5/19/2011

VIDA E ESCRITA EMERGEM INSEPARÁVEIS: sobre Naufrágios de Giselda Leirner





              

Por José M. Neistein

O ciclo de Lieder de Schubert "Viagem de Inverno" começa com os seguintes versos de Wilhelm Müller: "Aqui vim como um estranho/Como estranho parto". Samuel Beckett era um grande admirador desse ciclo, cujo profundo conteúdo existencial o influenciou grandemente, como ele declarou em várias ocasiões. A dolorosa experiência de não pertencer, de ser um corpo estranho dentro da transitoriedade da vida terrestre é a divisa de sua obra. Beckett, por sua vez,, é uma influência marcante na escrita de Giselda Leirner . Como em Beckett, os personagens de sua ficção, além de viverem alienados no mundo e na sociedade, e disso terem lúcida consciência, são também estranhos a si mesmos, não cabem dentro de suas peles, têm imensa dificuldade de se comunicarem com os seus semelhantes, e uma dificuldade ainda maior de conviverem consigo mesmos. A memória, instrumento-chave que eles usam para reconstituirem suas histórias pessoais, é também o instrumento que os dilacera.

Nesta coletânea de contos, todos eles são fragmentos de vida, episódicos ou memoriais, todos eles escritos na primeira pessoa. Narradora e protagonistas muitas vezes se fundem, se confundem. Ficção e realidade são inextricáveis. Enquanto a ficção se alimenta da vida, a vida emerge como ficção. E o que é que torna possível para o leitor - e para a própria Autora - esse fluxo e refluxo? A escrita. A escrita literária. É graças a ela que a narradora nos fala dos destinos de suas criaturas. E a nossa empatia com as criaturas só é possível pelo testemunho escrito da criadora. Da criadora nos vem a perspectiva das criaturas. O sopro de vida que alimenta as criaturas vem da criadora. Mais ainda: a criadora se desdobra nas criaturas, e, não raro, criaturas e criadora são uma só e única entidade.

O ponto de partida na moldagem dos personagens é a própria Autora, ou seres reais a ela relacionados ao longo de sua vida, parentes, amigos, conhecidos, rostos individuais de acontecimentos que cruzaram sua trajetória, amores e desamores, tudo tranfigurado pela imaginação, tudo metamorfoseado pela arte. Nesse complexo contexto, alguns temas se sobressaem. São eles episódios de dimensões existenciais, tomados de empréstimo da história da família na Polônia e no Brasil, da vida judaica na Europa oriental, antes, durante e depois do Holocausto, e dessa mesma vida transplantada para o bairro do Bom Retiro em São Paulo, nas décadas de 1930, 40 e 50, resposta brasileira ao Lower East Side de Nova
York, para onde convergiram imigrantes foragidos, primeiro, dos pogroms, depois, do Holocausto, e naquele bairro viveram e sofreram as humilhações da abjeta pobreza que  muitas vezes já conheciam de antes, de seu desenraizamento, de sua rejeição. É um mundo de ontem que a Autora conhece bem, e que ela sabe usar como limite extremo da experiência da consciência e da alienação, e, portanto, como metáfora da própria dor de existir. Mas há personagens afluentes também, cujas fortunas não os isentam das angústias do estranhamento e da alienação.

Já se disse muitas vezes, e de muitas formas, que toda literatura de ficção válida é autobiográfica, qualquer que seja o gênero. O caso em pauta se insere nesse rol. Ele é o produto de uma maturidade atingida pela vivência e pela reflexão. É o produto de uma escrita que nos fala de pertp pela postura franca e honesta de alguém que sabe que os segredos de toda uma vida não valem a pena serem guardados para a eternidade. Sabe que seu destino petence à memória coletiva, e sabe que é a escrita literária que lhe dá a necessária abrangência e amplidão, dignas de serem partilhadas. Nela, pudor e despudor, sexo, amor  morte, amalgamados, não são valores morais ou imorais: são categorias neutras, parte integrante de um desejo de comunicação e conscientização incoporados à vida e ao seu sentido, ou à sua aparente falta de sentido.

A narrativa, entrecortada de digressões, reflexões e diálogos, é direta, coloquial, e fala ao leitor sem intermediários, com a intimidade tácita de quem não tem nada a esconder, nem sequer os segredos de sua própria escrita, que precisa de cúmplices. Nós somos os cúmplices, e experienciamos essa carga. Embora a ação dos contos se desenrole no nível secular, há, contudo, em suas escavações geológicas mais profundas, camadas de inquietação e aspirações religiosas, espirituais, justiceiras, um espírito de Jó que desafia a existência de Deus e de sua possível relação com os anseios humanos. Vários personagens indagam, buscam, e geralmente não encontram Deus. Sofrem tanto que não se lembram de procurá-Lo dentro de si mesmos. O desejo ardente de encontrar um mínimo de certeza dentro das muitas incertezas, atravessa o livro todo, como uma lança arremessada com toda força.

A grande diversidade de perdonagens que transitam em seus contos é vista pelo leitor, e pela própria Autora, em duas grandes categorias: aqueles que escrevem e aqueles que não escrevem. Os que não escrevem, levam vidas imediatas, geralmente vividas mas não refletidas. Os que escrevem, levam vidas mediadas, para falar com Hegel. Vivem suas vidas, suas angústias, seus impasses, e os plasmam em suas escritas, resultados de suas reflexões e da consciência de suas consciências. Os que escrevem também lêm. Lêm a Bíblia Hebraica, os clássicos gregos, os místicos medievais, os novelistas ingleses, franceses e russos, Nietzsche, William Burroughs e mais, e mais. Essa combinação aprofunda o sentido de suas relações com pais, avós, filhos, irmãos, cônjuges, amantes, amigos, inimigos, estranhos. E consigo mesmos, principalmente. A escrita duplica a vida e a sustenta. Vida e escrita emergem inseparáveis.

A agilidade dos diálogos vem da experiência que a Autora teve com o teatro, num dado momento de sua vida. A expressiva dimensão das indagações existenciais provém de sua vasta experiência com a filosofia, a teologia e a literatura, do passado e do presente. Seu léxico é variado, rico e accessível a todos os níveis de leitores e de leituras. Sua sintaxe é fortemente calcada no português culto, urbano, da cidade de São Paulo, e isto quer também dizer que ele tem italianismos e europeismos de várias fontes e de várias culturas, que dão à sua linguagem um distanciamento das fontes castiças, e uma aproximação aos modos de expressão - porque não dizer? -cosmopolitas. Giselda Leirner faz uma literatura escrita em português, mas que também transpira climas conceituais e emocionais de outras culturas, além da brasileira, da paulistana, tanto pela perspicácia da arguta observação de largas estruturas e miúdos pormenores reveladores, como por suas aguçadas antenas apátridas e universais. Não residirá aí o insubstituível tesouro da solidão, em sua roupagem e em sua nudez tão pessoais?

José M. Neistein
                                                                                         Washington, D.C. 
                                                                                         maio de 2011

 "Naufrágios", contos, Giselda Leirner , Editora 34, São Paulo, 2011, 133 pp

                                                                                        



2 comentários:

  1. Queridos amigos Da Polichinelo: não podia deixar de dizer que vir e ler aqui nos leva ao encanto de desnudar na obra focada um universo desejante que nos atraie encanta...
    Abraços com carinho, jorge Bichuetti

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  2. Adorei a resenha e não conheço ainda os contos de Giselda, mas agora, depois de ler o texto, me parece urgente fazê-lo.
    Nilson, você escolhe muito bem as postagens!!!!! Sempre saio daqui mais vasta do que entrei.

    um beijo

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