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Marie-Claire Ropars-Wuilleumier |
Em tempos de boas conversas sobre Cinema & Literatura em Belém, traço um pequeno gesto na direção de um Godard literário, numa maneira de pensar a imagem e a escrita, sobretudo de “manter a conversa aberta”.
Trata-se da publicação de uma entrevista com Marie-Claire Ropars-Wuilleumier (1936-2007), inventiva teórica de cinema que, entre vários deslocamentos em torno do ato de criação, pensou os laços entre Cinema e Literatura em Jean-Luc Godard.
A escrita de Marie-Claire
Ropars-Wuilleumier é povoada de encontros férteis, com André Bazin / com Maurice
Blanchot (entre outros). Encontros cuja efetuação implica num experimento que cambia entre os fluxos e os devires – o corte e o movente.
Marie-Claire Ropars-Wuilleumier,
nesta
entrevista, oferece uma vigorosa cartografia para pensarmos, avançando sempre na
direção de uma imagem que pulsa, sem cessar, entre as dobras
do Cinema e as fendas do Literário. Vale conferir.
Nilson Oliveira
Nilson Oliveira
Entrevista realizada por Mário
Alves Coutinho
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Godard |
A
Nouvelle Vague teve uma relação especial com a literatura? Que tipo de relação,
exatamente?
A Nouvelle Vague, para mim, não foi nada homogênea. Houve correntes
muito diferentes dentro da Nouvelle Vague, segundo Resnais ou Godard, por
exemplo, ou a Nouvelle Vague clássica, segundo Rohmer ou Truffaut. Desta
maneira, a relação com a literatura foi feita mais por cineastas que pelo
movimento, propriamente. Pois a Nouvelle Vague propriamente dita, se eu não me
engano, nos anos sessenta, não tinha senão uma idéia: rejeitar a relação do
cinema com a literatura, que foi determinante (nos roteiros, nos assuntos, nas
adaptações) no período dos anos trinta. Tratava-se, claramente, de romper com
esa tradição, e ao mesmo tempo, de romper com a literatura. Nesse momento, a
relação com a literatura estava baseada em autores de cinema que buscavam na
literatura uma espécie de legitimação do seu status de autor. E isto foi
determinante para fundar essa relação. Havia pessoas, como Resnais, que se
apoiavam completamente em textos, não em adaptações, ele foi provavelmente quem
rompeu com a tradição das adaptações e que começou uma experiência, a meu ver
muito interessante, de reescritura de algumas obras pelo cinema. De
reescritura, na criação cinematográfica, de formas literárias, ou de obras
literárias que se tratava de integrar, de assimilar à linguagem
cinematográfica. Este foi o trabalho de Resnais. De Godard também.
A
senhora não acha que existe uma contradição entre esses inícios da Nouvelle
Vague, que realmente começou atacando as adaptações, mas terminou por fazer um
cinema com estreitas relações com a literatura, Godard principalmente?
Uma relação profunda com a literatura. Mas esta é uma das contradições de Godard. É uma contradição dominante na obra dele. Do meu ponto de vista, trata-se de, em todos os seus filmes, mesmo aqueles que se inspiram na comédia americana, ou no cinema “noir” americano, de pensar a relação com a literatura numa nova forma de escritura, e sem se inspirar necessariamente em adaptações de algumas obras, mas talvez de procurar uma linguagem cinematográfica que seja o equivalente literário, o equivalente cinematográfico da criação literária. Aí existe, segundo meu entendimento, uma relação paradoxal: rivalidade, mas finalmente assimilação.
Qual
é a relação, para a senhora, entre Godard, sua obra cinematográfica, e a literatura?
Existe uma relação profunda. Ainda que ele a rejeite. Ela é profunda a
partir da idéia de obra, da idéia de criação e da idéia de linguagem. Ele
pretende tê-la rejeitado, mas ele nunca o fez. Existe uma procura, através da
obra e da linguagem, de uma relação de escritura, o que é muito claro em Nouvelle
Vague.
O
fato de Godard ter escrito crítica influenciou sua obra cinematográfica? Como?
Segundo meu ponto de vista, nem um pouco. Quer dizer, de uma maneira
bastante paradoxal, pois a crítica que ele fez foi sobre o cinema americano,
fundamentalmente, o filme “noir”, uma certa tradição cinefílica. E Godard,
finalmente, não se orientou nem um pouco nesta direção, mesmo se seu primeiro
filme parece pedir algo emprestado a essa tradição. Mas ele trabalha do
interior e em termos que não tem nada a ver com esta tradição.
