7/11/2024

POESIA E IRA | Marielle Macé

 




 

Tradução: Marcelo Jacques de Moraes*

 

 

Pode-se tomar a consideração – essa percepção que é também um cuidado, esse olhar que é também um respeito – como uma virtude de poeta.

Francis Ponge, por exemplo, exigia que se tivesse “respeito” pela realidade, até na maneira que se tem de mantê-la sob os olhos e falar dela; era isso que convocava nele o furor da expressão [1]. Em “Margens do Loire”, ele inventava algo como um direito do real, um direito do real diante do qual nós, falantes, não teríamos senão deveres, e que poderia até apelar e apresentar queixa contra nós quando justamente nos atabalhoássemos ao considerá-lo e qualificá-lo.

Reconhecer o maior direito do objeto, seu direito imprescritível, oponível a qualquer poema… Já que em relação a nenhum poema jamais deixa de haver apelação a mínima por parte do objeto, assim como não deixa de haver acusação de fraude. O objeto é sempre mais importante, mais interessante, mais capaz (cheio de direitos [2] 

Furor da expressão, furor pela expressão: ira contra todos os atabalhoamentos e desatenções de toda espécie, sobretudo ao tomar a palavra; não apenas a ira, portanto, mas o espaço particular em que a ira se articularia a certa intensidade de atenção, uma vigilância quase procedural quanto às formas tão múltiplas da vida e às verdadeiras ideias que nelas se engajam: uma ira tomada de justeza, uma ira poética, um pensamento de poema.

Bourdieu, outro homem de iras, não se enganara ao honrar no esforço poético de Ponge o próprio modelo da operação sociológica, aquela que consiste em “reivindicar” o real, isto é, em enfrentá-lo, em vê-lo tal como é, em compreendê-lo sem com isso apreciá-lo ou justificá-lo; em outros termos, em tomar o partido do real e conformar-se com ele. Bourdieu voltou diversas vezes a Ponge para explicitar sua atitude em relação à realidade social, em entrevistas e na obra inabitualmente militante que foi A miséria do mundo.

Eis o furor da expressão: esse nó de esforços em que a teimosia da palavra e a teimosia do real em ser o que é, em ser “tal qual”, como teria dito Valéry (nem mais indizível, justificável ou amável do que isso), se substituem incessantemente uma à outra. E isso vale muito bem a liberação de uma ira contra todas as maneiras, inclusive as doutas e virtuosas, de ser desatento.

Belas iras estas que têm por único inimigo o desatento: aquele que não vê a diferença, aquele que não vê o problema, aquele para quem “isso não é nada”; belas iras estas em que o que está ferido em mim (em que o que fere o “coração de rei” que cada um porta em si, e que Sêneca via apertar-se nos irados) é essa exigência de atenção, de vigilância, isto é, de justeza e justiça; pois a ira é esse momento em que o que é tido como pouco, negligenciado, pilhado é justamente aquilo a que me apego, ela chega até mesmo a me dizer (às vezes é uma surpresa) aquilo a que me apego, aquilo pelo que estou disposto, ou disposta, a me comprometer, a entrar na arena dos conflitos, das incertezas e das justificações.

Belas iras estas que podem então tentar dizer-se também na paciência e na dúvida: iras críticas e calmas, iras irreconhecíveis (é o caso de Michaux, furioso como poucos, em Postes angulares: “O sábio transforma sua ira de tal maneira que ninguém a reconhece. Mas ele, sendo sábio, a reconhece… às vezes”.)

Não apenas “a ira” resoluta, mas nem toda ira, não qualquer uma; pois “a ira” não é um valor, a ira não é em si um bem, ela é essa emoção que revela os valores e os bens que nos dividem, os objetos necessários de nossos conflitos: diga-me o que causa sua fúria, eu direi em que você acredita, o que importa para você (e talvez, justamente, não para mim), a que você se apega ou quer se apegar, o que você precisa proteger para preservar seu amor pela vida, dê-me suas razões e seus motivos para viver, diga-me onde está seu bem, e tentemos talvez julgar, mudar tudo isso, duvidar… (uma vez que é preciso também, como propunha Baudelaire a si mesmo, “datar sua ira”).

Pois uma ira em poesia (a de Ponge, mas também as de Baudelaire, Hugo, Pasolini, Sebald, Glissant, Deguy, Koltès…) se ergue sempre diante dos mesmos culpados: a indiferença, o ter-por-pouco, por conseguinte a violência e a dominação (sim, a dominação, todas as dominações, as que justamente aumentam de modo bastante concreto a precariedade). Poeta é aquele que vai mal ali onde o mundo vai mal. Baudelaire lembrava isso em suas Novas notas sobre Edgar Poe:

Genus irritabile vatum! Que os poetas […] sejam uma raça irritável, isso é bem sabido; mas o porquê não me parece tão geralmente compreendido. […] Os poetas nunca veem a injustiça onde ela não existe, mas com muita frequência onde olhos não poéticos de modo algum a veem. Assim, a famosa irritabilidade poética não tem relação com o temperamento, entendido no sentido vulgar, mas com uma clarividência além do comum relativa ao falso e ao injusto. Essa clarividência nada mais é do que um corolário da percepção viva do verdadeiro, da justiça, da proporção, em uma palavra do belo. Mas há uma coisa bem clara, o homem que não é (para o juízo comum) irritabilis não é de modo algum poeta.

Decerto seria preciso comparar, e até opor, essa ira do respeito, essa poesia da consideração, quase jurídica, à poesia da “compaixão” reclamada por Yves Bonnefoy: compaixão pelos mortais, cuja finitude é preciso amar uma vez que todos compartilhamos dela; compaixão pelos lugares que a bela meditação de L’Arrière-pays [Interior do país] lança; compaixão pelo vivo em sua grandeza e generalidade: “Não é que eu tenha antipatia pelo conceito, mas eu diria que o que reclamo da poesia é antes compaixão”. A compaixão é uma piedade cristã pela própria vida, por sua vulnerabilidade. Ela é bela e forte. Mas não é dela que precisamos para perceber a igualdade das vidas na distribuição desigual da precariedade. A consideração, por sua vez, é mais política, mais social, menos “humanitária”, se quisermos.

