Claudio Parmeggiani, Senza título, 2022 |
Traduzir: ser-com fantasmas
Davi
Pessoa
Maurice Blanchot, em seu ensaio “Traduire”,
incluído no livro L’amitié (1971), escreve: “Sabemos o quanto devemos aos
tradutores e, ainda mais, à tradução? Acredito que não. Mesmo se sentimos
gratidão pelos homens que se adentraram corajosamente nesse enigma – a tarefa
de traduzir –, mesmo se os saudamos de longe como os mestres ocultos da nossa
cultura, ligados a eles e docemente submetidos ao seu zelo, nosso
reconhecimento permanece silencioso, um pouco sustentado, além do mais, pela
humildade, pois não somos capazes de sermos seus reconhecedores”.[1]
Será que a gratidão e nosso reconhecimento
aos tradutores não se manifestam porque ainda vivemos numa época em que se
acredita ser uma pretensão maligna a arte de traduzir? E se especularmos neste
sentido,[2]
será que tal pretensão maligna, ou poderíamos chamá-la traição, se dá pelo fato
de louvarmos e consagrarmos o dito texto “original” a tal ponto de criarmos um Deus
intocável? Ou seria por uma nossa incapacidade de nos entregarmos ao estrangeiro?
Seria nossa resistência de compreendermos os confins para além de um limite
circunscrito?[3]
E se pensarmos que todo confim é também um espaço de contato e contaminação?
Uma cultura mediante a tradução se entrega ao estrangeiro ao mesmo tempo em que
se contamina dele? Por que traduzir significou, no decorrer de um longo
período, uma sorte de pretensão maligna? Segundo Blanchot, “traduzir [...]
permaneceu por muito tempo, em certas culturas, como uma sorte de pretensão
maligna. Uns não queriam que se traduzisse na sua língua, outros, sim, e a
guerra foi imprescindível para que essa traição, em sentido exato, se
realizasse: entregar ao estrangeiro a verdadeira expressão de um povo”.[4]
Contudo, o tradutor ainda pode ser considerado culpado por uma impiedade ainda
muito mais feroz, pois como “inimigo de Deus, pretende reconstruir a Torre de
Babel tirando ironicamente vantagem e proveito da punição celeste que separa os
homens, confundindo as línguas. Num tempo se acreditava poder remontar a uma
linguagem originária, palavra importante que bastaria proferi-la para afirmar a
verdade”.[5]
Porém, se especulássemos a não existência
dessa inimizade contra Deus, visto que ele já está morto ou que não existe ainda?
No primeiro caso, poderíamos pensar na queda dos valores transcendentais, cujos
pressupostos se centravam na ideia do poder soberano vinculado a um único Deus;
no segundo caso, poderíamos pensar na possibilidade de uma existência por vir,[6]
sendo esta, ao mesmo tempo, imanente e fantasmática. Imanente, pois se dá na
ambivalência entre paragem (manere) e passagem (manare); fantasmática, pois
essa existência por vir sobrevive na forma de fantasmas. Se ser escritor é
colocar-se no lugar do morto, do mesmo modo, ser tradutor é proliferar a
linguagem desses mortos.
O filósofo Franco Rella, em “Produrre e
vivere l’assenza” [Produzir e viver a ausência], argumenta: “O espaço infinito,
não atravessável, que se abre entre o eu que não é mais eu, e o outro que não é
nada mais do que eu, é o espaço da própria morte, no sentido de que a morte é
também impessoal, é o neutro. Morre-se”.[7]
Maurice Blanchot, ao relacionar a
literatura e o direito à morte, está pensando nesse sentido? Se o eu da
escritura encaminha-se para a dissolução de sua identidade, então poderíamos
dizer que escrever não é apenas produzir a ausência de obra, mas produzir tanto
a ausência do eu que escreve como a ausência presente na morte.[8]
Portanto, não é apenas uma questão de “eu não escrevo”, nem de “eu não escreve”,
mas, sim, de “escreve-se”, “inscreve-se”, “excreve-se”. Em última análise: morre-se.