Trata-se talvez de uma desconstrução?
Sim. Uma desconstrução bastante sistemática, que passa, com efeito, pela reapropriação crítica. Sua relação com a literatura é profunda: a relação de Godard com Mallarmé ou com Blanchot é explícita, nas suas últimas obras em vídeo, mais especificamente. Estas são relações constitutivas, não haveria filmes de Godard se não houvesse essa relação profunda relação com a linguagem, que se transforma em escritura, particularmente no cinema. Mas eu compreendo Godard de uma maneira que não é, necessariamente, a do Cahiers du Cinéma. Quando digo isto tudo, não é do ponto de vista dos Cahiers que estou pensando. Segundo o Cahiers du Cinéma, de onde saiu Godard, é precisamente o aspecto não-literário, e puramente cinematográfico – não sei o que isto quer dizer – que os interessa. Mas acho que é justamente outra coisa que foi feita na escritura das suas obras.
Mas
a senhora não concordaria que nos Cahiers, e particularmente em Godard,
existia toda uma atenção particular ao estilo literário, quando escreviam
críticas e ensaios?
É verdade. Uma atitude de escritor acontece nesta relação com a crítica
cinematográfica. Mas se você pensa que a única razão pela qual Godard explorou
esta relação, você pensará que seria para chegar ao estatuto de autor. Penso
que isso é a verdade de toda uma geração. Isto é verdadeiro sobretudo com
relação à geração dos anos trinta, que queria, pela sua relação com a
literatura – penso num certo texto de Zola para Renoir – se transformar em
autores, por sua vez. É admirável, nos créditos de A Besta Humana, toda
uma disposição gráfica e ideográfica que faz aparecer esta relação que faz da
linguagem cinematográfica uma forma de escritura, e por isto quero dizer não
somente uma forma de linguagem integrando a linguagem lingüística, mas penso
também que esta integração lingüística – que é muito ativa em Godard – fica
dissimulada, pois ao mesmo tempo existe o mito da pureza cinematográfica, que o
Cahiers trabalhava e aqueles que saíram do Cahiers, também. Este
foi, pouco a pouco, o ponto que Godard reconheceu, esse juramento de obediência
da escritura à literatura, da escritura cinematográfica à literatura. Isto
aparece muito claramente na sua relação com Mallarmé, com Blanchot, nos seus
últimos vídeos que ele realizou sobre este assunto.
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Maurice Blanchot |
Como
a senhora vê a relação que existiria entre Blanchot e Godard?
Isso é uma outra coisa, pois Godard descobriu Blanchot muito tarde. No começo, penso que ele o ignorava. Num determinado momento – não sei porque, como e nem em qual ocasião – houve uma leitura de Blanchot por Godard (que aparece em Nouvelle Vague, me parece, ele o cita explicitamente) – e que, em todo caso, começa a se desenvolver toda uma relação com Mallarmé, toda uma relação com a criação lingüística, que se torna fundamental para o cinema de Godard. Penso neste vídeo no qual ele encena a si mesmo, no qual ele cita um texto de Mallarmé e cita Blanchot, também.
A relação de Jean-Luc Godard, e da sua obra com a literatura, é da ordem da citação, da adaptação, da pilhagem, da ironia, da imitação, da paródia, ou todas esta coisas ao mesmo tempo?
Um pouco de tudo isto, penso, mas ao mesmo tempo algo de mais radical: a assimilação, a apropriação, quase – como formular? – uma devoração, da literatura pelo cinema, o que já acontecia bem no começo e que pouco a pouco ele descobriu – como dizer – realizando, creio. Ele abandonou esta ideologia da imagem pura, que não tem nenhum sentido, aliás, ele descobriu a montagem, e a partir daí ele foi obrigado a resvalar para uma espécie de interação entre as artes, entre linguagens.
Se
dividíssemos a obra de Godard em fases, em qual fase a relação de Godard com a
literatura foi mais intensa?
