Sobre a anarquia, hoje
Giorgio Agamben
Tradução: Davi Pessoa
Para pensarmos a
anarquia hoje, portanto, é melhor que nos coloquemos em uma perspectiva
completamente diferente e questionemos, sobretudo, a maneira como Engels a
concebia, quando censurava os anarquistas por quererem substituir a
administração pelo Estado. Nessa acusação se esconde, de fato, um problema
político decisivo, não colocado corretamente nem pelos marxistas nem talvez
pelos próprios anarquistas. Um problema extremamente urgente, uma vez que
testemunhamos hoje a tentativa de realizar parodicamente, de alguma forma, o
que era para Engels o objetivo declarado da anarquia –, isto é, não tanto a
simples substituição da administração pelo Estado, mas, antes, a identificação
entre Estado e administração numa espécie de Leviatã, que assume a máscara
indulgente do administrador. É o que Sunstein e Vermeule teorizam em um livro (Law
and Leviathan, Redeeming the Administrative State) [1] em que
a governance, o exercício do governo, excedendo e contaminando os
poderes tradicionais (legislativo, executivo e judiciário), exerce em nome da
administração e em forma discricionária as funções e os poderes que lhes
pertenciam.
O que é a
administração? Minister, do qual deriva o termo, é o servo ou o
ajudante em oposição ao magister, o senhor, o titular do poder. A
palavra vem da raiz *men, que significa diminuição e pequenez. O minister está
para o magister como o minus está para
o magis, o menos para o mais, o pequeno para o grande, o que
diminui para o que aumenta. A ideia da anarquia consistiria, pelo menos segundo
Engels, na tentativa de pensar um minister sem um magister,
um servo sem um senhor. Tentativa certamente interessante, desde que possa ser
taticamente vantajoso jogar o servo contra o senhor, o menos contra o mais, e
pensar numa sociedade em que todos são ministros e ninguém é magister ou
chefe. Em certo sentido, foi isso que Hegel fez, mostrando em sua famigerada
dialética que o servo, em última análise, acaba dominando o senhor. No entanto,
é inegável que as duas figuras-chave da política ocidental permanecem, assim,
ligadas uma à outra numa relação incansável, da qual é impossível chegar ao fim
de uma vez por todas.
Uma ideia radical
de anarquia, então, não pode senão se libertar da dialética incessante do servo
e do escravo, do minister e do magister, para se
colocar decididamente na diferença que os divide. O tertium que
aparece nessa lacuna não será mais nem administração nem Estado, nem minus nem magis:
antes, entre eles será como um resto, que expressa sua impossibilidade de
coincidir. A anarquia é, antes de tudo, a abjuração radical não tanto do
Estado, nem simplesmente da administração, quanto, sobretudo, da reivindicação
do poder de fazer coincidir Estado e administração no governo dos homens. É
contra essa pretensão que o anarquista luta, em última análise, em nome desse
ingovernável, que é o ponto de fuga de toda comunidade entre os homens.
26 de fevereiro de 2023
O tradutor: Davi Pessoa é
professor do Instituto de Letras (UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em
Memória Social (UNIRIO). Autor de Terceira Margem: Testemunha,
Tradução (2008), Dante: poeta de
toda a vida, com Maria Pace Chiavari (2015) e Pasolini:
retratações (2019), com Manoel Ricardo de Lima. Atua
também como tradutor, tendo já traduzido livros de Giorgio Agamben, Pier
Paolo Pasolini, Donatella Di Cesare, Roberto Esposito, Furio
Jesi, Elsa Morante, Italo
Svevo, entre outros.
nota polichinello
* Alfredo Cospito é um anarquista insurrecional de
Torino (norte da Itália), com décadas de militância, o que o fez sofrer a
repressão do Estado italiano desde muito jovem, indo para a prisão nos anos 80,
quando foi preso por se declarar insubmisso ao serviço militar.
Em 2012 ele participou de uma ação-direta
contra Roberto Adinolfi, diretor da empresa nuclear e bélica, ANSALDO NUCLEARE, sendo baleado na perna. Ação reivindicada pela Federação Anarquista Informal, pela
qual Alfredo foi condenado em 2014 a 11 anos de prisão.
Em 2016 o Estado italiano realizou a operação
Scripta Manent - em decorrência de uma ação anarquista contra uma escola de
cadetes Carabinieri em Turim, sem vítimas ou feridos -, prendendo 32
anarquistas e fechando várias publicações e sites. Nesta operação, mesmo
estando encarcerado, Alfredo foi condenado a 20 anos de prisão.
Em julho de 2022 o Supremo Tribunal de Cassação
reclassificou o incidente de 2012 como massacre contra a segurança do
Estado - crime punível com prisão perpétua.
Desde 2022 foi transferido para o regime 41 BIS, criado nos anos de chumbo da repressão italiana para isolar prisioneiros-anticapitalistas, com visitas restritas a uma hora por mês, sem acesso a jornais, livros e outras privações.
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