Exigir a consideração (até na emoção de piedade, aliás) é pedir que se escrutem os estados de realidade e as ideias que eles enunciam, é pedir ao mesmo tempo que se digam as coisas com justeza e que elas sejam tratadas com justiça, mantendo-as acima de tudo no âmbito de seus direitos. Sim, exigir a consideração como tarefa política e jurídica, pois apenas aqueles cujas vidas “não são ‘consideradas’ como sujeitas ao luto e, portanto, dota das de valor estão destinados a carregar o fardo da fome, do subemprego, da incapacitação legal e da exposição diferencial à violência e à morte”, como diz Judith Butler em Ce qui fait une vie [O que faz uma vida].

A consideração reclama antes de tudo o direito das vidas, menos seu reconhecimento do que sua reconhecibilidade (jurídica, política); por consequência, a vigilância, e quando for preciso a guarda, a vigília intensa, até mesmo a espionagem (speculari: espionar). Foi o que animou o trabalho de investigação concebido por Charles Heller e Lorenzo Pezzani, “Forensic Oceanography”, em que eles se transformaram em vigias das embarcações e das vidas perdidas no Mediterrâneo, defensores de seus direitos e consequentemente vigilantes dos vigilantes. Esses geógrafos se debruçaram sobre o caso de um barco abandonado à morte, the left-to-die boat, uma embarcação de migrantes que em 2011 ficou à deriva durante catorze dias numa zona vigiada pela Otan, enviou múltiplos sinais, foi várias vezes identificada, recebeu a visita de um helicóptero e cruzou a trajetória de um navio militar, mas jamais foi socorrida, e na qual 73 migrantes morreram, num eclipse silencioso das jurisdições e numa fragmentação dos espaços de controle, à margem aparente de toda responsabilidade. Ignoradas, essas vidas deixaram, contudo, rastros na água, até mesmo os de seus apelos de desamparo, e se decifrarmos atentamente esses rastros poderemos transformar o próprio mar “numa testemunha suscetível de ser interrogada”.

Siderar/considerar, portanto, como um batimento, uma respiração que conjuga a ira e a atenção, o ser afetado e o escrúpulo. Ou, como diz ainda melhor Georges Didi-Huberman diante das situações de violência e de precariedade: “Exercer duas vezes a paciência, uma vez para o pathos e outra para o conhecimento”

                                                                  


 

 e x t r a í d o  d e

SIDERAR, CONSIDERAR

migrantes, formas de vida

 Bazardo Tempo, 2018


 

Marielle Macé Nascida na França em 1973, é pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e professora de Literatura na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) e na New York University (NYU). É autora de diversos livros – dentre os quais Le temps de l’essai (Belin,2006), Façons de lire, manières d’être  (Gallimard, 2011) e Styles: Critique de nos formes de vie  (Gallimard, 2016). Faz parte do comitê de redação de revistas importantes como Critique  e Po&sie. Siderar, considerar: migrantes, formas de vida (Verdier, 2017) é seu primeiro título em língua portuguesa. Em 2023 publicou (também pela Bazar do Tempo) Nossas Cabanas: lugares de luta, ideias para vida em comum. 


※  


* Marcelo Jacques de Moraes é professor titular de literatura francesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tradutor e pesquisador do CNPQ. Dirige a Editora UFRJ desde outubro de 2019. É autor de A incerteza das formasO fracasso do poema. Língua contra língua. Sobre a forma, o poema e a tradução. Todos publicados pela 7Letras.



 

 

 

 



[1] Alusão à La rage de l’expression, título de um livro de Francis Ponge, referido entre nós com mais frequência por “A raiva da expressão”. Mas rage remete também, em francês – e a autora explorará esse sentido em mais de uma ocasião ao longo do livro –, a uma necessidade ou a um desejo obstinado, daí a opção por “furor”. “Margens do Loire” é uma espécie de prefácio ao livro.

[2]  Tradução de Júlio Castañon Rodrigues. Revista USP, mar. abr. maio 1989, p. 74. Disponível em: <www.revistas.usp.br/revusp/article/download/25443/27188>.












1/29/2024

OS ANOS 1930 ESTÃO DIANTE DE NÓS | Giorgio Agamben

 


                                                                Gérard Granel




Os anos 1930 estão diante de nós


Giorgio Agamben

Tradução: Claudio Oliveira

 


Em novembro de 1990, Gérard Granel, uma das mentes mais lúcidas da filosofia europeia daqueles anos, realizou uma conferência na New School for Social Research, em Nova Iorque, cujo título, certamente significativo, não deixou de provocar algumas reacções escandalizadas entre os bem-pensantes: os anos trinta estão diante de nós. Se a análise feita por Granel era genuinamente filosófica, as suas implicações políticas eram de fato imediatamente perceptíveis, pois em questão, no sintagma cronológico aparentemente anódino, estavam pura e simplesmente o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha e o estalinismo na União Soviética, ou seja, as três tentativas políticas radicais de «destruir e substituir por uma nova ordem aquela em que a Europa até então se reconhecia». Granel conseguiu mostrar como a classe intelectual e política europeia tinha sido tão cega frente a essa tripla novidade como o foi – na década de 1990 como hoje – frente ao seu inquietante, mesmo se alterado, ressurgimento. É difícil acreditar que Leon Blum, líder dos socialistas franceses, pudesse declarar, comentando as eleições alemãs de julho de 1932, que, diante dos representantes da velha Alemanha, «Hitler é o símbolo do espírito de mudança, renovação e revolução» e que, portanto, a vitória de von Schleicher lhe teria parecido «ainda mais desoladora que a de Hitler». E como julgar a sensibilidade política de Georges Bataille e André Breton, que, face aos protestos contra a ocupação alemã da Renânia, puderam escrever sem vergonha: «em qualquer caso, preferimos a brutalidade anti-diplomática de Hitler, mais pacífica, na verdade, do que a excitação decrépita de diplomatas e políticos.” A tese deste ensaio, cuja leitura recomendo fortemente, é que o que define o processo histórico em curso, nos anos 1930 assim como nos anos 1990 em que escrevia, é a mesma primazia do infinito sobre o finito, que, em nome de um desenvolvimento que se pretende absolutamente ilimitado, procura abolir em todos os âmbitos - econômico, científico, cultural - as barreiras éticas, políticas e religiosas que o tinham até então de alguma forma contido. (continua nos comentários) E, ao mesmo tempo, também através dos exemplos do fascismo, do nazismo e do estalinismo, Granel mostrou como um processo semelhante de infinitização e mobilização total de todos os aspectos da vida social só pode levar à autodestruição.

