Edição importante e necessária, mas não definitiva
Por Edilson Pantoja & Ernani Chaves
Na edição de domingo, 2 de março
do corrente, neste mesmo espaço, o professor Paulo Nunes, conhecido estudioso
da obra de Dalcídio Jurandir, comentou sobre a nova edição de Chove nos campos
de Cachoeira, que ele endossa, trazida a público pela Editora 7 Letras (2011).
A edição decorreu do trabalho de outra reconhecida pesquisadora da mesma obra,
a professora Rosa Assis, a partir da descoberta de exemplares pessoais do
autor, onde este, de próprio punho, reescreveu, suprimiu e acrescentou, numa
dedicada revisão [a pesquisadora teve o cuidado de fotografar, uma a uma, as
páginas disponíveis – algumas se tinham extraviado ou desparecido], trechos do
romance. Para a organizadora, como também para Paulo Nunes, Jurandir
“reescreveu o Chove”, tendo alterado 95% do texto original.
Rosa Assis, lembra Nunes com
justiça em seu artigo, é, desde a década de 1980, intérprete fundamental para a
permanência do nome e da obra dalcidiana na cena literária contemporânea – não
obstante, devido a razões que ultrapassam seus esforços, assim como de outros
estudiosos e leitores, tal cena tenha permanecido relativamente discreta,
localizada em pequenos nichos acadêmicos. De modo que a nova edição da obra
inaugural de Jurandir, lançada por uma editora de alcance nacional, deve ser
vista mesmo com esperança de intensificação daquela cena e do conhecimento
público da obra do autor paraense, sem dúvida um dos maiores escritores
brasileiros. Começar um movimento de republicação da obra dalcidiana pelo Chove...
– a professora deixa entender isto numa entrevista [https://www.youtube.com/watch?v=SgOBO7mSAkA]
é, sem dúvida, um grande começo!
Mas, afora a esperança e os aplausos que a iniciativa representa e merece, o tom categórico de seu anúncio como “edição definitiva” (p. 7 da “Apresentação”), assim como a afirmação subsequente de que “doravante, não mais poderão ser reeditados nem o texto da primeira edição (Vecchi), nem o da segunda (Cátedra)...” (p. 10), requerem discussão.
Tal conjunto de provas é formado pelo seguinte: 1) pelo registro fotográfico de alterações de próprio punho do autor, acessível no endereço http://aparaciencias.org/vol-3.1/008_RosaDalcidio.pdf e que se faz acompanhar do mesmo texto que serve de apresentação à nova edição, salvo pequenas alterações; 2) pela referência (p. 10 da apresentação) à Comissão Machado de Assis, quando, a propósito da edição crítica de Memórias póstumas de Brás Cubas, assevera que “o texto de base, em princípio, tanto pode ser um manuscrito quanto uma das edições em vida” – tal recorrência, com finalidade filológico-hermenêutica, lhe dá aquilo que, no campo do Direito, permitido o uso do jargão jurídico e da comparação, dir-se-ia que “gera jurisprudência” para casos semelhantes, o que, entende Rosa Assis, é o caso da nova edição do Chove...; 3) por duas cartas de Dalcídio, datadas de 1974, enviadas a dois amigos, com explícita alusão ao projeto de lançar a 2ª edição do romance.
Essas cartas, breves e manuscritas “de próprio punho”, também estão fotografadas e acessíveis no mesmo endereço eletrônico acima citado, e seus textos reproduzidos na apresentação. Na carta a Maria de Belém Menezes, de 19/1/1974, lê-se: “Talvez seja lançada a 2ª edição, este ano, do ‘Chove nos campos de Cachoeira’, embrião de toda a obra longa e inacabada. Não mexi no texto, a não ser esta e aquela palavra, deixo-o como está, bárbaro” [Rosa Assis grifa o termo “bárbaro”]. Logo em seguida, a Cléo Bernardo, em carta de 29/1/1974, Dalcídio reitera: “Parece que vai sair a 2ª edição do Chove nos campos de Cachoeira. Não mexi no texto, pois se fosse mexer seria um estrago”. Rosa Assis grifa “estrago” e, em seguida às citações, comenta:
“Como se vê, e se lê expressamente, Dalcídio em apenas dez
dias extravasa mais de uma vez sua insatisfação com o texto da futura segunda
edição do Chove, já então no prelo. Mas nessa ocasião, embora consciente das
falhas e defeitos, preferiu não mexer no texto original (‘a não ser esta e
aquela palavra’), deixando-o como estava (‘bárbaro’), para não ter de fazer ‘um
estrago’, isto é, depreende-se, muitas e tantas modificações que o tempo
necessário para fazê-las seria muito maior e o texto bem outro, inviabilizando
assim a nova edição já no prelo, ou a ser em breve publicada” (p. 8).
