7/11/2024

POESIA E IRA | Marielle Macé

 




 

Tradução: Marcelo Jacques de Moraes*

 

 

Pode-se tomar a consideração – essa percepção que é também um cuidado, esse olhar que é também um respeito – como uma virtude de poeta.

Francis Ponge, por exemplo, exigia que se tivesse “respeito” pela realidade, até na maneira que se tem de mantê-la sob os olhos e falar dela; era isso que convocava nele o furor da expressão [1]. Em “Margens do Loire”, ele inventava algo como um direito do real, um direito do real diante do qual nós, falantes, não teríamos senão deveres, e que poderia até apelar e apresentar queixa contra nós quando justamente nos atabalhoássemos ao considerá-lo e qualificá-lo.

Reconhecer o maior direito do objeto, seu direito imprescritível, oponível a qualquer poema… Já que em relação a nenhum poema jamais deixa de haver apelação a mínima por parte do objeto, assim como não deixa de haver acusação de fraude. O objeto é sempre mais importante, mais interessante, mais capaz (cheio de direitos [2] 

Furor da expressão, furor pela expressão: ira contra todos os atabalhoamentos e desatenções de toda espécie, sobretudo ao tomar a palavra; não apenas a ira, portanto, mas o espaço particular em que a ira se articularia a certa intensidade de atenção, uma vigilância quase procedural quanto às formas tão múltiplas da vida e às verdadeiras ideias que nelas se engajam: uma ira tomada de justeza, uma ira poética, um pensamento de poema.

Bourdieu, outro homem de iras, não se enganara ao honrar no esforço poético de Ponge o próprio modelo da operação sociológica, aquela que consiste em “reivindicar” o real, isto é, em enfrentá-lo, em vê-lo tal como é, em compreendê-lo sem com isso apreciá-lo ou justificá-lo; em outros termos, em tomar o partido do real e conformar-se com ele. Bourdieu voltou diversas vezes a Ponge para explicitar sua atitude em relação à realidade social, em entrevistas e na obra inabitualmente militante que foi A miséria do mundo.

Eis o furor da expressão: esse nó de esforços em que a teimosia da palavra e a teimosia do real em ser o que é, em ser “tal qual”, como teria dito Valéry (nem mais indizível, justificável ou amável do que isso), se substituem incessantemente uma à outra. E isso vale muito bem a liberação de uma ira contra todas as maneiras, inclusive as doutas e virtuosas, de ser desatento.

Belas iras estas que têm por único inimigo o desatento: aquele que não vê a diferença, aquele que não vê o problema, aquele para quem “isso não é nada”; belas iras estas em que o que está ferido em mim (em que o que fere o “coração de rei” que cada um porta em si, e que Sêneca via apertar-se nos irados) é essa exigência de atenção, de vigilância, isto é, de justeza e justiça; pois a ira é esse momento em que o que é tido como pouco, negligenciado, pilhado é justamente aquilo a que me apego, ela chega até mesmo a me dizer (às vezes é uma surpresa) aquilo a que me apego, aquilo pelo que estou disposto, ou disposta, a me comprometer, a entrar na arena dos conflitos, das incertezas e das justificações.

Belas iras estas que podem então tentar dizer-se também na paciência e na dúvida: iras críticas e calmas, iras irreconhecíveis (é o caso de Michaux, furioso como poucos, em Postes angulares: “O sábio transforma sua ira de tal maneira que ninguém a reconhece. Mas ele, sendo sábio, a reconhece… às vezes”.)

Não apenas “a ira” resoluta, mas nem toda ira, não qualquer uma; pois “a ira” não é um valor, a ira não é em si um bem, ela é essa emoção que revela os valores e os bens que nos dividem, os objetos necessários de nossos conflitos: diga-me o que causa sua fúria, eu direi em que você acredita, o que importa para você (e talvez, justamente, não para mim), a que você se apega ou quer se apegar, o que você precisa proteger para preservar seu amor pela vida, dê-me suas razões e seus motivos para viver, diga-me onde está seu bem, e tentemos talvez julgar, mudar tudo isso, duvidar… (uma vez que é preciso também, como propunha Baudelaire a si mesmo, “datar sua ira”).

Pois uma ira em poesia (a de Ponge, mas também as de Baudelaire, Hugo, Pasolini, Sebald, Glissant, Deguy, Koltès…) se ergue sempre diante dos mesmos culpados: a indiferença, o ter-por-pouco, por conseguinte a violência e a dominação (sim, a dominação, todas as dominações, as que justamente aumentam de modo bastante concreto a precariedade). Poeta é aquele que vai mal ali onde o mundo vai mal. Baudelaire lembrava isso em suas Novas notas sobre Edgar Poe:

Genus irritabile vatum! Que os poetas […] sejam uma raça irritável, isso é bem sabido; mas o porquê não me parece tão geralmente compreendido. […] Os poetas nunca veem a injustiça onde ela não existe, mas com muita frequência onde olhos não poéticos de modo algum a veem. Assim, a famosa irritabilidade poética não tem relação com o temperamento, entendido no sentido vulgar, mas com uma clarividência além do comum relativa ao falso e ao injusto. Essa clarividência nada mais é do que um corolário da percepção viva do verdadeiro, da justiça, da proporção, em uma palavra do belo. Mas há uma coisa bem clara, o homem que não é (para o juízo comum) irritabilis não é de modo algum poeta.