Eu hesitaria entre os anos sessenta e os anos oitenta. São dois momentos diferentes. Os anos 60 são o momento onde ele reivindica especificamente o Cahiers. Ainda não existe a montagem, não existe relação a escritura, mas ele realiza seus filmes, ele começa a experimentar a escritura, sem enunciar, sem mesmo conceituá-la. E depois, nos anos 80, a partir do momento em que ele é levado a se reescrever, uma reescritura generalizada, estou pensando em Nouvelle Vague, neste gênero de reprise constantemente citacional, não das obras dos outros, mas dele próprio, neste momento ele vê a citação como uma paródia, como algo que empurra–o para uma certa experimentação lingüística e isto não é, aos meus olhos pelo menos, uma paródia. Acho que é, cada vez mais, uma relação de assimilação. O que é bastante paradoxal em relação à posição inicial de Godard, que era uma posição extremamente crítica, negativa, provocadora, em tudo o que poderia tocar a relação do cinema com a literatura. Ele esteve em Vincennes, num de meus cursos, e ele afirmava esta posição: cinema puro, imagem pura, nada mais, não aos universitários, nada de ensinamento teórico, nada de análise, somente a imagem. Muito agressivo e provocante nesta posição. Uma rejeição absoluta. Uma posição típica do maio de 68, e que não corresponde ao que ele experimentou em seguida. O que quero dizer é que da noção de reescritura, me parece, ele passou a esta discussão sobre a escritura, em particular em algumas de suas obras que ele reescreveu sem parar. Ele aceitou cada vez mais a posição de autor, a posição de escritor.
A senhora acha que existe um filme de Godard no qual esta relação com a literatura foi mais determinante?
Nouvelle Vague, provavelmente, Elogio do Amor.
Vem o momento em que ele volta para suas próprias obras, as situa numa tradição
de escritura, através do reconhecimento das citações e então descobre uma forma
toda heterogênea de cinema, que não tem nada a ver com o mito da imagem pura.
Ele foi, pouco a pouco, em direção ao reconhecimento, de algo que Resnais já fazia,
os resvalos, as citações, as interações entre diversas formas de linguagem. E
ele aceitou isto para si mesmo, o que não era absolutamente sua posição
inicial. Ele explorou, aos poucos, no interior mesmo de seus filmes, falando de
si mesmo, citando a si mesmo. Mas sem querer afirmar a teoria. Praticando-a em
suas realizações, nas suas interações, mas recusando, me parece, a teorização
do cinema como literatura. Nunca vi o reconhecimento deste fato em Godard, mas
a sua existência, sim.
A
voz própria de Godard, que recita alguns textos, este tom muitas vezes
elegíaco, tem alguma relação direta, ou indireta, com a literatura?
Como eu dizia antes, esta relação com a literatura aparece em dois momentos, na fase dos oitenta, mais fortemente. Mesmo se ela não é enunciada, conceituada, a coisa acontece mais forte, aparece então a heterogeneidade da linguagem. Ele aceita isso. Mas me parece que, no começo, ele está preso na tradição dos Cahiers, a literatura não tem nada a ver com uma teoria da imagem. Mas penso que, quanto mais ele fazia filmes, mais ele entrava, paradoxalmente, nas suas relações com a linguagem cinematográfica, a música e a literatura. Ele passa de Blanchot a Mallarmé, de Mallarmé a Blanchot, mas muito claramente ele avança dos dois lados, simultaneamente. Uma de suas experiências mais interessantes está em Histoire(s) du Cinéma, que é apaixonante. De um lado o trabalho que faz sobre a voz, mas sobretudo a justaposição e montagem de diferentes seqüências, de diferentes fragmentos de cena, que são colocados, desde o começo, sob o signo da escritura. Desde o começo ele se encena como escritor...
...teclando
a máquina de escrever...
Sim, teclando a máquina de escrever: profundamente literário. Mas na imagem. É o que o caracteriza. É sempre na imagem que esta relação com a literatura acontece. Com Resnais, é na voz off. Enquanto que em Godard, não. Em Godard, é do lado da imagem que a literatura aparece. É bastante paradoxal, mas é do lado da imagem que passa a literatura. É quase a encenação do livro. Encontramos isto em Pierrot le fou (O Demônio das Onze Horas) e Acossado. Neste último filme existem planos muito sintomáticos a propósito desta relação com os jornais que Godard coloca em cena. Belmondo que trabalha a presença ou a ausência destes jornais na sua mão. Os textos que aparecem iluminados, em noticiários. Toda sorte de avanços de Godard na integração de formas literárias, qualquer coisa que permaneceria cinematográfico, filmando formas de experimentação literária, da realização, que o fazem encontrar imagens diferentes.
A
senhora tem razão: a todo momento ele filma títulos de livro, títulos de
revistas, a frase de um livro, cartazes, personagens que escrevem alguma coisa
e ele os mostra escrevendo... Mesmo os personagens quase iletrados de Les
Carabiniers (Tempo de Guerra), ele mostra o que eles escrevem...