O tradutor, caso se lance nesse hiato
aberto pela própria escritura, aprende a viver entre a vida e a morte, ou seja,
precisamente nessa abertura, não podendo tomar nem a vida nem a morte como duas
coisas absolutas. Assim, para conseguir viver nessa relação, ele precisa da
intervenção de fantasmas. Ou melhor, precisa ser-com os fantasmas, apontando
uma nova possibilidade ética com a memória, com o esquecimento, com a
escritura, com a reescritura, com a linguagem, com o abismo aberto na linguagem
e pela linguagem, com o estrangeiro, com os confins, seus lindes, limites e
limiares,[9]
ou, ainda, aprendendo a lidar com a espectrologia da própria leitura. Aqui,
estamos nos reportando, não por acaso, ao preâmbulo de Spectres de Marx
(1993, Galilée) de Jacques Derrida. Importante não esquecermos que alguns anos
antes, Derrida publicaria o ensaio “Des tours de Babel”, em 1987, presente no
livro Psyché, no qual afirmaria que “a tradução, o desejo de tradução não é
pensável sem essa correspondência com um pensamento de Deus”.[10]
Este, com seu nome, tornou-se, do mesmo modo, um endividado, pois o nome
próprio pertence e não pertence ao mesmo tempo à língua.[11] A tradução, portanto, segundo o
filósofo, torna-se necessária e impossível como o efeito de uma luta pela apropriação
do nome, ou melhor, a tradução é sempre um texto a-traduzir,[12]
tal como discutido por Derrida, ou uma traduzibilidade, assim como a pensava
Walter Benjamin.[13]
É interessante perceber, no entanto, que uma possível especulação em torno da
tradução, do desejo da tradução, sem uma correspondência com um pensamento de
Deus, caso seja levado em consideração que está morto, não nos exime de
afrontar tal correspondência, assim como não nos exime de confrontá-la caso
pensemos que esse mesmo Deus, que impõe o seu nome, não existe, visto que,
assim, deveríamos levar esta posição até as últimas consequências, tomando
posição de que Deus nunca existiu e de que nunca existirá.
Tal luta pela apropriação do nome coloca,
também, certos limites às teorias da tradução. Quais seriam? A mais óbvia,
porém ainda recorrente, é compreender a tradução como mera passagem de uma
língua a outra, não considerando suficientemente a possibilidade de várias
línguas estarem implicadas em um texto. Aliás, como traduzir um texto escrito
em diversas línguas ao mesmo tempo? Como devolver-lhe o efeito de pluralidade?
Derrida questiona: “E se se traduz para diversas línguas ao mesmo tempo,
chamar-se-á a isso traduzir?”.[14]
Ou seja, há muitos lábios murmurando em um texto, pois os fantasmas que estão
ali falam também em várias línguas. Possibilitar a sobrevivência desses
balbucios é que parece ser a grande tarefa do tradutor, pois eles possibilitam
manter a traduzibilidade em potência, sempre como algo a-traduzir: a
impossibilidade da tradução é, então, a necessidade (possibilidade) como
impossibilidade. Assim, seguir os vestígios se torna a grande aventura, pois a
tradução reativa uma espécie de desastre na linguagem e pela linguagem.
A literatura se produz na linguagem e se
refere à linguagem, porém, ao mesmo tempo, ela produz um corte preciso no
referente, e é justamente nesse corte que fazemos experiência com ela. Do mesmo
modo, uma leitura referencial não é uma leitura pertencente ao universo da
literatura. A literatura não pertence à ordem referencial que serve para a
comunicação. Aliás, o que comunicar? A tradução, tal como pensada por Derrida,
“não tem por destinação essencial comunicar”,[15] ou, ainda, como Walter Benjamin
argumenta: “o que ‘diz’ uma obra poética? O que comunica? Muito pouco a quem a
compreende. O que lhe é essencial não é comunicação, não é enunciado”.[16]
Derrida e Benjamin, porém, se referem aos textos poéticos e sagrados. Contudo,
não poderíamos expandir essa noção à própria literatura? Esta nos impõe uma
tarefa espectrológica, que, por sua vez, é a própria dimensão da leitura, a
saber, como ler fantasmas, como nos lermos diante dos fantasmas, como traduzir
fantasmas?
