3/04/2023

Sobre a anarquia, hoje | Giorgio Agamben





Sobre a anarquia, hoje

Giorgio Agamben

Tradução: Davi Pessoa


 Se para aqueles que pretendem pensar a política, de que de alguma forma constitui o fogo extremo ou o ponto de fuga, a anarquia jamais deixou de ser atual, como é atualmente mesmo para a perseguição injusta e feroz a que está submetido um anarquista nas prisões italianas*. Falar de anarquia, assim como tinha que ser feito, no plano do direito implica, no entanto, necessariamente um paradoxo, porque é no mínimo contraditório pedir que o Estado reconheça o direito de negar o próprio Estado, assim como, se pretendemos levar o direito de resistência até suas últimas consequências, não podemos razoavelmente exigir que seja juridicamente tutelada a possibilidade da guerra civil.

Para pensarmos a anarquia hoje, portanto, é melhor que nos coloquemos em uma perspectiva completamente diferente e questionemos, sobretudo, a maneira como Engels a concebia, quando censurava os anarquistas por quererem substituir a administração pelo Estado. Nessa acusação se esconde, de fato, um problema político decisivo, não colocado corretamente nem pelos marxistas nem talvez pelos próprios anarquistas. Um problema extremamente urgente, uma vez que testemunhamos hoje a tentativa de realizar parodicamente, de alguma forma, o que era para Engels o objetivo declarado da anarquia –, isto é, não tanto a simples substituição da administração pelo Estado, mas, antes, a identificação entre Estado e administração numa espécie de Leviatã, que assume a máscara indulgente do administrador. É o que Sunstein e Vermeule teorizam em um livro (Law and Leviathan, Redeeming the Administrative State[1] em que a governance, o exercício do governo, excedendo e contaminando os poderes tradicionais (legislativo, executivo e judiciário), exerce em nome da administração e em forma discricionária as funções e os poderes que lhes pertenciam.

O que é a administração? Minister, do qual deriva o termo, é o servo ou o ajudante em oposição ao magister, o senhor, o titular do poder. A palavra vem da raiz *men, que significa diminuição e pequenez. O minister está para o magister como o minus está para o magis, o menos para o mais, o pequeno para o grande, o que diminui para o que aumenta. A ideia da anarquia consistiria, pelo menos segundo Engels, na tentativa de pensar um minister sem um magister, um servo sem um senhor. Tentativa certamente interessante, desde que possa ser taticamente vantajoso jogar o servo contra o senhor, o menos contra o mais, e pensar numa sociedade em que todos são ministros e ninguém é magister ou chefe. Em certo sentido, foi isso que Hegel fez, mostrando em sua famigerada dialética que o servo, em última análise, acaba dominando o senhor. No entanto, é inegável que as duas figuras-chave da política ocidental permanecem, assim, ligadas uma à outra numa relação incansável, da qual é impossível chegar ao fim de uma vez por todas.

Uma ideia radical de anarquia, então, não pode senão se libertar da dialética incessante do servo e do escravo, do minister e do magister, para se colocar decididamente na diferença que os divide. O tertium que aparece nessa lacuna não será mais nem administração nem Estado, nem minus nem magis: antes, entre eles será como um resto, que expressa sua impossibilidade de coincidir. A anarquia é, antes de tudo, a abjuração radical não tanto do Estado, nem simplesmente da administração, quanto, sobretudo, da reivindicação do poder de fazer coincidir Estado e administração no governo dos homens. É contra essa pretensão que o anarquista luta, em última análise, em nome desse ingovernável, que é o ponto de fuga de toda comunidade entre os homens.

 26 de fevereiro de 2023

 

 


[1] SUNSTEIN, Cass R.; VERMEULE, Adrian. Law and Leviathan, Redeeming the Administrative State. Cambridge: Harvard University Press/Belknap Press, 2020.

 


O tradutor: Davi Pessoa é professor do Instituto de Letras (UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO). Autor de Terceira Margem: Testemunha, Tradução (2008), Dante: poeta de toda a vida, com Maria Pace Chiavari (2015) e Pasolini: retratações (2019), com Manoel Ricardo de Lima.  Atua também como tradutor, tendo já traduzido livros de Giorgio Agamben, Pier Paolo Pasolini, Donatella Di Cesare, Roberto Esposito, Furio Jesi, Elsa Morante, Italo
Svevo, entre outros.

 

 





nota polichinello


* Alfredo Cospito é um anarquista insurrecional de Torino (norte da Itália), com décadas de militância, o que o fez sofrer a repressão do Estado italiano desde muito jovem, indo para a prisão nos anos 80, quando foi preso por se declarar insubmisso ao serviço militar.

 

 Em 2012 ele participou de uma ação-direta contra Roberto Adinolfi, diretor da empresa nuclear e bélica, ANSALDO NUCLEARE, sendo baleado na perna. Ação reivindicada pela Federação Anarquista Informal, pela qual Alfredo foi condenado em 2014 a 11 anos de prisão.

 

Em 2016 o Estado italiano realizou a operação Scripta Manent - em decorrência de uma ação anarquista contra uma escola de cadetes Carabinieri em Turim, sem vítimas ou feridos -, prendendo 32 anarquistas e fechando várias publicações e sites. Nesta operação, mesmo estando encarcerado, Alfredo foi condenado a 20 anos de prisão. 

 

Em julho de 2022 o Supremo Tribunal de Cassação  reclassificou o incidente de 2012 como massacre contra a segurança do Estado - crime punível com prisão perpétua.

 

Desde 2022 foi transferido para o regime 41 BIS, criado nos anos de chumbo da repressão italiana para isolar prisioneiros-anticapitalistas, com visitas restritas a uma hora por mês, sem acesso a jornais, livros e outras privações.  


 

 

 


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