Godard encena a escritura, em relação à literatura, em relação ao texto,
de uma maneira que esconde o rosto. Existem planos muito sintomáticos desta
postura em Godard, onde aparecem jornais que escondem o rosto. Isto não
acontece por acaso, é uma espécie de afixação de textos contra o personagem,
contra a narração, por um lado, mas também a presença da imagem. O que é
colocado na imagem, é o texto. Isto é qualquer coisa de muito particular em
Godard, muito específico, mesmo se ele declara o contrário, mesmo se ele diz
que o que existe é a imagem. Como por acaso, é a imagem que mostra o texto.
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David Herbert Lawrence |
David Herbert
Lawrence escreveu certa vez never trust the artist, trust the tale…
Não confie senão na narração, no conto, na obra, mas, sobretudo, não no
artista...
O
que o artista diz fora da obra,tem alguma importância, mas não é o mais
importante...
O enunciado diretamente fora da obra não é definitivamente o mais
importante. Algumas vezes é um contra-senso.
Quando se fala de literatura em Godard, ele é mais sensível à poesia, à ficção, ao ensaio ou à filosofia?
Para mim, a distinção é muito difícil. Ele é sensível à ficção enquanto ela é portadora de teoria, acredito.
E
quanto à relação dele com a poesia, na sua própria obra?
Difícil de responder, pois o que existe na obra dele, o que a gente pode
aceitar, atualmente, são fragmentos de poesia, momentos poéticos. Uma coisa
muito interessante na obra de Godard: ele encena, bruscamente, uma passagem
poética, e é um personagem que se transforma em portador da palavra, portador
da poesia e portador da música. Isto acontece quase sempre em segundo grau.
Isto não é inocente. É uma espécie de inscrição, também, provavelmente, de sua
relação com a literatura, que não é simples, pois ele joga um jogo duplo. Ele
também joga um jogo duplo na maneira como ele divulga a literatura na sua
relação com o cinema. É menos reinvidicado diretamente do que em Resnais.
A
senhora escreveu: “Godard termina por destruir a narração. Sua linguagem fica
sempre em contato com poesia, pois o próprio da poesia é revelar em um instante
o absoluto e lhe dar a possessão imediata da totalidade”. É muito apropriado em
relação à obra de Godard...
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Alain Resnais |
Existe um romantismo profundo na obra de Godard. Quer dizer, no sentido
do romantismo alemão, que ele terminou por reconhecer, a meu ver. Mas esta
relação com o romantismo alemão o leva à teoria de Iena, à escola de Iena, a
teoria segundo a qual a linguagem, na sua diversidade, na multiplicidade, era
portadora de idéias. E então podia constituir uma maneira de pensar, uma modo
de enunciação do pensamento pelo simples fato de citar. E nesta citação,
incorporar uma idéia da literatura. Então, segundo minha maneira de ver, ele
transportou esta idéia da citação. Ela é muito importante na sua obra. Toda
escritura está inscrita numa reescritura. E fora desta reescritura não existe
escritura. Acho que podemos fundar esta hipótese a propósito de Godard – e de
Resnais, também –, segundo a qual qualquer que seja a linguagem utilizada, ela
é impura, porque ela é heterogênea, mista. E é esta impureza que,
paradoxalmente, a constitui como escritura, pois ela não é escritura.
Paradoxal, mas acredito que podemos dizer isto.
Com
a obra de Jean-Luc Godard nós temos ao mesmo tempo cinema e literatura?
Sim. O cinema é uma linguagem heterogênea. O cinema, talvez mais do que
qualquer outra linguagem faz aparecer a heterogeneidade constitutiva de toda
linguagem, pois o cinema é múltiplo, e desta maneira faz aparecer a
impossibilidade do signo puro, o que Godard descobre de uma maneira concreta:
que o signo puro é impossível. A relação da palavra com a coisa é sempre
reduzida, desviada, pelo cinema. Não existe falsificação, mas destronamento. O
cinema é bastante paradoxal, tem um poder revelador, mas ao mesmo tempo, no
limite, uma ausência de especificidade. Quer dizer, o cinema revelaria alguma
coisa sobre a escritura, mas o que ele revelaria é precisamente que não existe
especificidade na escritura. Esta é uma teoria que não é enunciada por Godard,
mas que podemos fazer aparecer na sua obra. Em Godard, esta forma literária – é
necessário distinguir escritura de literatura – é recusada. Por outro lado, a
ligação com a escritura é engajada, sistematicamente, sobretudo nas suas
últimas obras. Penso em JLG par JLG, mas também nos outros vídeos, e em
particular um deles no qual ele emprega Blanchot e é também sobre a escritura
cinematográfica e a relação com a escritura segundo Blanchot, que é
extremamente interessante. Isso aparece especialmente em Elogio do Amor e
em outro vídeo onde ele se encena a si mesmo...
