lugar, do Blanchot. E estava curioso para conhecer poemas como este que vc postou. Abço.
ResponderExcluirO bom dos "fragmentos" é que ainda ficam nacos pra se recolher, coisa de memória mesmo, ou sonho. Estes são belos e cheios de imagens sonoras. Valeu!!
ResponderExcluir"Diga a você mesmo que, das duas pontas do caminho,
ResponderExcluirA dor de nascer é a mais diilacerante
E que ela dura e se opõe ao medo que temos de morrer.
Diga a você mesmo que não cessamos de nasccer
Mas que os mortos param de morrer”
L,-.R. des Forêtes, Poemes de Samuel Wood, op. cit.,apud M. Blanchot, Une voix venue dáilleurs, op. Cit., p,30, op.cit. Ouaknin, Marc-Alain, Biblioterapia : São Paulo, Edições Loyola, 1996.