Sem entrar no mérito desta análise certamente persuasiva, interessa-me aqui sublinhar as analogias com a situação que estamos atravessando. Com a diferença, talvez, de que os sinais de cegueira, de ausência de pensamento e de uma provável e iminente autodestruição, que Granel evocava, se multiplicaram vertiginosamente. Tudo faz pensar que estamos entrando - pelo menos nas sociedades pós-industriais do Ocidente - na fase extrema de um processo cujo fim não pode ser previsto com certeza, mas cujas consequências, se a consciência dos limites não despertar novamente, poderão ser catastróficas. Que os anos 30 do século XX ainda estejam diante de nós não significa que vejamos os acontecimentos aberrantes em questão ocorrerem hoje exatamente da mesma forma; antes, significa o que Bordiga pretendia expressar ao escrever, após o fim da Segunda Guerra Mundial, que os vencedores seriam os executores testamentários dos vencidos. Os governos em todo o mundo, independentemente da sua cor e posição, atuam como executores de um mesmo testamento, aceito sem benefício de inventário.  Por todos os lados vemos continuar cegamente o mesmo processo ilimitado de incremento produtivo e desenvolvimento tecnológico que Granel denunciava, no qual a vida humana, reduzida à sua base biológica, parece renunciar a qualquer outra inspiração que não seja a vida nua e se mostra disposta a sacrificar-se sem reservas, como vimos nos últimos três anos, a sua própria existência política.

15 de janeiro, 2024

 

Publicado em:

https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-gli-anni-trenta-sono-davanti-a-noi

 


1/26/2024

Colóquio «Dário Azevedo: uma poética da amizade»

  


 


 

PELA AMIZADE

Nilson Oliveira

 

 

Uma vida repleta de encontros, essa foi a aventura de Dário Azevedo no transcurso de uma experiência, entre aulas, pensamentos, situações de uma vida intelectual, com os olhos acesos às erosões e também aos ruídos do presente, sempre num contrafluxo, com a singularidade e a elegância que lhe foi própria. Dário transitou pela sociologia e pela psicanálise, foi leitor de Foucault, fez canções, escreveu poemas, ensaios, dirigiu (com Denys Costa & Raoni Figueredo) um filme sobre «sujeitos homoafetivos velhos».

As movimentações em torno deste colóquio anseiam uma homenagem a Dário Azevedo, prof. da UFPA, que nos deixou em 2021, vítima da Covid-19.

Desse modo, durante essas conversações, evocaremos o seu lastro a fim de evidenciar, no contemporâneo, uma presença que foi (e permanece sendo) sobretudo fluxo e suavidade. Trata-se de uma confluência de afetos, com base em elaborações diversas, na direção da amizade, cujo motivo principal é a ideia de encontrar e pensar com Dário. Convergência de pensamentos e experimentações a partir de movimentações distintas, numa polissemia de vozes, em philia, ecoando pelo seu horizonte no mais suave avizinhamento.

 

 

 

C O L Ó Q U I O

«DÁRIO AZEVEDO:

UMA POÉTICA

DA AMIZADE»


De 01 a 02 de dezembro de 2023

Local: IPHAN / Belém (PA).

Av. José Malcher,  474. 

Informações: revista.polichinello@gmail.com

 

 

P R O G R A M A Ç Ã O

 

01 DE DEZEMBRO 2023

 

17h. Exibição do filme:

"Velhos Sujeitos Outros Transgressivos"

Direção: Dário Azevedo, Denys Costa, Raoni Figueredo.

 

18h30. Abertura: Nilson Oliveira (Revista Polichinello)

"Pela amizade"

 

19h. Henry Burnett (Unifesp)

"Antes o Riso"

 

19h30. Josi Maués (Ufpa)

Apresentação ...

 

20h. Claudia Gomes (Ufpa),

Ana Lúcia Dias (Ufpa)

Márcia Lopes (Ifpa)

"Entre Salvamento e Estado de Bonequice"

 

20h30. Caio Tobit (Músico & Compositor)

"Aquário" (vídeo)

"Carta ao Pai" (vídeo)

 

 

02 DE DEZEMBRO 2023

 

17h. Flávio Valentin (Seduc)

"O Sócrates Negro"

 

18h. André de Aquino (Unicamp)

"De uma Certa Possibilidade Impossível

de Dizer a Amizade"


19h. Sérgio Bandeira (Ufpa)

"Retalhos de Escrituras,

Memórias e Afetos"

 

19h30. Carlos Paixão (Ufpa)

"Esboço de Vida"

 

 

 

 


3/09/2023

SER ANARQUISTA | Catherine Malabou

 




A filosofa francesa CATHERINE MALABOU analisa porque importantes filósofos do século XX desenvolveram conceitos de anarquia, essenciais para entender a situação contemporânea do pensamento em questões éticas e políticas, sem nunca se reconhecerem como anarquistas? Como se o anarquismo fosse algo inconfessável, que deveria ser escondido ainda que lhe seja roubado o essencial: a crítica da dominação e a lógica da governabilidade.

Através da interpretação crítica de Levinas, Derrida, Foucault, Agamben e Rancière, Malabou traz à tona os elementos de um pensamento do ingovernável, que vai muito além de um apelo à desobediência ou de uma crítica consensual ao capitalismo. 