O filósofo Quentin Meillassoux, em seu
ensaio “Deuil à venir, dieu à venir”[17] [Luto por vir, deus por vir], publicado
na revista Critique, em 2006, faz a seguinte pergunta: “O que é um
fantasma?” E nos dá uma resposta: “Um morto que não foi adequadamente chorado,
que nos persegue, perturba-nos, reativando a passagem para o ‘outro lado’, onde
aquele que partiu pode nos acompanhar a uma distância suficiente para que
possamos viver nossa própria vida sem esquecê-lo, mas também sem morrer a sua
morte – sem ficar preso na repetição de seus momentos finais”.[18]
Mas como poderíamos viver tal luto? Para que o luto seja efetivado, então, é
necessário, de acordo com Meillassoux, viver com espectros essenciais,
dando vida a esses fantasmas. A questão que nos é colocada, portanto, pode ser
a seguinte: o luto se dá em que condições?
Situar-se diante do fantasma é um
modo singular-plural de contato. Os fantasmas não se autonomeiam e não se
deixam nomear, não pertencem a uma linhagem; eles são hóspedes estrangeiros que
rompem com a lógica da lei da hospitalidade.[19] Escutar o estranhamento, ser tocado por
esse corpo estranho, produzir estranhamento como repetição diferida. A tradução
– um modo de ser-com fantasmas – retira o original de seu lugar sagrado,
profanando-o. Neste sentido, a tradução pode nos evocar uma experiência
singular, tal como quando nos encontramos diante de uma tumba.
Encontrar-se diante de tumbas é uma experiência,
do mesmo modo, paradoxal. Elas não apenas se referem a alguém que nos é muito
próximo. Elas, igualmente, nos atravessam. Encontramo-nos diante delas
implicados na presença desse acontecimento singular, pois aquele que nos era
tão próximo, tão semelhante, passa a ser, com a mesma força, dissemelhante.
Portanto, estar face a face com uma tumba nos permite pensar o impensável, a
saber, a morte. O contato com a tumba nos permite também pensar a relação entre
presença e ausência. Por quê? Ali não é simplesmente a morada de quem não se
encontra mais entre nós; a morte, ali, não é somente a do outro, apenas lhe dizendo
respeito. Os ornamentos colocados sobre as tumbas parecem desnaturalizar o
nosso contato com a morte, como se ela não fizesse parte da nossa vida. A morte
não está situada em um além, reservada ao espaço exclusivo do morto. Ela nos
envolve, atravessa-nos, deixa um rastro em nossa experiência. Se for verdade
que as tumbas podem nos propiciar uma experiência de paragem e de passagem na e
pela soleira, ou seja, se elas criam o ritual do luto e da memória, visto que o
morto não se encontra fora de nós, apartado do nosso corpo, então não deveria
nos surpreender que essa mesma experiência nos possibilite novas estratégias
para lidarmos com mais intimidade com o nosso próprio corpo. Ou seja, o corpo
que se distancia – embora ainda presente em nossa memória – pode nos aproximar
daquilo que nos é mais íntimo, isto é, o nosso corpo. Quando somos lançados no
mundo ocorre uma das experiências mais paradoxais, pois é também o momento – e
cada vez mais em nossos dias, com todas as estratégias biopolíticas a que
estamos submetidos – em que nos distanciamos dele. Portanto, o desafio passa a
ser o de operar uma dobra na própria soleira, em que o interior toca o exterior
e vice-versa. Ou melhor: necessitamos efetuar um retorno à morte, tocando de
perto uma parte íntima de nossa vida.
Talvez, por isso, a risada fria de Goethe
diante do gesto de Hölderlin, ao traduzir no limiar da loucura Antígona e Édipo,
assim como lemos no ensaio “Traduire” de Blanchot. Traduzir é se encontrar
profundamente nessa intimidade perigosa, possibilitando a abertura de novos
sentidos, e não a apreensão e restituição de um sentido. Não à toa, Blanchot
dedica seu livro L’amitié a Georges Bataille; do mesmo modo, não por acaso que
Blanchot confronta o famoso prefácio de Benjamin,[20] trazendo à tona a risada de Goethe e a
loucura de Hölderlin, pois, em última análise, sabia que não há redenção na
tradução, assim como não há redenção na linguagem, pois tal como pensava
Blanchot, tanto a queda como o salto fazem parte de uma mesma solidão: a
solidão essencial. No entanto, encontrar-se nessa solidão essencial, que é,
aliás, muito rumorosa, é abrir-se à possibilidade de ser-com fantasmas.