Assim, supondo dispor de dados e
recursos claros e evidentes, Rosa Assis parece não ver necessidade de submeter
a maior rigor crítico sua argumentação e suas conclusões. Por exemplo: na carta
a Maria de Belém Menezes, escapa a ela (como também a Paulo Nunes), algo
extremamente importante que está em jogo na decisão de Jurandir de “não mexer”
no texto, de conservá-lo “bárbaro”. Ora, o termo “bárbaro” fez história na
recepção do Chove..! Álvaro Lins, em Jornal de Crítica, de 1943, edição que
reúne estudos anteriormente publicados em jornais (o artigo sobre o Chove...,
por exemplo, é de 1941) e primeiro crítico a se ocupar do romance, acusou-o de
dotado de “uma força bárbara e caótica” (p.118), exibindo “um romancista na
mais absoluta inconsciência literária, na mais absoluta ignorância de sua
arte”. “O que falta ao livro do sr.
Dalcídio Jurandir – continua o crítico – é a realização literária, é o domínio
do material romanesco, é a consciência mesma da obra. Não sendo um romance de
valor, sobretudo de valor literário, ‘Chove nos campos de Cachoeira’ revela
indícios de um romancista” (p. 117). Crítica contundente, que vê no livro
apenas “indícios de um romancista”. Por outro lado, talvez fosse necessário
atentar que a palavra “estrago”, termo usado na carta a Cléo Bernardo, tem um
sentido, no mínimo, ambíguo, podendo significar seja uma espécie de devassa no
texto original, quanto um grande prejuízo, dado tratar-se de texto então
consagrado.
A organizadora da nova edição
opta em encaminhar os termos, que grifa, para uma conotação negativa. “Bárbaro”
e “estrago”, nesta perspectiva, implicariam depreciações, signos da
insatisfação do escritor com o texto original. Também preocupada em justificar a
não revisão do autor para a segunda edição, ela ressalta o pouco tempo para
fazê-la, dado o texto “já então no prelo”. Entretanto, esta afirmação só pode ser
uma suposição, uma vez que as cartas que amparam e justificam o seu trabalho
precisam ser contextualizadas. Dalcídio, sempre cauteloso, usa o “talvez” e o
“parece” nas cartas e, em nenhum momento, diz que o texto “já está no prelo”. O
que chama atenção, neste caso específico, é que a própria organizadora modifica
sua afirmação, ao final do seu comentário, quando escreve: “inviabilizando
assim a nova edição já no prelo, ou a ser em breve publicada” (grifos nossos).
O que era, no começo de seu comentário, uma certeza (“já então no prelo”), se
ameniza no final, pelo uso do “ou”. Assim, apoiada em suas interpretações das
“evidências”, ela conclui seu argumento da seguinte maneira, sempre reforçando
as dificuldades, em especial a “falta de tempo” de Dalcídio para levar a cabo o
seu intento de republicar o livro “corrigido” (p 13 da “Apresentação”):
“Não resta, pois, a menor dúvida de que este
seria o inteiramente revisto e aprimorado texto do romance Chove nos campos de
Cachoeira, que o Autor gostaria de ter publicado em vida, como sua versão
definitiva. Mas, provavelmente, como os seus demais romances vieram surgindo e
saindo quase que em série, não teve tempo nem meios para que este novo Chove,
tão ampla e minuciosamente reescrito, fosse em nova e tão modificada edição
republicado ainda no curto período que lhe restou de vida. Agora, depois de
tanto tempo, mas ainda em tempo de resgate do vivo desejo de Dalcídio, a
presente edição do Chove – livro marcante que estava desaparecido há muito do
mercado editorial – aparece de novo, e inteiramente renovada no seu texto
definitivo, com o qual efetivamente quis o cioso escritor presentear o seu mais
velho e o mais jovem público leitor”.
A propósito da “falta de tempo”, é necessário fazer as
seguintes ponderações, levando em conta três informações : 1) a segunda edição
do livro só saiu em 1976, dois anos após as cartas aqui referidas, tempo em
que, se resoluta, efetiva e oficialmente quisesse alterar o texto, o autor
poderia tê-lo feito; 2) informação à página 56, do livro Dalcídio Jurandir,
romancista da Amazônia, organizado por Benedito Nunes, Ruy e Soraia Pereira, nos
diz que em 1970, Ribanceira, último romance da obra estava concluído, o que
também reforça a ideia de que não foi propriamente um problema temporal o
obstáculo para Dalcídio apresentar oficialmente o “novo” Chove..; e, enfim, 3)
o que nos parece mais problemático, e definitivo, tem a ver justamente com os
documentos, os registros fotográficos que serviram de base para a defesa, pela
organizadora, de uma revisão oficial do texto. Trata-se do fato, como sabem os
conhecedores da biografia de Dalcídio, que este foi acometido do mal de
Parkinson, doença degenerativa que só se agravou no decorrer da vida,
finalmente sugada em 1979. Tais estudiosos também sabem que o progresso da
doença diagnosticada em 1967 (Romancista da Amazônia, p. 56) teve consequências
graves para quem, cujo ofício, era o de escrever.
A esse respeito, lembramos o texto da filha de Jurandir (Romancista
da Amazônia, p. 185): “Em 1970, ao chegar de uma viagem de estudos à Europa,
tomei conhecimento de sua doença. Como bióloga, sabia o quanto era grave e,
como filha, sabendo como prezava sua liberdade e autonomia, imaginei o seu
sofrimento com o progresso do mal de Parkinson”, o qual interferiu cada vez
mais na escrita à mão, “de próprio punho”, deixando-a cada vez mais trêmula.