"Eu sou um anarquista." Para os filósofos, essa proposição sempre parece ser impossível. Você não pode ser um anarquista. O fenômeno da anarquia do ser, no momento da decadência dos princípios, manifesta sua irredutibilidade a qualquer determinação ôntica: o ser não é mais tal e tal e, portanto, não pode mais cumprir seu papel de agente de transmissão predicativa. Schurmann).

Você não pode ser um anarquista . A anarquia é na verdade mais original que a ontologia, ela supera a própria diferença ontológica (Levinas). Seu “dizer” ultrapassa seu “dito”, ultrapassa infinitamente a forma proposicional, assumindo a responsabilidade da obrigação para além da essência.

Você não pode ser um anarquista. Assim que se associam anarquia e poder - " poder ser anarquista" - reconhece-se de uma forma ou de outra que o anarquismo participa da pulsão de dominação (Derrida).

Você não pode ser um anarquista. Não é o predicado "anarquista" que transforma o sujeito e o anarquiza determinando-o. Não. O sujeito deve primeiro elaborar sua própria dimensão anárquica, preparar sua própria transformabilidade, constituir-se como sujeito anárquico antes de "ser" e pregá-lo (Foucault).

Você não pode ser um anarquista . Este termo é um significante tão inflado pelo vazio de seu próprio significado que se tornou um fetiche, sagrado, um prelúdio para uma nova idolatria (Agamben).

Você não pode ser um anarquista. A negatividade na política, a estrutura do descontentamento original e do descontentamento, não pode ser consertada. Sua expressão é estranha, intermitente, eclipsada. Ele joga, mas não se considera (Rancière).

 

*

 

"Eu sou um anarquista." Cada termo dessa proposição se oporia aos demais com um obstáculo intransponível, como se ecoasse o caráter politicamente insustentável do anarquismo.

 

*

 

No entanto, ao insistir na impossibilidade de "ser anarquista", a filosofia deixou de lado sua crítica à dominação. Isso ocorre apesar do fato de que constantemente questiona sua própria posição como discurso dominante. Derrida, em particular, mostrou que a filosofia tradicional européia se permitiu "falar de tudo", 4 embora um certo "não-saber", que não é ignorância, mas uma recusa em ver, acompanhasse esse excesso de poder. «Parece que o filósofo se autoriza a falar de tudo com base no "não quero saber"». 5

O problema é que os conceitos filosóficos de anarquia, desenvolvidos em grande parte para denunciar esse "não querer saber", participaram da própria recusa de ver. Se permitiram desestabilizar a solidez do paradigma árquico (que se centra num arché ) da metafísica ocidental, não obstante irromperam no discurso como construções ex nihilo , sem passado, silenciosas quanto ao roubo de que provêm . Ao dissociar anarquia e anarquismo, a crítica filosófica da dominação involuntariamente abriu espaço para uma cumplicidade entre conceituação e repressão, desmonte da metafísica e colonialismo, ética e defesa do Estado, diferença e dominação, parrhesia .e governo (de si), "politicidade" e repressão semântica, política e policial... Essa cumplicidade revelava ao mesmo tempo o alcance do servilismo filosófico à lógica do governo.

Pensar filosoficamente a anarquia tem consistido em grande parte em subverter a legitimidade do anarquismo, em subverter a subversão do poder em um gesto que nunca foi notado ou, portanto, analisado por si mesmo. Um gesto ao mesmo tempo hegemônico e submisso, que permanecerá impensável enquanto a anarquia como conceito não enfrentar a radicalidade anarquista do que não (é) governado.

Obviamente, a desconstrução da metafísica não foi suficiente para desmantelar o paradigma árquico, nem o mandato ético, a crítica da subjetividade, a desconstituição do sagrado ou do irrepresentável. O facto de os movimentos radicais, sobretudo os movimentos pós-anarquistas, se afirmarem agora inspirados nas grandes figuras do pós-estruturalismo não pode mascarar por completo a ausência, neles, de um compromisso político que não contemporize ou de qualquer forma comprometa com o preconceito. governamental.

A razão é que, ao contrário de todas as expectativas, a filosofia não tomou a medida do significado ontológico – isto é, precisamente filosófico – do anarquismo. Ao declarar que só a anarquia poderia e deveria se tornar o fio condutor de questionamento desconstrutivo da ontologia de Ariana, portanto ainda no sentido de questionamento ontológico; rejeitando o anarquismo fora do círculo desse questionamento; ao detectar na teia dos acontecimentos teóricos e políticos da segunda metade do século XX o advento de uma anarquia ontológica, uma anarquia ética, uma anarquia crítica, uma anarquia teológica, uma anarquia democrática, à custa de cortar qualquer vínculo real com anarquismo; insistindo mais uma vez na impossibilidade de ser anarquista,

A questão do ser se perdeu, pois o anarquismo é seu sentido. Se a questão do ser tem mesmo um sentido, confunde-se com o ingovernável, com a radical estranheza à dominação. Ser não dá a mínima para o poder . O anarquista é ele.

É verdade que Schürmann pressentiu isso com espantosa acuidade, pois chegou a afirmar que a questão do ser encontrava seu futuro transfigurador na anarquia, lugar de expressão —a tatuagem— de sua indiferença ao poder. No entanto, ao construir um muro entre anarquia e anarquismo, refugiando-se na diferença ontológica – como se isso fosse uma espécie de garantia suficiente contra o substancialismo – ele não poderia dar peso suficiente à necessidade que afirmava de repensar a prática. Sua problemática de "atuar" permaneceu subdesenvolvida. Pensar em ser anarquista, e não apenas (ou talvez nem mesmo) anárquico, implica a invenção de uma palavra militante, não apenas meditativa, uma palavra militante-meditativa, que abre seu compromisso horizontal alternativo de agir filosoficamente.