Traduzir, afinal, é um gesto alucinado.
[1] BLANCHOT, Maurice.
“Traduire”, In: L’amitié. Tradução do ensaio Davi Pessoa Carneiro. Paris: Editions
Gallimard, 1971, p. 69.
[2] Especular, aqui,
toca de perto a reflexão de Josefina Ludmer, em Aqui América Latina, ao
argumentar: “Especular: literalmente e em todos os sentidos. Como adjetivo (do
latim, speculãris), com o espelho e suas imagens, duplos, simetrias,
transparências e reflexos. Especular como verbo (do latim speculãri): pensar e
teorizar (com e sem base real, tudo poderia ser uma mera especulação). Ao mesmo
tempo tramar e calcular os ganhos. Com um sentido moral ambivalente”. In:
LUDMER, Josefina. Aqui América Latina. Tradução Rômulo Monte Alto. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 7.
[3] Segundo o filósofo
Massimo Cacciari, “Confim se pode dizer de duas maneiras. Em geral, o termo
parece indicar a ‘linha’ ao longo da qual dois domínios se tocam: cum-finis.
Dessa forma, o confim distingue, tornando comum; estabelece uma distinção
determinando uma ad-finitas. Fixado o finis (e em finis ressoa provavelmente a
mesma raiz de figere) “inexoravelmente” se determina um “contato”. Mas – antes
de desenvolver essa ideia essencial, que concresce na nossa linguagem –
entendemos por ‘confim’ limen ou limes? O limen é a soleira, que o deus
Limentinus guarda, o passo através do qual se penetra em um domínio ou se sai
dele. Através da soleira somos acolhidos, ou eliminados. Ela pode se dirigir ao
“centro”, ou abrir para o i-limite, para aquilo que não possui forma ou medida,
‘onde’ fatalmente nos perderíamos. Limes é, ao invés, o caminho que circunda um
território, que engloba a sua forma. Sua linha pode ser oblíqua, por certo (limus),
acidentada, todavia, ela equilibra, de uma certa forma, o perigo representado
pelas soleiras, pelos passos, pelo limen. Onde bate o acento quando dizemos
confim, limite: sobre o continuum do limes, do espaço de confim, ou sobre a ‘porta
aberta’ do limen? E, todavia, não pode existir confim que não seja limen e ao
mesmo tempo limes”. In: CACCIARI, Massimo. “Nomes de lugar: confim”. Tradução
Giorgia Brazzarola. Publicado na Revista de Letras, São Paulo, v. 45, n. 1,
2005, pp. 13-22. Acessado, em 10/11/2013: http://seer.fclar.unesp.br/letras/article/view/56
[4] BLANCHOT, Maurice.
“Traduire”, In: op. cit., p. 69.
[5] Ibidem, p. 70.
[6] Importante
ressaltar que por vir não quer dizer futura, mas muito mais inoperante, onde
aquilo que está por vir não cessa de chegar, resistindo sempre a uma apreensão
totalizante. [N. A.]
[7] RELLA, Franco. La
responsabilità del pensiero: il nichilismo e i soggetti. Milano: Garzanti,
2009, p. 69.
[8] “Se quisermos
trazer a literatura ao movimento que torna acessível todas as ambiguidades, ele
está ali: a literatura, como a palavra comum, começa com o fim que, somente
ele, permite compreender. Para falar, devemos ver a morte, vê-la atrás de nós.
