A arte da reaparição nas fotografias de Wagner Almeida
por Marly Silva
O sacrifício de Abraão - Caravaggio |
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Por que se grita tanto
no Rock? Essa pergunta ocorreu ao jovem filósofo Charles Feitosa que, fascinado
pelo grito na arte, perpetrado desde o célebre quadro de Eduard Munch (1893), procurou
nos dar uma resposta. Dá-la ao público, pois o filósofo ligado no mundo sabe que o que lhe ocorre, muitas
vezes está em milhares de outras cabeças, no caso: amantes, desafetos ou apenas
curiosos do Rock, mas só os filósofos têm tempo, paciência e ferramentas conceituais
para aventurar-se nessa procura do aparentemente prosaico, sem valor. Singela é
a sua resposta. O grito aparece na arte porque é expressão da condição humana,
ou melhor, é um meio de expressar variadas emoções: prazer, felicidade, revolta,
dor, horror, “sensação de impotência, quando não se acredita em mais nada, ou
pior, só se acredita no nada”. Agora, como o
grito, tido pelos antigos como “coisa feia”, rompeu esta barreira (estética)
e entrou para o campo artístico, é uma outra história. Mas na arte musical, não
só os roqueiros gritam! Elis Regina
também gritava escancaradamente nos Festivais da Canção dos anos 1960, expressando
um misto de rebeldia, provocação e êxtase. Num show da banda Iron Maiden, no qual o vocalista
incitava a plateia do Rock in Rio com o refrão: Scream for me, Brazil! (grite por mim, Brasil), nosso filósofo e mais
dezenas de milhares de outras pessoas gritavam juntos “meio sem saber por que,
mas felizes em se esgoelar até perder o fôlego”. Coisa de jovem, ora bolas! Situação oposta é aquela que
encontramos na série de fotos em exposição do jovem repórter fotográfico Wagner
Almeida. No lugar do grito harmônico ou hipnotizante do rock, o silêncio
fúnebre de corpos silenciados a bala, executados em lugar ermo, abandonado, onde
impera a lei do silêncio. Se houve
gritos durante o sinistro não sabemos, nem as fotos revelam, mas podemos
imaginá-los e ouvi-los como um eco que ressoa no grande salão da “Casa das Onze
Janelas”, tão fortes são as imagens de Wagner, o que lhe valeu uma premiação no
IV Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia. O silêncio dos corpos tombados
projeta o grito não só dos que foram executados, mas também dos que testemunharam
e sobreviveram (sabe lá até quando, devem se indagar) às perseguições, às
chacinas, às “batidas”, às emboscadas, aos tiroteios, às balas perdidas, às
invasões arbitrárias e violentas de domicílios, aos aprisionamentos recorrentes
dia após dia. Portanto, a paz que
temos aí é a paz dos cemitérios...
Nas fotos de Wagner, um enigma: corpos tatuados com imagens de santos católicos ao lado dos códigos de
uma gramática violenta. O que
significa essa relação aparentemente contraditória? Ele tenta decifrá-la. É
difícil... Compartilho sua inquietação e me atrevo a uma aproximação possível no
exame da relação que une a violência e o
sagrado no contexto social vivido por jovens da periferia envolvidos em
conflitos violentos. É um desafio que a própria antropologia religiosa teve
dificuldades em responder satisfatoriamente até hoje.
“Livrai-nos de todo o mal”,
título que dá nome à série fotográfica premiada, constitui uma crônica da morte
anunciada e consumada que nos instiga a pensar os porquês do crescimento desta violência
destrutiva que paradoxalmente é convertida em objeto publicitário (“chicote neles” é uma das peças que nos
remete ao anacronismo dos castigos aplicados aos escravos), vendida como se
vende bens de consumo duráveis, a exemplo dos “cadernos de policia” e dos programas
de “cobertura policial” (“Metendo bronca”
é o mais sinistro) patrocinados por supermercados, cervejarias e até pela Prefeitura
Municipal de Belém; será isso o significado do terceiro “S” da tríplice
promessa de campanha do alcaide? Parece-nos
que vigora um pacto suprapartidário de exposição sistemática e agressiva do
jovem pobre envolvido na economia dos negócios ilícitos onde a ausência de
instâncias estatais regulatórias encontra na violência interpessoal e grupal a
forma de resolução dos conflitos. Essa verdade levou o sociólogo Fernando
Henrique Cardoso a engajar-se na luta pela descriminalização da maconha que ele
como presidente não conseguiu emplacar, ao contrário do nosso vizinho, o
Uruguai de José Alberto Mujica Cordano. Por outro lado, são tantos os casos revoltantes
de violação de direitos de simples suspeitos, detidos e inocentes, que já deveriam
ter levado o Ministério Público Estadual a tomar providências contra o uso abusivo
do poder policial e midiático que fere direitos constitucionais e universais da
pessoa humana. Exemplo inacreditável é o caso recente de uma mãe moradora do
bairro do Guamá que, transtornada pela morte súbita da filha, é tida como suspeita
de tê-la assassinado; é presa, algemada, escoltada até a delegacia, filmada,
fotografada, e constrangida a responder ao vivo a uma repórter por um crime que
não existiu; tenta-se frente às câmaras arrancar alguma confissão da pobre
mulher! Quanta sensibilidade jornalística... Polícia e imprensa parecem atuar
como cúmplices, construindo um cenário que beira a ficção. Além disso, tais programas
ocupam um tempo extraordinário na programação local seguindo uma lógica banal:
se a tragédia humana dá ibope, atrai uma multidão de curiosos, então, por que
não explorá-la convertendo-a em “currículo áudio visual” com patrocínio do mercado
e assim, incitá-la mais e mais sob o aparente pretexto de combatê-la? Afinal, é certo que o resultado aparecerá no próximo
sufrágio. O império desta razão cínica
destrói, antes mesmo que nasça, qualquer possibilidade de instituição de uma
ética do bem estar social comum na cidade, de onde poderia advir a esperança de
uma condição de segurança pública que hoje não passa de miragem. Jean-Pierre
Dupuy nos ensina, “se nos esforçamos sempre em aumentar a eficácia dos meios
violentos para conter a violência,
mais inatingível ele (o reino do amor) fica”. A história do século XX nós dá exemplos
emblemáticos da verdade contida nestas palavras. Só os cínicos não vêem, porque
a estupidez e a hipocrisia os cegou.