 

*

 

Os filósofos da anarquia certamente têm suas desculpas. É preciso dizer que as tentativas de pensar o ser e a política juntos foram todas catastróficas até agora. Do "comunismo" de Platão ao totalitarismo matemático de um certo maoísmo, passando pela noite heideggeriana, a elaboração de vínculos entre ontologia e política, autorizada pela bricolagem original do arché, que, como vimos, estende seu reinado a ambos os campos, só deu origem a becos sem saída assustadores. Sem dúvida, esta é a razão pela qual os filósofos da anarquia quiseram marcar uma clara dissociação entre o «ia» e o «ismo» e cuidaram para não precipitar o conteúdo ontológico da anarquia numa possível obra de «colocar em jogo». ', preferindo, como Agamben, a impotência a uma pragmática forçada, potencialmente ainda mais sectária e dominadora do que todo 'viés governamental'. Preconceitos que não desapareceram todos, Rancière não se engana nesse ponto, do anarquismo histórico.

Por que arriscar outra perda? Não seria melhor, infinitamente melhor, fazer um corte entre ser e anarquismo, parar de ontologizar a política e politizar a ontologia, desconstruir o paradigma árquico sem transformá-lo em paradigma anarquista, e assim respeitar a diversidade das lutas contra a dominação, abstendo-se de unificá-los? (e, portanto, unificar a própria dominação) em uma aventura do destino? Não seria melhor, ao mesmo tempo, como sugere Schürmann, por outro lado, deixar de lado a questão do ser por si mesmo, que parece ter desaparecido totalmente da cena filosófica desde o banimento de Heidegger, como se essa questão tivesse exclusivamente dele e teria desaparecido com ele? Como se a anarquia filosófica não fosse apenas luto, mas também anistia?

 

*

 

Mas como podemos pensar seriamente que podemos acabar com o ser? Como podemos pensar que a vida - o modo de vida - de alguma forma o substituiu ? Que o único anarquismo politicamente correto, ético, elegível, apresentável e representável é, para resumir, o modo de vida, o estilo de vida ou a vida tranquila do que resta da democracia nas democracias parlamentares?

No momento, deve-se notar que o anarquismo, por sua vez, não respondeu a esse adoçamento ontológico e prático de si mesmo. Não o suficiente, pelo menos. O anarquismo é, obviamente, também um arquipélago filosófico, e afirmar o contrário, evitar qualquer elucidação propriamente conceitual, é justamente uma rejeição da responsabilidade. «Em grande medida», escreve Vivien García, «as teorias anarquistas desenvolveram-se fora da filosofia», uma vez que esta «não é mais do que a evasão do anarquismo». 6 Isso é verdade, como vimos. Mas devemos responder a essa evasão com outra evasão? O anarquismo pode evitar explicar sua dimensão ontológica?

"A anarquia não é um conceito metafísico, mas empírico e concreto", 7 diz Daniel Colson. Tudo bem, mas o que pode significar "um conceito empírico concreto" sem contradição? Bakunin havia empreendido a resolução do oxímoro ao propor definir o anarquismo como uma “verdadeira força plástica”, 8 em que “nenhuma função petrifica, fixa e permanece irremediavelmente ligada a uma pessoa; hierarquia e promoção não existem, então o comandante de ontem pode se tornar um subordinado hoje; ninguém sobe, ou se sobe, é para cair um instante depois, como as ondas do mar. 9Devemos continuar a análise nessa direção e afirmar que “sou anarquista” não é mais uma questão de lógica. O sujeito, a cópula e o predicado aqui perdem imediatamente sua função. Se a lógica predicativa, sua vertente, a brecha governamental pode desaparecer do "eu sou anarquista", é porque o anarquismo do ser isenta o anarquista de ter que se tornar sujeito de sua anarquia. Sendo a única forma política que, por não depender de nenhum começo ou de nenhum comando, tem sempre que se inventar, se dar forma antes de existir, o anarquismo nunca é o que é. É nisso que está. Essa plasticidade é o próprio sentido de seu ser, o próprio sentido de sua pergunta. Se não vemos isso, ou se passamos por cima desse sentido muito rapidamente, Corremos o risco de reduzir essa plasticidade ao seu mais simples aparato "empírico e concreto" e de não mais podermos distingui-la de um mero discurso de venda, de um sintoma do anarquismo de fato e de seu poder cibernético. Tudo é plástico, vá em frente.

 

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Se uma leitura intransigente das relíquias do preconceito governamental na filosofia contemporânea me permitiu circunscrever, em negativo, o espaço do ingovernável, fazendo ressoar algumas de suas vozes abafadas —a do colonizado, do escravo ou da testemunha —, Em troca, essa exploração testemunhal me levou a fazer ao anarquismo uma questão para a qual ele ainda não deu uma resposta satisfatória: precisamente, a da interpretação de sua ontologia plástica. É esta tarefa que você deve enfrentar.

 

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A crítica ao anarquismo tradicional é baseada, como dissemos, em dois argumentos contraditórios: uma confiança benevolente na natureza humana; uma lógica de violência e morte. Pensando bem, no entanto, esses dois argumentos não são específicos e poderiam facilmente ser direcionados a qualquer movimento político radical, seja anarquismo ou comunismo. Fazer do anarquismo o sintoma exclusivo desse monstro de duas cabeças, irênico-letal, é livrar-se do problema muito rapidamente. É muito mais importante determinar como o anarquismo pode implantar, de uma forma que só lhe cabe, uma estratégia de saída dessa dupla armadilha.

O sentido de ser anarquista, sua indiferença ao poder, foi equiparado muito rapidamente, por falta de questionamento suficiente, com virgindade, inocência, ausência de corrupção. “O anarquismo tem um ponto de partida lógico, não contaminado pelo poder, a partir do qual o poder pode ser criticado”, diz Saul Newman, por exemplo. 10 Mas se não se der ao trabalho de mostrar que o ingovernável não se confunde de forma alguma com uma origem intocada e intocável, os filósofos sempre terão razão em suspeitar, por trás da plasticidade do ser anarquista, o persistente pressuposto de uma incorruptibilidade e adesão a uma metafísica do incólume. Eles sempre estarão certos em ver o anarquismo como uma ontologia arcaica.