Quando falamos, nós nos apoiamos num túmulo, e esse vazio do túmulo é o que faz
a verdade da linguagem, mas ao mesmo tempo o vazio é realidade e a morte se faz
ser. Existe ser – isto é, uma verdade lógica e expressável – e existe um mundo
porque podemos destruir as coisas e suspender a existência. É nisso que podemos
dizer que existe ser, porque existe o nada: a morte é a possibilidade do homem,
é sua chance, é por ela que nos resta o futuro de um mundo realizado; a morte é
a maior esperança dos homens, sua única esperança de serem homens”. BLANCHOT,
Maurice. A parte do fogo. Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco,
2011, p. 344.
[9] Recomendo a
leitura do ensaio “Lindes, limites, limiares” de Raúl Antelo, publicado no Boletim
de Pesquisa – Nelic, edição especial “Lindes/Fronteiras”, 2008, pp. 04-27.
Acessado em 10/11/2013: https://periodicos.ufsc.br/index.php/nelic/issue/view/994/showToc
[10] DERRIDA, Jacques. Torres
de Babel. Tradução Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 37.
[11] Ibidem, p. 40.
Segundo Derrida, “se a estrutura do original é mercada pela exigência de ser
traduzido, é que, fazendo disso a lei, o original começa por endividar-se também
em relação ao tradutor. O original é o primeiro devedor, o primeiro demandador,
ele começa por faltar – e por lastimar após a tradução. Essa demanda não é
apenas do lado dos construtores da torre que querem se fazer um nome e fundar
uma língua universal se traduzindo dela mesma; ela também obriga o
desconstrutor da torre: dando seu nome, Deus também invocou a tradução, não
apenas entre as línguas tornadas subitamente múltiplas e confusas, mas
primeiramente de seu nome, do nome que ele clamou, deu e que deve traduzir-se
por confusão para ser entendido, portanto, para deixar entender que é difícil
traduzi-lo e assim entendê-lo. No momento em que ele impõe e opõe sua lei
àquela da tribo, ele é também demandador da tradução. Ele também está
endividado”.
[12] Ibidem, p. 41. “O
duplo endividamento passa entre os nomes. Ele ultrapassa a priori os portadores
dos nomes se se entendem por isso os corpos mortais que desaparecem atrás da
sobrevida do nome. Ora, um nome próprio pertence e não pertence, digamos, à
língua, nem mesmo, precisemos agora, ao corpus do texto a traduzir, do a-traduzir.
A dívida não empenha sujeitos vivos, mas nomes à margem da língua ou, mais
rigorosamente, o traço contratando a relação do dito sujeito vivo ao seu nome
enquanto que este se mantém à margem da língua. E esse traço seria aquele do a-traduzir
de uma língua a outra, dessa margem a outra do nome próprio”.
[13] Segundo Walter
Benjamin, “a tradução é uma forma. Para apreendê-la como tal, é preciso
retornar ao original. Pois nele reside a lei dessa forma, enquanto encerrada em
sua traduzibilidade. A questão da traduzibilidade de uma obra possui um duplo
sentido. Ela pode significar: encontrará a obra alguma vez, dentre a totalidade
de seus leitores, seu tradutor adequado? Ou então, mas propriamente: admitirá
ela, em conformidade com sua essência, tradução e – em consonância com o
significado dessa forma – consequentemente a exigirá também?”. In: BENJAMIN,
Walter. “A tarefa do tradutor”, In: Escritos sobre mito e linguagem. Tradução
Susana Kampff Lages. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 102. Walter Benjamin,
portante, parece postular que a origem é sempre póstuma e postiça, já que a
tarefa do tradutor é a própria traduzibilidade e não exclusivamente a tradução.
Ainda segundo Benjamin: “A traduzibilidade é uma prioridade essencial de certas
obras – o que não quer dizer que a tradução seja essencial para elas, mas que
uma determinada significação contida nos originais se exprime na sua traduzibilidade.
É mais do que evidente que uma tradução, por melhor que seja, jamais
poderá significar algo para o original. Entretanto, graças à traduzibilidade do
original, a tradução se encontra com ele em íntima conexão”. Ibidem, p. 104.
[14] DERRIDA, Jacques. Torres
de Babel, op. cit., p. 20.
[15] Ibidem, p. 34.
[16] BENJAMIN, Walter.
“A tarefa do tradutor”, In: Escritos sobre mito e linguagem, op. cit., p. 102.