Convidamos agora o leitor para que acesse o link do
registro fotográfico e amplie a visualização das fotos para 350 - 400%. O que
vemos? Sim, vemos com absoluta clareza que a caligrafia das duas cartas
mencionadas, datadas de 1974, é trêmula, enquanto, ao contrário, a das revisões
nos exemplares pessoais, definitivamente não! É límpida, clara. É mais antiga!
Dalcídio já tinha pronta a revisão do texto em 1974, quando anuncia a 2ª edição
e diz aos amigos que preferiu “não mexer” oficialmente. Sabe-se lá desde quando
dispunha de tal revisão! Uma certeza: ou foi antes ou no início da doença,
quando esta ainda não interferia em sua caligrafia.
Nossa suspeita?
Dalcídio parece trazer o termo “bárbaro” atravessado na garganta desde a
recepção de Álvaro Lins, a quem, já em 1941, ano da crítica, escrevera resposta
(cf. Romancista da Amazônia, p. 81-83). Também em 1948, quando comentando o
romance Marajó, publicado em 1947, diz sobre este: “Foi um treino de mão, um
exercício literário pelo qual entrei no caminho de outros romances, ‘bárbaros’,
como gostam de dizer, com certa razão, nossos críticos” (Idem, p 178). É
preciso lembrar, mais uma vez, o destino, na nossa cultura, da delimitação,
desde os gregos antigos, implicada em “bárbaro”. Se, entre os gregos, “bárbaro”
designa o “outro”, o “não grego”, essa designação inicial se transforma tanto
no “cruel”, no “desumano”, mas também no “não civilizado”, no “rude”, no
“grosseiro”. A partilha de Álvaro Lins, nesta perspectiva, é muito maior do
aquela entre o bom e o mau escritor, mas é também entre o civilizado e o
grosseiro, o inculto, o que vem do Norte, da Amazônia. A profunda consciência
social e política de Dalcídio não poderia, de forma alguma, aceitar isso. Nossa
suspeita – mera suspeita – sobre a data da revisão em caligrafia límpida e
segura que aparece nas fotos: a idade deste nó na garganta. Quer nossa suspeita
proceda ou não, o importante é que a revisão é anterior a 1974 e Dalcídio
Jurandir, embora com o nó na garganta, preferiu não publicá-la. Talvez ele
tenha preferido assumir a condição de “bárbaro”, mas revertendo o sentido
pejorativo – o que nos parece ser o caso – tornando-o resistência política. Sua
Academia, não esqueçamos, é menos a que foi fundada por Machado de Assis, e
mais a do “Peixe Frito”, inteiramente “bárbara”! É possível imaginar um chá das
cinco na ABL com açaí e peixe salgado, frito, charque?
A utilização dos arquivos de escritores, comum e rotineira
no mundo contemporâneo, sempre parte da perspectiva de que o material aí
descoberto amplia os horizontes de entendimento da obra e multiplica as
possibilidades de pesquisa. Apenas para citar um exemplo no campo da literatura,
basta pensarmos nas sucessivas reescrituras que Proust fez da Recherche, da
permanente descoberta de uma carta sua neste ou naquele arquivo particular.
Entretanto, nenhuma edição posterior aos minuciosos estudos comparativos,
“genéticos”, como se diz na França, desqualifica ou condena ao desuso a edição
da coleção “Pleiade”, da conceituada editora Gallimard, que durante décadas
serviu de base para o desenvolvimento dos estudos proustianos no mundo inteiro.
Este
é o sentido de uma “edição crítica”: não é desqualificar as edições anteriores,
mas de, somar-se às já existentes, estabelecendo com elas uma ligação, mesmo
que de confronto. Afinal de contas, qual a autoridade que qualquer um de nós
pode ter para falar pelo escritor a tal ponto, para dizer o que ele não disse,
para ser o fiel enunciador de seu desejo?
O
que nos motivou, portanto, a expressar nossa posição não é para desmerecer todo
o esforço de pesquisa da organizadora. Entretanto, não podemos concordar com o
“princípio” que orientou a publicação da “nova edição”. Não consideramos como
suficientes as “provas” apresentadas, menos ainda a “interpretação” proposta
pela organizadora dessas mesmas “provas”. Em suma, nossa posição é a seguinte:
a nova edição não altera radicalmente a substância do romance, é bem vinda para
somar ao conhecimento e divulgação da obra de Jurandir, em apresentar novo
material para a pesquisa, em suscitar questões, indagações, propor outros
problemas. Mas talvez deva, definitivamente, abrir mão de requerer ser definitiva,
para que se possa inscrever numa outra tradição, a de uma edição crítica, ou
seja, aquela que se sabe incompleta, inacabada, sempre aberta a novas questões.
* * *
Edilson Pantoja,
mestre em Letras, doutorando em Antropologia/UFPA.
Ernani Chaves,
professor da Faculdade de Filosofia/UFPA.
A organizadora se manifestou a respeito disso? A contrariedade de vocês?
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