O sentido de ser anarquista —sua indiferença ao poder— também foi entendido, ao contrário, como uma licença terrorista, uma «poética da bomba» 11 ou o que Mallarmé descreveu como a fúria dos « dispositivos cuja explosão ilumina os discursos com brilho sumário , mas também paralisa os espectadores com muita pena. 12 Também neste caso, se não nos dermos ao trabalho de mostrar que o ingovernável não é o ancestral da violência, os filósofos sempre terão razão em denunciar uma profunda cumplicidade entre o anarquismo e a pulsão de morte.

 

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A proposta da psicanalista Nathalie Zaltzman —em seu texto “A pulsão anarquista”, já mencionado—, situada a meio caminho entre o tratado de ontologia e o manifesto revolucionário, permite vislumbrar a origem comum dessas duas armadilhas.

A violência, antes de tudo. Obviamente, existe uma relação muito estreita entre anarquia, anarquismo e morte, tecida pelos fios da bandeira negra. O problema é que se a sujeição, o Bemächtigungstrieb , com todas as suas variantes destrutivas, é de fato um fruto da pulsão de morte, a luta contra a dominação e a sujeição necessariamente empresta sua energia também dessa pulsão. A luta contra a dominação pressupõe a dissolução de suas fixações nodulares. Mas Zaltzman afirma que, se há um desengajamento destrutivo, dominante e agressivo, há também um desengajamento "libertário", que precisamente se desprende — desengaja — do primeiro. 13Há a pulsão de morte e a pulsão de morte, por isso o psicanalista fala de pulsão de morte no plural. O anarquismo "extrai sua força da pulsão de morte e volta sua destruição contra ela". 14 Curiosamente, esse virar da destruição contra si mesma não é uma construção dialética, mas a expressão da indiferença. 15 Uma indiferença inconsciente contrária ao amor compulsivo pelo poder, que muitas vezes se refugia atrás do amor à humanidade. Para Zaltzman, «todo vínculo libidinal, por mais respeitoso que seja, implica um objetivo de posse, de anulação da alteridade. O objetivo de Eros é a anexação, até mesmo o direito do outro viver, por sua própria vontade. 16

Por isso, «a revolta contra a pressão da civilização, a destruição de uma organização social existente, opressiva e injusta, pode inscrever-se sob a bandeira do amor à humanidade, mas não é desse amor ideológico que tiram a sua força. É da atividade desvinculadora de uma pulsão de morte libertadora». 17 A pulsão anarquista opõe o muro de sua impassibilidade às petrificações narcísicas e suas encarnações autoritárias.

Assim, assim como Eros nem sempre está a serviço da vida — Zaltzman denuncia, como vimos, as tendências unificadoras do "amor ideológico" —, Tânatos nem sempre está a serviço da morte. A tendência libertária conhece "um destino mental diferente de uma inclinação direta para a morte". 18 Um destino "não mortal". 19

Se há no anarquismo uma tendência a desfazer o que Eros liga excessivamente, então a pulsão anarquista é em certo sentido "anti-social", se por "social" entendemos a comunidade fusional. A pulsão anarquista, justamente na medida em que desfaz essa fusão e impede qualquer ideia de uma natureza humana unificada, proporciona outra abertura para a alteridade.

"Ser anarquista" implica, antes de tudo, uma experiência de desapego como desancoração, que permite uma resistência absoluta à arché domestiké , ou seja, antes de tudo, à domesticação .

Comemorando a memória dos geógrafos anarquistas, Zaltzman cita Elisée Reclus, que escreveu da Louisiana para seu irmão Elie: "Preciso passar fome um pouco, dormir com gelo e vender meu relógio (lembrança de amizade eterna) por um pedaço de bugiganga. macaco". vinte

Ao mesmo tempo, evoca The Last Kings of Thule , o livro de Jean Malaurie sobre os Inuit. 21 Vivem em «paisagens hiperbóreas feitas de gelo e rocha, com um solo sempre congelado, nunca a ternura da terra esfarelada ou da chuva quente, uma neve sempre soprada pelos ventos e que deixa cumes e fendas nuas, estas paisagens minerais, austeras e áridas que são constantemente cruéis à vida humana. 22 No entanto, “nada obriga esses nômades a viver na orla do Ártico. Eles poderiam, como os lapões, um dos povos do Ártico, outrora caçadores como eles, sofrer mutação deixando o mar congelado para a criação de renas domesticadas. 23Mas os Inuit não querem a domesticação. Eles não querem domar as renas mais do que querem domar a si mesmos. A sua liberdade tem este preço, o preço de uma luta de morte contra a morte: contra a dependência, a vassalagem, a domesticação, contra "qualquer relação fixa com uma identidade unificadora". 24

 

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Então, a suposta bondade e ingenuidade do anarquismo desta vez? O ingovernável – esse lugar sem lugar onde a pulsão de morte se volta contra si, a rocha gelada dos pólos, o caminho solitário e desancorado dos geógrafos, o maquis dos resistentes – é assimilável, em sua “associabilidade”? », para uma origem intocada pelo poder, para uma ilha protegida? O desengajamento implica um retorno a um estado anterior às hegemonias? Para uma infância?

Freud caracteriza o desengajamento tanatológico como um retorno, um retorno ao estado inorgânico. Mas o que é esse retorno senão literalmente um retorno ao nada ? O "ali" ao qual se retorna não existe. O prelúdio para o começo não existe . O prelúdio do comando não existe . Não há nenhum estado do estado inorgânico.

O anarquismo sempre pressupõe um olhar retrospectivo. E o desmantelamento do paradigma árquico, do qual tentei traçar aqui algumas de suas muitas ramificações, é acima de tudo um "retorno a". A questão do futuro do futuro não pode deixar de ser levantada. A busca do que precede o começo é inevitável. No entanto, essa retrospecção "não engendra um retorno a um estado anterior à evolução, mas a um estado posterior, anteriormente inexistente". 25 O retorno de antes do archéinventa aquilo para o qual (um) retorna. O impulso anarquista é uma energia regressiva incorporada em uma dinâmica futura. É o afastamento que faz existir o não-lugar, e não o contrário. Voltar é inventar. Não encontrar nada onde você volta, não levar nada com você onde você vai. Esse nada ao qual o futuro retorna antes de ser projetado é outra coisa senão uma ilha virgem ou um refúgio de paz, já que não é nada.