[17] MEILLASSOUX,
Quentin. “Deuil à venir, dieu à venir”, In: Critique, n. 704-705, janvier-février,
2006, p. 105-115.
[18] Ibidem, p. 105.
[19] Jacques Derrida,
em Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade,
escreve: “A questão da hospitalidade começa aqui: devemos pedir ao estrangeiro
que nos compreenda, que fale nossa língua, em todos os sentidos do termo, em
todas as extensões possíveis, antes e a fim de poder acolhê-lo entre nós? Se
ele já falasse a nossa língua, com tudo o que isso implica, se nós já
compartilhássemos tudo o que se compartilha com uma língua, o estrangeiro
continuaria sendo um estrangeiro e dir-se-ia, a propósito dele, em asilo e em
hospitalidade? É este paradoxo que vamos precisar”. In: DERRIDA, Jacques. Anne
Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade. Tradução de
Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003, p. 15.
[20] Importante lembrarmos que o ensaio “A tarefa do tradutor” (Die Aufgabe des Übersetzers) é o prefácio escrito por Walter Benjamin para sua tradução dos Tableaux parisiens de Baudelaire, publicada em 1923, em Heidelberg, Alemanha.
Claudio Parmeggiani, Parla anche tu, 2005 |
Traduzir
Maurice
Blanchot
Sabemos o quanto devemos aos tradutores
e, ainda mais, à tradução? Acredito que não. Mesmo se sentimos gratidão pelos
homens que se adentraram corajosamente nesse enigma – a tarefa de traduzir –,
mesmo se os saudamos de longe como os mestres ocultos de nossa cultura, ligados
a eles e docemente submetidos ao seu zelo, nosso reconhecimento permanece
silencioso, um pouco sustentado, além do mais, pela humildade, pois não somos
capazes de sermos seus reconhecedores. A partir de um ensaio de Walter
Benjamin, no qual o excelente ensaísta nos fala da tarefa do tradutor, vou
tirar algumas considerações sobre essa forma original de nossa atividade
literária. E se dizemos, com ou sem razão, que são os poetas, os romancistas,
até mesmo os críticos, os responsáveis pelo sentido da literatura, é necessário
citar, com a mesma importância, os tradutores, ou seja, os escritores da
espécie mais rara e, de fato, incomparáveis.
Traduzir, agora me veio à mente,
permaneceu por muito tempo, em certas culturas, como uma espécie de pretensão
maligna. Algumas pessoas não queriam que se traduzisse em sua língua, outras,
sim, e a guerra foi imprescindível para que essa traição, em sentido exato, se
realizasse: entregar ao estrangeiro a verdadeira expressão de um povo.
(Lembremo-nos do desespero de Etéocles: “Não permitam que seja arrancada pelas
raízes, quando tomada pelo inimigo, uma cidade que fala a língua grega”)[1]. Mas
o tradutor é culpado por uma impiedade ainda maior. Inimigo de Deus, ele pretende
reconstruir a Torre de Babel tirando ironicamente vantagem e proveito da
punição celeste que separa os homens, confundindo as línguas. Em um tempo,
acreditava-se poder remontar a uma linguagem originária, palavra importante,
tanto que bastaria proferi-la para afirmar a verdade. Benjamin conserva algo
desse sonho. As línguas, diz ele, compreendem a mesma realidade, mas não do
mesmo modo. Quando digo Brot e quando digo pain, ouço a mesma
coisa de maneiras diferentes. Tomadas uma a uma as línguas são incompletas. Com
a tradução não nos contentamos em substituir uma modalidade por outra, um traço
por outro, mas fazemos referência a uma linguagem superior, entendida como a
harmonia ou como a unidade complementar de todos esses diferentes modos de
compreensão, podendo exprimir-se de forma ideal na convergência do mistério
entre todas as línguas faladas por todas as obras. Daí o singular messianismo
do tradutor, quando atua para colocar as línguas em direção a essa linguagem
última já testemunhada em cada língua presente, no devir que ela conserva e da
qual a tradução se apropria.
