CURATI A OLTRANZA
ROBERTO ESPOSITO
Publicado em: « Antinomie »
28. 02. 2020/02
Tradução: Davi Pessoa
Ao ler o texto de
Nancy, encontro os traços que desde sempre o caracterizam - em particular uma
generosidade intelectual que eu mesmo experimentei no passado, tirando ampla
inspiração de seu pensamento, especialmente em meus trabalhos sobre a
comunidade. O que interrompeu nosso diálogo, em determinado momento, foi a
clara aversão de Nancy ao paradigma da biopolítica, à qual sempre opôs, como
também neste seu texto, a relevância dos dispositivos tecnológicos - como se as
duas coisas tivessem que ficar em contraposição necessariamente. Quando, em vez
disso, o termo "viral" indica uma contaminação biopolítica entre
linguagens diferentes - políticas, sociais, médicas, tecnológicas -, unificadas
pela mesma síndrome imunitária, entendida como polaridade semanticamente
contrária ao léxico da “communitas”. Embora o próprio Derrida tenha feito uso
abundante da categoria de imunização, provavelmente na recusa de Nancy de
confrontar-se com o paradigma da biopolítica possa ter influenciado a distonia
que ele herdou de Derrida diante das posições de Foucault. De todo modo,
estamos falando de três entre os maiores filósofos contemporâneos.
O fato é que hoje
qualquer pessoa que tenha olhos para ver não pode negar a total implantação da
biopolítica. Desde intervenções de biotecnologia em áreas antes consideradas
exclusivamente naturais, como nascimento e morte, ao terrorismo biológico, ao
gerenciamento da imigração e de epidemias mais ou menos graves, todos os
conflitos políticos atuais têm no centro a relação entre política e vida
biológica. Mas precisamente a referência a Foucault deve nos levar a não perder
de vista o caráter historicamente diferenciado dos fenômenos biopolíticos. Uma
coisa é argumentar, como fez Foucault, que durante dois séculos e meio política
e biologia se entrelaçaram cada vez mais, com resultados problemáticos e, às
vezes, trágicos. Outra é homologar entre elas acontecimentos e experiências
incomparáveis. Pessoalmente, evitaria estabelecer qualquer relação entre os
cárceres especiais e uma quarentena de algumas semanas em Bassa.
Certamente, do ponto
de vista jurídico, o decreto de urgência, que há muito tempo é aplicado mesmo
nos casos em que não seria necessário, como no caso em questão, leva a política
a procedimentos de exceção que, a longo prazo, podem ameaçar o equilíbrio dos
poderes em favor do executivo. Mas chegar a falar, neste caso, de risco para a
democracia me parece pelo menos exagerado. Acredito que se deva tentar separar
os pontos, distinguindo processos de longo prazo das notícias midiáticas
recentes. Do primeiro ponto de vista, há pelo menos três séculos, política e
medicina estão ligadas em uma implicação recíproca, que acabou transformando
ambas. Por um lado, determinou-se um processo de medicalização de uma política
que, aparentemente livre de ligações ideológicas, se mostra cada vez mais
dedicada ao "cuidado" de seus cidadãos contra riscos que ela própria
costuma enfatizar. Por outro lado, assistimos a uma politização da medicina,
investida de tarefas de controle social que não lhe pertencem -, o que explica
as avaliações muito heterogêneas dos virologistas sobre a importância e a
natureza do coronavírus. De ambas as tendências, a política se torna deformada
em relação ao seu perfil clássico. Também porque em seus objetivos se encontram
não só indivíduos ou classes sociais, mas também segmentos de população
diferenciados por saúde, idade, sexo ou até etnia.
Mas mais uma vez,
com respeito a preocupações certamente legítimas, é necessário não perder o
sentido das proporções. Parece-me que o que acontece hoje na Itália, com a
caótica e um pouco grotesca sobreposição de prerrogativas estaduais e
regionais, tenha mais o caráter de uma decomposição dos poderes públicos do que
de uma dramática compressão totalitária.
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