O ingovernável revela-se assim a posteriori , como a contraprova desse nada que é a impossibilidade de todo governo. "Ser anarquista", como disse Proudhon, é um neologismo para sempre.

 

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Um dos principais desafios filosóficos atuais é acabar com a luta entre o ser e a vida, o que ao mesmo tempo nos obriga a repensar a pulsão de morte. Seja pela aliança heideggeriana entre o ser e a morte selada pelo privilégio concedido à existência sobre a vida, seja pela súbita revalorização da vida que Heidegger acredita ter acabado por substituir modos de vida (mal) precários pelos existenciais, seja, pelo contrário, uma suposta ancestralidade do ser, seu ser fóssil, nem vivo nem morto, desumanizado e desrelacionado, sempre mais antigo e mais real que a vida... todas essas versões já não estão à altura da urgência.

O ponto sensível das relações entre o ser, a vida e a morte, grita todos os dias o seu nome: ecologia. Quem presta atenção hoje ao fato de que a palavra "ecologia" também vem de oikos , a casa, e ao mesmo tempo designa algo completamente diferente, exatamente o oposto, a economia? E mais especificamente, a economia doméstica? Quem atenta para o fato de que a "ecologia" é um "discurso do lar" em luta, justamente, contra a domesticação? A Terra é um habitat sem domesticidade, sem mestre ou centro, absolutamente ingovernável e ainda devastado por problemas de poder.

Muitos acusaram o anarquismo tradicional de ser vitalismo ou biologismo. Uma acusação absurda. A questão de ser anarquista é a questão da vida como sobrevivência. No entanto, a sobrevivência na Terra, que está inscrita na memória biológica dos indivíduos, é política desde o início. Na solidão dos imensos espaços siberianos onde brilha o pálido sol de inverno, Kropotkin, vendo que os animais se ajudam, conclui que a ajuda mútua retira a seleção natural de seu estatuto de princípio. A ajuda mútua, um excelente exemplo da pulsão de morte voltando-se contra si mesma, é a resposta social da natureza.

 

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O anarquismo, tão diverso, tão difícil de reduzir a uma autoridade, a começar pela sua própria, é a constelação teórica e prática privilegiada de uma situação em que o ingovernável testemunha por toda a parte em linguagens alheias à linguagem dos princípios. Em toda parte, povos e indivíduos expressam seu cansaço, seu esgotamento, sua raiva pela devastação ecológica e social do mundo por governos que os privam de ajuda. Mas eles também estão dizendo, sem nenhuma contradição, seu cansaço, seu esgotamento, sua raiva pela falta de regulamentação governamental efetiva da selva uberizada na qual eles precisam navegar sozinhos para tentar encontrar ajuda.

Muitos teóricos e ativistas políticos agora propõem "soluções" para esse cansaço, exaustão e raiva. Achei mais útil tentar expor o problema. Ao vincular os resquícios do domínio branco e masculino na filosofia à negação roubada do anarquismo, não pretendo devolver ao anarquismo o que os filósofos roubaram dele. De fato, é impossível devolver a peça quebrada para colá-la em uma origem improvável. Obviamente, minha abordagem não foi guiada por nenhum instinto de propriedade. Em todo caso, o anarquismo não suportaria ser devolvido a si mesmo: seu passado só existe no futuro. Não. O problema que levantei é o seguinte: se, desde Proudhon, a questão anarquista é mesmo poder pensar a política sem o auxílio da hegemonia, sob qualquer forma, 26Trata-se também hoje de saber como fazê-lo quando um certo anarquismo se tornou ele próprio hegemônico.

 

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Você acredita nisso? Os anarquistas agora estão às vezes em cargos no governo. A ministra digital de Taiwan, a primeira ministra transgênero da história, gênio cibernético, desenvolvedora de software de código aberto, Audrey Tang se define abertamente como uma "anarquista conservadora". 27 Esse pleonasmo não deve ser enganoso. Com esta fórmula, Tang quer trabalhar para preservar a utopia anarquista vivida pelos programadores da Net nos últimos vinte anos, que sugerem substituir a clássica tomada de decisão política pela democracia participativa virtual. 28

A história começa na primavera de 2014, quando estourou o Movimento Girassol, do qual Audrey Tang fazia parte. Jovens militantes, a maioria estudantes, ocuparam o parlamento de Taiwan para protestar contra um novo pacto comercial com Pequim. Eles fundaram o gOv (pronuncia-se "gov-zero"), um coletivo de hackers cívicos .

Logo após o Movimento Girassol, a ex-Ministra de Assuntos Digitais Jaclyn Tsai está procurando maneiras de reavivar a confiança entre os cidadãos e o governo. No decorrer de sua pesquisa, ele participou de um dos "hackathons" do g0v e rapidamente elaborou um plano colaborativo, propondo o lançamento de uma plataforma cidadã neutra e nomeando Audrey Tang como seu braço direito. Por sua vez, este último tornou-se ministro em 2016.