Trata-se, evidentemente, de um jogo
utópico de ideias, pois se supõe que toda linguagem tenha um único e mesmo modo
de abordagem, e sempre com o mesmo significado, e que todos os modos de
entendimento podem se tornar complementares. No entanto, Benjamin sugere outra
coisa: cada tradutor vive da diferença das línguas, cada tradução se funda
nessa diferença, mesmo seguindo, aparentemente, o desenho perverso no momento
em que a suprime. (A obra bem traduzida é louvada em dois modos contrastantes:
não parece traduzida, diz-se; ou, de outra forma, é realmente a mesma obra,
acredita-se que seja extraordinariamente idêntica; mas, no primeiro caso, a
origem da obra é apagada em benefício da nova língua; no segundo caso, em
benefício da obra se apaga a originalidade das duas línguas; em cada caso, algo
de essencial se perdeu). Na realidade, a tradução não está totalmente destinada
a fazer desaparecer a diferença, que, pelo contrário, é seu jogo: faz-se
constantemente alusão a ela, dissimulando-a, porém, talvez, revelando-a e por
vezes acentuando-a, ou seja, ela é a própria vida dessa diferença, encontra
nesta a sua nobre função e também a sua fascinação, quando chega a unir
orgulhosamente as duas línguas com uma força unificante semelhante àquela de
Hércules ao aproximar as duas margens do mar.
Mas é preciso acrescentar: a obra está
madura e é digna de ser traduzida apenas se esconde, de algum modo, – caso
esteja à disposição – essa diferença, ou porque faz referência originalmente à outra língua,
ou porque reúne de maneira privilegiada as possibilidades de cada língua viva,
quando é diferente de si mesma, estrangeira a si mesma. O original jamais é
estático e tudo aquilo que é certo acontecer numa língua num dado momento, tudo
aquilo que nela indica ou convoca outro estado, às vezes perigosamente outro, afirma-se
na deriva solene das obras literárias. A tradução está ligada a esse devir,
pois o gesto de “traduzir” o realiza, e só se torna possível mediante esse
movimento e essa vida de que se apropria, por vezes, simplesmente para
libertá-la, ou para mantê-la com muito esforço. Em relação às obras-primas
clássicas que pertencem a uma língua que não falamos, elas exigem a tradução
justamente pelo fato de serem as únicas depositárias da vida de uma língua
morta e as únicas responsáveis pelo porvir de uma língua sem porvir. Vivem
unicamente através da tradução; além disso, são, mesmo em sua língua original,
constantemente retraduzidas e reconduzidas em direção àquilo que têm de mais
singular: voltadas à sua estranheza diante da origem.
O tradutor é um escritor de uma
originalidade singular, precisamente onde parece não reivindicar nenhuma
originalidade. Esse é o maior segredo da diferença das línguas não abolida, mas
utilizada para despertar algo em si mesma, provocando mudanças violentas ou
sutis, por exemplo, uma presença daquilo que existe de diferente, originalmente,
no original. Como afirma, de fato, Benjamin, não se trata aqui de uma
semelhança: caso se queira que a obra traduzida se assemelhe à obra a ser
traduzida, então, não há tradução literal possível. Trata-se, ao contrário, de
uma identidade a partir de uma alteridade: trata-se da mesma obra em duas
línguas estrangeiras, seja em razão de sua estranheza, seja porque elas tornam visível
aquilo que fará com que essa obra sempre pareça outra, movimento a partir do
qual é necessário ressaltar a luz que iluminará, em transparência, a tradução.
Sim, o tradutor é um homem estranho,
nostálgico, que sente em sua língua a falta de tudo aquilo que a obra original
(que não pode, de resto, alcançar, já que não mora ali, tal como um eterno
hóspede que não a habita) lhe preanuncia sob a forma de afirmações presentes.
Deriva de tais afirmações, segundo os especialistas, tanto que ao traduzir ele
se encontra sempre em maior dificuldade em sua língua do que embaraçado pela
língua que não possui. Não vê apenas tudo o que falta à língua francesa (por
exemplo), para reencontrar o texto estrangeiro que domina, mas possui agora a
língua francesa de modo carente, pois repleta dessa privação que deve ser preenchida
pelos recursos de outra língua, ela mesma tornada outra na única obra, na qual
se recolhe momentaneamente.