A igreja, o crime organizado e
o braço armado do Estado (segurança pública) são instituições poderosas que
compõem a vida e o imaginário do jovem da periferia. Num sermão, ele ouve que durante mais de dois
mil anos os profetas repetiram: Deus não
quer sacrifícios. Na Bíblia, ele lê: não
acreditem que eu tenha vindo trazer a paz sobre a terra: eu não vim vos trazer
a paz e sim a espada (Mt. 10:34). Num lixão de papéis recicláveis, ele
encontra uma reprodução da tela de Caravaggio baseada no texto bíblico em que
Deus ordena Abraão (com a faca em punho) a sacrificar o próprio filho e o anjo
lhe oferece a ovelha para livrar o filho da imolação pelo pai. Como ele
processa todas essas falas e imagens, fragmentadas e contraditórias? Quem vai
lhe explicar a exegese do texto sagrado e de como a vingança e os rituais de sacrifícios
foram historicamente transformados em tribunal
do júri e no sistema penal que
temos hoje? O jovem pobre nasce excluído das possibilidades de entendimento da cultura
em que vive. Além disso, está assujeitado a estes poderes arbitrários, marcados
por contradições e ambiguidades e tem de conviver com eles como alma
aprisionada em múltiplos conflitos e violações cada vez mais destrutivas, numa
espécie de “campo de concentração a céu aberto” (como bem define o sociólogo Edson
Passetti), já em idade muito precoce, quando ainda não consegue alcançar o
discernimento da miséria de sua condição social. E quando o alcança, se rebela
ainda mais, e ao rebelar-se, se expõe às agressividades da repressão disciplinar
e aos dispositivos da violência simbólica, acionados em viva voz como um teatro
do absurdo nas telas da TV com as câmaras em close penetrando a retina dos seus
olhos em corpos acuados. Na condição de professora, conheci muitos que encontraram
uma rota de fuga e resistência ao meio adverso e árido onde nasceram, mas
muitos milhares de outros mantêm-se na sujeição e servidão. Portanto, não
espere gentilezas quando um deles lhe anunciar um assalto na janela do seu
carrão 4x4 com uma arma que pode ser até de brinquedo, só para “dar um susto” (jargão
que compõe o repertório da cultura da violência e que circula em todas as classes
sociais). Eles estão ali cumprindo ordens superiores, seja lá de onde for. Suas
vidas são nervosas e impacientes desde quando nascem, numa cidade que lhes nega
moradia e dignidade, mesmo em plena era do “Minha Casa Minha Vida”, o que
denuncia a irresponsabilidade criminosa dos poderes públicos municipais em
Belém. Poderes que também se mostram incompetentes para regulamentar leis que
há muito vigoram em outras cidades, como a outorga onerosa, que obriga que
parte da riqueza advinda do boom da indústria da construção dos condomínios de
luxo, shoppings e espigões em geral se constitua em fundos públicos destinados à
construção de equipamentos urbanos como centros culturais, teatros, bibliotecas,
escolas de formação, laboratórios-oficina de arquitetura para soluções de
habitação popular com conforto térmico nos bairros da periferia tropical. Por
que a periferia não pode ser palco da filosofia, das artes e de uma economia
cultural com geração de empregos? Não é
dela que sai o operariado construtor de todas as riquezas arquitetônicas e a
empregada doméstica que limpa a casa das madames? Por que filho de operário e empregada
doméstica teriam de seguir o mesmo? Por que não pode ser filósofo, dramaturgo,
arquiteto? Porque “artista” ele já é, na
arte de sobrevivência no deserto cultural onde se impõe a lei do mais forte. Que
venham outras premiações para o Wagner Almeida. Quem sabe tomadas instigantes
de um show do Emicida nos bairros
pobres da periferia de Belém onde a rapaziada possa cantar e gritar como deve
ser: feliz
da vida! com
música de qualidade feita pensando nela,
para ela.
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A série
de fotos Livrai-nos de todo o mal que
compõe o IV Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia pode ser vista até amanhã
26 (domingo), na Casa das Onze Janelas, no horário das 10:00 às 14:00 horas.
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Marly Silva. Socióloga, professora adjunta da UFPA. Faz um doutorado na área de sociologia da cidade brasileira na PUC-SP.
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