A estratégia de Tang é usar ferramentas de código aberto para "redesenhar de forma independente os processos e serviços existentes do governo e permitir que os cidadãos vejam como o estado funciona", 29 ou seja, expor as informações do governo ao público em geral . Em “Hacking the Pandemic”, 30 ele afirma:

 

Simplesmente mudar o "o" para zero na barra do navegador leva você a um site governamental "paralelo" que pode funcionar melhor, onde existem alternativas viáveis. Como parte da iniciativa g0v, existem atualmente cerca de 9.000 cidadãos-hackers participando do que chamamos de "bifurcação" do governo. Na cultura de código aberto, "bifurcar" significa pegar algo que já existe e levá-lo em uma direção diferente. Os cidadãos aceitam a vigilância digital, mas o Estado também aceita a transparência, abrindo seus dados e seu código, e incorporando as críticas que necessariamente surgirão. 31

 

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Audrey Tang: um sinal de dominação ou emancipação? Fortalecendo ou derrotando a lógica do governo? “Hackers cívicos”, diz ela, “muitas vezes produzem empregos que ameaçam as estruturas institucionais existentes. Em Taiwan, as instituições sempre adotaram a abordagem “não podemos vencê-los, então temos que nos juntar a eles”, o que é raro nas jurisdições asiáticas. Em última análise, é por isso que fico em Taiwan." 32

Unir-se com as instituições para melhor subvertê-los. Muitos responderão: palavras de quem domina. E ainda... A China se exaspera perigosamente com a audácia dessa palavra, que ameaça sua onipotência e preocupa, justamente, sua hegemonia.

 

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Como se orientar, mais uma vez, nesta nova geografia, cujo traçado não só obscurece a clara distinção entre anarquismo de facto e anarquismo que desperta, mas também revela a topografia rizomática e contrastada do próprio ciberanarquismo? Como orientar-se na indiferença ontológica das diferenças?

 

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Quando se torna tão urgente como é difícil ver e tornar visíveis essas diferenças, distinguir entre horizontalidade e desregulamentação, libertação e uberização, ecologia e economia... o seu lugar, embora chame cada vez mais a porta das consciências, do inconsciente e dos corpos... É neste momento que compreendemos que estas próprias dúvidas já são caminhos para outras formas de partilhar, agir e pensar. Ser anarquista.

 

Não há mais nada a esperar de cima.



3 ““Fork” é um termo icônico na comunidade de código aberto. Refere-se ao ato de criar um novo projeto a partir do código de outro projeto, ou seja, "bifurcar" esse projeto para criar um novo. Veja a explicação no final desta conclusão: Audrey Tang, "Fork the Government" (2 de fevereiro), La 27e région , publicado em 16 de março de 2016 por Magali Marlin.

4 Jacques Derrida, «Privilégio. Titre justificatif et Remarques introductivos”, in id ., Du droit à la philosophie , Paris, Galilée, 1990, p. 99.

Ibid ., p. 100.

6 Citado por V. García, em L'Anarchisme aujourd'hui , Paris, L'Harmattan, 2007, p. 18.

Ibid ., p. 110.

Ibid ., p. 87 e 194. Citado de Mikhail Bakounine, L'Empire knouto-germanique et la révolution sociale , OEuvres , t. II, 52, edição online.

9 Ver também Sébastien Faure: «Devido à sua plasticidade e ao livre jogo de todos os elementos —individuais ou colectivos— que reúne, tal organização deixa a cada um destes elementos a totalidade das forças que lhe são próprias, enquanto por em virtude da associação destas forças, ela própria atinge a sua vitalidade máxima», L'Encyclopédie anarchiste , edição online.

10 Citado por V. García em L'Anarchisme aujourd'hui , op . cit ., pág. 47. De Saul Newman, De Bakunin a Lacan. Anti-autoritarismo e o deslocamento do poder , Nova York: Lexington Books, 2001, p. 5.

11 Uri Eisenzweig, Fictions de l'anarchisme , Paris, Christian Bourgois, 2001, p. 161.

12 Stéphane Mallarmé, La Musique et les Lettres , citado por Julia Kristeva em La Révolution du langage poétique, L'avant-garde à la fin du XIX e siècle: Lautréamont et Mallarmé , no capítulo «L'anarchisme politique ou autre», Paris, Seuil, "Points Essais", 1974, p. 434.

13 N. Zaltzman, «La pulsion anarchiste», op . cit ., pág. 56. Também notamos a publicação das atas da conferência por Jean-François Chantaretto e Georges Gaillard (dir.), Psychanalyse et culture. L'oeuvre de Nathalie Zaltzman , Paris, Ithaque, «Les Colloques de Cerisy», 2020.

14 Ibid ., p. 57.

15 Ver minha própria análise da pulsão de morte em Les Nouveaux Blessés. De Freud à la neurologie, penser les traumas contemporains , Paris, PUF, «Quadrige», 2017, pp. 295-313.

16 N. Zaltzman, «La pulsion anarchiste», op . cit ., pág. 54.

17 id .

18 Ibid ., pág. cinquenta.

19 Ibid ., p. 53.

20 Élisée Reclus, "À Élie Reclus", sem data, no campo perto de New Orleans, em É. Reclus, Correspondência , edição online.

21 Jean Malaurie, Les Derniers Rois de Thule , Paris, Plon, "Terre humaine", 1955.

22 N. Zaltzman, «La pulsion anarchiste», op . cit ., pág. 63.

23 id .

24 Ibid ., p. 53.

25 N. Zaltzman, L'Esprit du mal , Paris, L'Olivier, «Penser/Rêver», 2007, p. vinte.

26 O uso do conceito de hegemonia é curiosamente comum entre a maioria dos filósofos da democracia radical, como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, cuja principal obra se intitula Hégémonie et stratégie socialiste. Vers une radicalization de la démocratie , trad. Julien Abriel, Paris, Fayard, «Pluriel», 2019, 1ª ed. fr. 2009.

27 Isso fica claro em seu perfil na plataforma Medium.com, onde publica regularmente artigos-manifesto.

28 Em uma de suas palestras no TED intitulada “How the Internet will (one day) transform Government”, o pesquisador americano Clay Shirky explica o que “o mundo da programação de código aberto pode ensinar a democracia”, TEDGlobal, 25 de setembro de 2012.

29 “Pouvoir de reprogrammation: Audrey Tang apóia a cultura dos hackers à l'État”, Apolitical, 18 de outubro de 2018, edição online.

30 Entrevista com Catherine Hébert, Blog «Hinnovic», Montreal, 6 de maio de 1921. Entrevista disponível no YouTube.

31 id .

32 Baptiste Condominas, “Taiwan: g0v, les hackers qui veulent changer la démocratie”, Radio France International, 2 de dezembro de 2016.