Benjamin cita, através da teoria de
Rudolf Pannwitz, uma passagem surpreendente: “Nossas versões, mesmo as
melhores, partem de um princípio falso quando se propõem a germanizar o
indiano, o grego, o inglês, ao contrário de tornar indiana, grega e inglesa a
língua alemã. Tais versões têm um respeito muito maior pelos usos de sua língua
do que pelo espírito da obra estrangeira (...). O erro fundamental do tradutor
é ficar conformado com o estado contingente de sua língua, ao contrário de
deixá-la poderosamente estremecida e agitada pela língua estrangeira”. Sugestão
ou reivindicação perigosamente atraente. Deixa entender que cada língua poderia
tornar-se todas as outras, ou que, ao menos, deveria mover-se sem danos em cada
nova direção. Supõe que o tradutor encontrará muitos recursos na obra a ser
traduzida e que também encontrará autoridade suficiente em si mesmo para
provocar essa mudança brusca; presume, enfim, uma tradução tanto mais livre e
inovadora quanto mais for capaz de uma maior literalidade verbal ou
sintática, que tornaria inútil, no limite, a tradução.
Pannwitz, para comprovar suas teses, pôde
apelar para nomes importantes, tais como Lutero, Voss, Hölderlin e George, que
não hesitaram, sempre que assumiram o papel de tradutores, em romper com os
esquemas da língua alemã, com o intuito de ampliar suas fronteiras. Em última análise,
o exemplo de Hölderlin mostra o risco que corre o homem fascinado pela potência
da tradução: as traduções de Antígona e de Édipo foram, mais ou
menos, suas últimas obras, na soleira da loucura, obras extremamente meditadas,
controladas, escolhidas e conduzidas com inflexível firmeza. Seu objetivo não
era levar o texto grego à língua alemã, nem levar a língua alemã às fontes
gregas, mas queria, por outro lado, unificar as duas forças que trazem em si:
uma, com as vicissitudes do Ocidente, a outra, com as do Oriente, na
simplicidade de uma língua total e pura. O resultado é quase terrível. Ele
acredita ter descoberto nas duas línguas um pacto tão profundo, uma harmonia
tão fundamental, capaz de substituir seu sentido ou capaz de fazer do hiato que
se abre entre elas a origem de um novo sentido. O efeito é tão poderoso que passamos
a entender a risada fria de Goethe. De que ria Goethe? De um homem que não era
mais nem poeta, nem tradutor, mas que se encaminhava corajosamente em direção
ao centro em que acreditava encontrar reunido o puro poder de unificação, assim
daria um sentido para além de todo sentido determinado e limitado. Podemos
entender que essa tentação tenha sido provocada em Hölderlin pela tradução;
porque o homem pronto a traduzir está numa intimidade constante, perigosa,
exemplar, com o poder unificador da obra em toda relação prática, igualmente
como em toda linguagem, que o coloca, ao mesmo tempo, na pura cisão inicial. É
dessa familiaridade que ele traz o direito de ser, entre os escritores, o mais
orgulhoso ou o mais secreto – com a convicção de que traduzir, afinal, é uma
loucura.
***
BLANCHOT,
Maurice. “Traduire”, In: L’amitié. Tradução do ensaio de Davi Pessoa
Carneiro. Paris: Editions Gallimard, 1971, pp. 69-73.
[1] [Ésquilo, Sete contra Tebas,
vv.78-79].
***
Davi Pessoa é
professor de língua e literatura italiana (UERJ) e do Programa de Pós-Graduação
em Memória Social (UniRio).
Autor
de Terceira Margem: Testemunha, Tradução (Editora da Casa,
2008), Dante: poeta de toda a vida, com Maria Pace
Chiavari (Biblioteca Nacional, 2015) e Pasolini: retratações (7Letras,
2019), com Manoel Ricardo de Lima.
Atua
também como tradutor, tendo já traduzido livros de Giorgio Agamben, Pier
Paolo Pasolini,
Donatella Di Cesare, Roberto Esposito, Furio Jesi, Elsa Morante, Italo Svevo, entre outros.
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