Em
Pierrot le fou, ele retira uma palavra de outra em várias
ocasiões: “vie de Riviera, vie de envie”, e mesmo SS de “ESSO”...
Quer dizer, ele é bastante sensível à fragmentação do signo. E à
capacidade que teria o cinema de tornar visível esta fragmentação. Esta
possibilidade, que tem muita relação com a lingüística, muito ligada à teoria
de Saussure, que o signo contém outro signo. A linguagem é feita desta
capacidade do signo de integrar ou dissimular outro. Para os românticos
alemães, o caráter heterogêneo da linguagem, nas suas formas, seus gêneros e
seus materiais, fazem aparecer uma espécie de relação diferente com a
existência, que é a relação romântica, ao mesmo tempo de exílio e de
apropriação, e que aparecia na escritura, na sua fragmentação. Como no seu
desejo de totalização. O que é muito godardiano, não? Totalidade e literatura.
Esta essencialização da linguagem em sua forma fragmentada e incompreensível
aparece particularmente na última fala de Jean Seberg, “o que quer dizer dégueulasse?”
Ali, é a questão do signo que é encenada. A maneira como Belmondo esconde o
rosto com revistas em quadrinho e outros textos e a cada vez temos esta
questão, de uma certa maneira, da existência literária que é proposta.
Acossado
termina com uma questão sobre o significado de uma
palavra...
De uma palavra que se transforma num signo... A palavra é freqüentável, pode ser decomposta, podemos fazê-la jogar em diferentes signos, numa palavra, que ela não tem sentido. Que o sentido seja fixado, também. Godard coloca em cena, sem necessariamente enunciá-lo, tudo que o cinema coloca como questão, à questão do signo. Quer dizer, ele não parte da literatura, ele parte do signo. E é desta maneira que encontra a música e a literatura. Segundo minha maneira de ver, a questão da literatura não é frontal na sua obra, absolutamente, ela se torna frontal.
Mas,
ao mesmo tempo, vários são os personagens de Godard que dizem estar escrevendo
um romance, têm idéias para escrever um, ou dão idéias para o outro escrever:
Ferdinand, Marianne, Patricia. Ferdinand escreve uma espécie de diário, durante
o filme todo. Vários personagens escrevem cartas, e Godard mostra-os
escrevendo. Muitos jornalistas aparecem nos seus filmes. Existe uma importância
muito grande do texto, da literatura, da escritura...
Uma circulação de textos. Uma colocação em circulação da literatura, do
texto, da escritura, mas do meu ponto de vista, tudo isto indica uma reflexão
sobre a linguagem e sobre o sentido. É exatamente a relação signo/sentido que o
interessa, também: na decomposição dos signos, a capacidade, fragmentando o
signo, de fazer aparecer outros signos, as significações dissimuladas, que vem
trabalhar a relação do signo com o sentido. Ele está próximo de uma certa
reflexão lingüística do início do século. Mas de uma maneira que não é
propriamente enunciada. Que é reencontrada, por acaso, por leitura, por
apropriação progressiva. Para voltar a Blanchot, é neste contexto do signo, da
relação signo/sentido, que seu nome é pronunciado. Em particular, neste vídeo
do qual já falei, me esqueci do nome, não é JLG par JLG, acredito que é
um outro.
Lendo
o que a senhora escreveu sobre Godard, deparei com uma frase que me fez pensar
muito. É quando a senhora diz que “o cinema é a arte do movimento”. Ao
contrário do que qualquer um outro diria, a senhora não escreveu que o cinema é
a arte da imagem em movimento. Gostaria de saber, exatamente, qual a idéia que
a senhora tinha, quando escreveu isso.
