12/05/2011

Francesca Woodman: o corpo como vertigem






Por Nilson Oliveira

Algumas imagens chegam até nós provocando uma sensação de estranhamento. Pela força indescritível de sua presença, vão cada vez mais atraindo, arrastando e seduzindo-nos como um canto de sereias. Não há miragens, as imagens são como blocos de intensidade que se espalham em torno do espaço, fragmentando-se ao limite, subvertendo os contornos da própria identidade, evidenciando a potência de uma imagem que sempre migra. Essa viagem causa incomodo. Mas sua força, seu modo de nos arrancar os olhos, consiste exatamente nesse estranhamento. A imagem mantém-se em nós por ser esse fora indescritível, pelos lances que vimos, mas não conseguimos apreender, como um vulto. É desse modo que encontramos as fotografias de Francesca Woodman, figura curiosa que, como suas imagens, seduziu sem deixar pistas. Woodman entrou para a fotografia usando o corpo como experiência, como laboratório de si. Fez uma viagem sem volta ao limiar do corpo, como se percorresse seus limites para encontrar o inevitável: seu devir-outro-fotográfico, sua imagem-vulto: trata-se de uma quase miragem, algo que atravessa o espaço intenso da vida refletindo uma outra imagem, o além de si, que vaga desfocado, entranhada entre o tempo e espaço, como se deles fizesse parte, mas sem habitar nenhum, como uma sombra que toca sensivelmente nas coisas atravessando as superfícies mais rudimentares, transitando pelas coisas, sem expressar dor, desassossego ou vontade, acompanhando o falso movimento dos olhos, como a imagem que em silêncio espreita o deserto da lente. É a dispersão do corpo, do rosto e do próprio olhar, de um corpo que jaz enterrado na fronteira entre a ausência, a aparição. Um corpo que sempre reflete à sombra de uma outra imagem, uma imagem falha, que quando mirado se dispersa entre as coisas do mundo. Não há representação do rosto nem, portanto, do olhar. Seu rosto pouco revela. A verdade de sua aparência é um enigma, um exílio. Sua substância acontece fora de si, no espaço que há entre a força que o move e o mundo que o acolhe. Sua imagem não é a revelação de uma realidade, mas de uma sombra, de algo que é inteiramente vivo e, no entanto, não orgânico. Há nas fotografias de Francesca algo que nos força a pensar, uma força nos arremessa de encontro a realidades em que muitas vozes se atravessam. Por vezes ouvimos Artaud: o pulsar o corpo sem órgãos; por vezes Bataille: a febre e a intensidade; mas por vezes, entre a sombra e a claridade, o canto silencioso de Rilke: a sombra da morte. Mas isso, esse turbilhão de coisas e vozes, nas fotografias de Francesca Woodman, só pode ser apreendido a partir de uma perspectiva da sensação, numa leitura-gozo que faz o olhar mergulhar no diverso e nele se perder. Em sua primeira característica, e sob qualquer tonalidade, essas imagens só podem ser sentidas. Não é uma estrutura, mas uma abertura, a fissura pela qual os olhares se atravessam. Ela é também, de certo modo, o incomunicável, passível, no entanto, de comunicação. Nas suas fotos, cada imagem parece perdida de uma atmosfera identitária, em cada foto é sempre outra, como se seu corpo estivesse mergulhado em um contínuo jogo de simulacros em que a origem, a verdade, a matriz há muito se apagou. Não há realidades, mas tudo é o que é: um corpo estendido no deserto de uma paisagem. O deserto é a fotografia, mas o corpo parece atravessado de sensações, de febre. Tudo parece vivo e morto, é como se a vida fosse o fora da morte, mas a morte o seu dentro, sua afirmação inevitável. Francesca transcorre pela linha que cruza de uma realidade a outra. Nas suas fotos, as linhas estão sempre se encontrando, fabricando dobras, redobras, criando um aberto de possibilidades como a força de uma máquina desejante que da sua intensidade-corpo passa para uma máquina-desejo que, no seu funcionamento, engendra uma corrente de fluxos, cortes, vultos, peles. Nas suas imagens, há sempre uma pulsação de intensidades operando no seio de um acontecimento: série diversa e não linear vazando por todas as direções. O desejo não cessa de efetuar acoplamentos de fluxos, pensamentos, volúpia, sobra, pele. O corpo de Francesca parece amarrado ao seu limite, mas dele escorre uma leveza indescritível. Sua imagem revela-se como uma quase epifania, mas nunca da ordem de um sagrado; atravessa a fotografia como o Monge Negro, rasgando a retina do jovem Kovrin, conduzindo-o ao seu limite, mas à atração também. Kovrim é atraído a ir, e vai atravessando todos os riscos que implicam esse ir: Kovrin reteve “a respiração, seu coração parou de bater e o mágico, extático transporte que há muito tempo esquecera, voltou a palpitar em seu coração”[1][1]. O susto é inevitável. Assim foi Francesca na sua experiência com a fotografia, mas, sobretudo, na sua viagem à superfície do corpo. Lembremos Valery: o mais profundo é a pele. Essa foi a sua viagem, ao profundo da superfície, às entranhas da derme. Assim vamos nós ao encontro das suas imagens, numa experiência da sensação e do ver. O susto através das retinas


* * *

Francesca Woodman nasceu em Devem, Colorado, em 1958. Começou a fotografar aos 13 anos. Seu foco de experiências era o próprio corpo. Em Janeiro de 1981 publica o livro “Disordered Interior Geometries”. Uma semana depois, atravessa a janela do seu apartamento.

Do livro A literatura e os possíveis da escrita literária – Lumme /2010



[1] TCHEKHOV, Anton. O Monge Negro. Rio de Janeiro: Rocco, 1985, p. 97.


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