5/20/2013

Jean-Luc Nancy │ Philippe Lacoue-Labarthe: núpcias do pensamento.



Philippe Lacoue-Labarthe

Jean-Luc Nancy




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Cada vez mais com ele. Seduzido por sua irresistível maneira de embaralhar as coisas dadas – sempre em fuga da banalidade – na direção do outro do mundo. Jean-Luc Nancy: uma vivência fértil de estrangereidades – desdobrada em vários perceptos e afectos: esfera errante do pensamento. Nancy: vontade de vontade  irrevogavelmente escafandrista, estrangeiro, intruso.


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Há por certo uma elegância no pensamento, situação limite, adjeção entre literatura, filosofia [e algo mais]. Pensamento a deriva [barco ébrio], na direção do fundo mais fundo do horizonte. Philippe Lacoue-Labarthe: da sua escrita espira um aroma absolutamente próprio, depurado pelo aberto, ou melhor, refinado pelas forças que jogam entre as ondas e o vento. Lacoue: núpcias do pensamento.

Nilson Oliveira



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FILOSOFIA, LITERATURA: DEMANDA

JEAN-LUC NANCY


Cada uma pede a verdade. Cada uma pede também a verdade da outra, de duas maneiras: cada uma interroga a outra sobre a sua verdade, cada uma detém a verdade da outra.


A verdade: a coisa mesma, o ser ou o outro, o existente, o aparecer, o sentido. Cada uma pede tudo isso junto: pede que tudo isso seja apresentado como tal.



Mas cada uma entende diferentemente esse « como tal ». Filosofia quer que a coisa como coisa seja coisa que por si se indique, se designe e ao mesmo tempo retire seu ser-coisa aquém de toda significação. Também a coisa como tal é aqui coisa alguma: coisa da coisidade de todas as coisas, nada. Do mesmo modo o sentido como tal é o sentido que se faz conhecer enquanto sentido – por exemplo, não uma impressão luminosa, mas uma impressão tal que ela se clareie a si mesma como « impressão luminosa ». E, por esse ato, ela se obscurece. Não estamos mais ocupados em ver, mas em ver a visão. O sentido em geral será sentido verdadeiro lá onde ele poderá mostrar que ele é o sentido, e assim cessar de reenviar a outro, outros: o que, no entanto, é o seu ser mesmo de sentido. Também a verdade é aqui interrupção do sentido.



Literatura entende « como tal » enquanto comparação, figura, imagem, volta de apresentação. Por exemplo: vejamos um homem como « Leopold Bloom ». Ele é igual a esse homem, é composto por seus traços. E, antes de tudo, por seu nome. Depois por sua história, pois não há nome sem história. Então Leopold Bloom mostra o homem como tal, quer dizer, como Leopold Bloom, quer dizer, como o homem que tem um nome e uma história, a sua história. Nessa conta, a operação não pode parar: a verdade do homem está em Bloom, cuja verdade está no homem cuja verdade está no nome e na história de Bloom. Aqui a verdade é a impossibilidade de interromper o sentido.



No entanto, é o inverso que vemos da maneira mais chocante: Filosofia não termina de prosseguir, continuar, retomar, tirar as consequências; não pode jamais parar (mesmo e, sobretudo, quando é « o fim da filosofia »). Literatura, ao contrário, interrompe: corta o relato [récit] em alguma parte, sempre arbitrariamente, seja no início ou no fim.



Filosofia pede incessantemente que a verdade se cumpra. Literatura pede que a verdade prossiga. Mas cada uma pede a outra, pois o cumprimento da primeira seria o relato [récit] integral da segunda e o prosseguimento infinito da segunda seria o cumprimento da primeira.


Se isso tem lugar, não há mais pedido. Então não se fala de literatura e de filosofia: fala-se de sabedoria e de mito. É um outro mundo, um mundo ao inverso do mundo do pedido de verdade.

Sabedoria cumpre dizendo – por exemplo, dizendo « faça isto, não faça isso ». E para isso ela afirma e ordena, não pede nada. Nem mesmo ser reconhecida como sábia, pois ela também diz « não creia que a Sabedoria seja sábia: cabe a você sê-lo ».

Mito dá o relato [récit] inteiro, desde o início até a mim (por exemplo, Mr. Bloom). Ao mesmo tempo não há nada a acrescentar, nem no antes nem no depois, e o relato [récit] é interminável pois ele não cessa de se recitar [réciter]. Nada a pedir aí também.

Filosofia e Literatura são Sabedoria e Mitos entrados em pedido. Portanto, tendo-se eles mesmos se perdido um e o outro ou então perdido um ao outro. Uma perda – ou então um desdobramento.

Sabedoria desdobra até o fim a sua verdade segundo a qual não há de modo algum nem sabedoria nem via. Ela inaugura a via que não leva a lugar nenhum, mas que sempre se pede novamente como via: « método ».

Mito desdobra até o fim o interminável de seu relato [récit] e sua verdade segundo a qual, bem longe de se terminar na interminável recitação, ele se intermina na terminação de cada relato [récit]. Uma vez contada, a história de Ulisses se abre novamente pelo seu fim. Haverá novas errâncias.

Errância e método, método de errância, errância metódica, via que não é traçada, mas que é o traço ele mesmo de um passo em movimento de avançar, em movimento de passar, apenas em movimento de despertar para si mesmo a possibilidade de uma direção, de um destino, de um desejo.

Apenas fazendo conhecer seu desejo, que ele mesmo se inventa a cada passo, sendo, no entanto, apenas o desejo do passo ele mesmo. 

Pedido de passagem: eu gostaria de ir por aí, em direção àquilo que está do outro lado daquele onde me encontro. Gostaria de sair daqui e que lá longe se tornasse aqui para mim, de onde eu ainda partiria. Gostaria de passar o rio, a montanha, o mar. Gostaria de passar a mim mesmo. Gostaria de me passar sem mim.

Peço isso polidamente, sem violência, mas não se enganem com isso: « eu gostaria » significa « eu quero », é a vontade mesma. É vontade de vontade: pedido de eternidade, eterno retorno do mesmo passo cujo rastro fugaz é a atestação disto: que há lá alguém que passa.

Pedimos apenas isso. Esqueçamos « filosofia, literatura, mito, sabedoria », esqueçamos saberes e crenças. Há apenas esse pedido: eu quero passar. Não quero ser, nem conhecer, mas passar e me sentir passar. Ou você – é igual.  

Passar – o limite, forçosamente. Passar o limite do interrompido e do ininterrupto. Nem acabamento, nem inacabamento. Nem conclusão, nem suspensão. Mas a passagem que se pede.



P. S.: Preciso deixar aqui todo o meu reconhecimento a Ginette Michaud, que assegurou o estabelecimento dos textos franceses e a composição mesma do volume com um cuidado incomparável.









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