Um pouco no sentido que eu descrevi anteriormente. Quer dizer, no fundo,
estou louvando o cinema, dando um crédito ao cinema, e não fazendo sua crítica,
quando faço esta constatação. O cinema teria a capacidade, simplesmente pelo
material que ele utiliza, de encenar o signo e de colocar no jogo mesmo dos
signos a questão do sentido. Sem enunciá-lo teoricamente, simplesmente
fazendo-o funcionar. Nas seqüências do diário, em Pierrot le fou, por
exemplo, tratar-se-ia de ver a capacidade que teria o texto de esconder a
figura, ou a figura de esconder o texto. E é este jogo de esconde-esconde que
interessa particularmente a Godard. Enfim, a hipótese é que o cinema coloca em
cena, sem enunciar, a questão do signo, e a questão da relação do signo consigo
mesmo, e a relação do signo à significação. Sem que isto seja enunciado de
qualquer maneira, mas colocado em jogo, colocado no circuito. É aí que o cinema
de Godard diz coisas interessantes sobre a relação do cinema com a literatura.
A
senhora escreveu sobre Godard: “é na impotência aceita, na impossibilidade
reconhecida de compreender e de dizer, que Godard diz e faz compreender melhor
e mais diretamente”. Esta é uma colocação magnífica, e perfeita, se
pensamos na obra de Godard.
Quer dizer, é no silêncio, no silêncio visual, um silêncio de múltiplas
entradas. Tenho uma relação bastante ambígua com Godard. Quer dizer, não aceito
muito facilmente seus enunciados diretos, mas em compensação, quando ele se
cala através das imagens – quando o silêncio das suas imagens abre a questão do
signo – isto passa a ser extremamente interessante. Em Resnais isto é
inevitável, pois a linguagem desde o começo é o texto literário, ele não pode
não colocar a questão da relação entre cinema e literatura. Enquanto que, em
Godard, esta não é uma necessidade aparente, é uma necessidade que se revela
pouco a pouco, do interior, pois o cinema o obriga a colocar a questão do
signo.
A
senhora escreveu, também, que “a aventura nasce da escritura tanto quanto das
ações”. Perfeito: existe uma aventura da escritura nos seus filmes.
Nos seus filmes, como em outros filmes. Quer dizer, isto é o que o
cinema moderno coloca, mais que o cinema clássico. Diferentemente do que fazia
o cinema dos anos trinta, que alardeava sua relação com o texto. Mas com formas
codificadas que eram outras, diferentes das que vemos aparecer atualmente, onde
a relação com o texto é mais uma relação com a questão do gênero, a questão da
reescritura como adaptação. Eu diria que o que parece atualmente é que não
existe escritura absoluta, toda escritura é captada num trabalho de reescritura
e que por isso o trabalho de adaptação é um bom lugar, talvez, para trabalhar
esta questão da relação cinema/escritura/reescritura. Eu diria mesmo que é talvez
pela reescritura que chegamos à questão da escritura, não temos nunca a
escritura em si mesmo. Esta é talvez uma idéia romântica, no sentido do
romantismo alemão, quer dizer, uma interrogação crítica sobre a linguagem,
sobre a possibilidade de dizer. Possibilidade de enunciar diretamente. Que é,
creio, o movimento por excelência do romantismo alemão. Existe uma profunda
impregnação pela literatura teórica, em Godard. Num momento dado Godard leu, e
o que ele leu o fez ir noutra direção, quer seja o romantismo alemão, a escola
de Iena, Blanchot, ou outros autores que ele cita em Nouvelle Vague...
Godard
disse recentemente que nos últimos tempos ele não escreveu nada, tudo nos seus
filmes são citações...
É exatamente a propósito de Nouvelle Vague que ele diz isto, que não existe senão citação, pois não existe linguagem pura, não existe signo puro, não existe linguagem que não tenha sido trabalhada. Então, o fato de escrever é uma reescritura. Estamos presos neste paradoxo.
A senhora escreveu, também, que “sua contribuição essencial ao cinema acontece no fato de sua rejeição de todos os códigos, quer eles sejam narrativos, ou dramáticos”.
Eu diria isto, agora, com mais nuances: rejeição dos códigos, mas
realizada de uma maneira codificada, quer dizer, através da encenação do
código. Contrariamente aos seus enunciados conceituais diretos, que dão, no
fundo, uma espécie de pureza absoluta ao cinema, ele não cessa de explorar, de
expor também essa impureza constitutiva, é verdadeiramente Godard que mostra melhor
o caráter heterogêneo da linguagem, mas sem enunciá-lo, apenas encenando-o. E
isto é admirável, desde o primeiro filme, desde Acossado. A linguagem é
sempre preenchida por outros signos, cada signo pode dissimular um outro.
Entrevista realizada em Paris, no dia 30/11/2005
Entrevista publicada
em: http://www.filmespolvo.com.br/site/entrevistas/index/6