Decerto seria preciso comparar, e até opor, essa ira do respeito, essa poesia da consideração, quase jurídica, à poesia da “compaixão” reclamada por Yves Bonnefoy: compaixão pelos mortais, cuja finitude é preciso amar uma vez que todos compartilhamos dela; compaixão pelos lugares que a bela meditação de L’Arrière-pays [Interior do país] lança; compaixão pelo vivo em sua grandeza e generalidade: “Não é que eu tenha antipatia pelo conceito, mas eu diria que o que reclamo da poesia é antes compaixão”. A compaixão é uma piedade cristã pela própria vida, por sua vulnerabilidade. Ela é bela e forte. Mas não é dela que precisamos para perceber a igualdade das vidas na distribuição desigual da precariedade. A consideração, por sua vez, é mais política, mais social, menos “humanitária”, se quisermos.

Exigir a consideração (até na emoção de piedade, aliás) é pedir que se escrutem os estados de realidade e as ideias que eles enunciam, é pedir ao mesmo tempo que se digam as coisas com justeza e que elas sejam tratadas com justiça, mantendo-as acima de tudo no âmbito de seus direitos. Sim, exigir a consideração como tarefa política e jurídica, pois apenas aqueles cujas vidas “não são ‘consideradas’ como sujeitas ao luto e, portanto, dota das de valor estão destinados a carregar o fardo da fome, do subemprego, da incapacitação legal e da exposição diferencial à violência e à morte”, como diz Judith Butler em Ce qui fait une vie [O que faz uma vida].

A consideração reclama antes de tudo o direito das vidas, menos seu reconhecimento do que sua reconhecibilidade (jurídica, política); por consequência, a vigilância, e quando for preciso a guarda, a vigília intensa, até mesmo a espionagem (speculari: espionar). Foi o que animou o trabalho de investigação concebido por Charles Heller e Lorenzo Pezzani, “Forensic Oceanography”, em que eles se transformaram em vigias das embarcações e das vidas perdidas no Mediterrâneo, defensores de seus direitos e consequentemente vigilantes dos vigilantes. Esses geógrafos se debruçaram sobre o caso de um barco abandonado à morte, the left-to-die boat, uma embarcação de migrantes que em 2011 ficou à deriva durante catorze dias numa zona vigiada pela Otan, enviou múltiplos sinais, foi várias vezes identificada, recebeu a visita de um helicóptero e cruzou a trajetória de um navio militar, mas jamais foi socorrida, e na qual 73 migrantes morreram, num eclipse silencioso das jurisdições e numa fragmentação dos espaços de controle, à margem aparente de toda responsabilidade. Ignoradas, essas vidas deixaram, contudo, rastros na água, até mesmo os de seus apelos de desamparo, e se decifrarmos atentamente esses rastros poderemos transformar o próprio mar “numa testemunha suscetível de ser interrogada”.

Siderar/considerar, portanto, como um batimento, uma respiração que conjuga a ira e a atenção, o ser afetado e o escrúpulo. Ou, como diz ainda melhor Georges Didi-Huberman diante das situações de violência e de precariedade: “Exercer duas vezes a paciência, uma vez para o pathos e outra para o conhecimento”

                                                                  


 

 e x t r a í d o  d e

SIDERAR, CONSIDERAR

migrantes, formas de vida

 Bazardo Tempo, 2018


 

Marielle Macé Nascida na França em 1973, é pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e professora de Literatura na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) e na New York University (NYU). É autora de diversos livros – dentre os quais Le temps de l’essai (Belin,2006), Façons de lire, manières d’être  (Gallimard, 2011) e Styles: Critique de nos formes de vie  (Gallimard, 2016). Faz parte do comitê de redação de revistas importantes como Critique  e Po&sie. Siderar, considerar: migrantes, formas de vida (Verdier, 2017) é seu primeiro título em língua portuguesa. Em 2023 publicou (também pela Bazar do Tempo) Nossas Cabanas: lugares de luta, ideias para vida em comum. 


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* Marcelo Jacques de Moraes é professor titular de literatura francesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tradutor e pesquisador do CNPQ. Dirige a Editora UFRJ desde outubro de 2019. É autor de A incerteza das formasO fracasso do poema. Língua contra língua. Sobre a forma, o poema e a tradução. Todos publicados pela 7Letras.



 

 

 

 



[1] Alusão à La rage de l’expression, título de um livro de Francis Ponge, referido entre nós com mais frequência por “A raiva da expressão”. Mas rage remete também, em francês – e a autora explorará esse sentido em mais de uma ocasião ao longo do livro –, a uma necessidade ou a um desejo obstinado, daí a opção por “furor”. “Margens do Loire” é uma espécie de prefácio ao livro.

[2]  Tradução de Júlio Castañon Rodrigues. Revista USP, mar. abr. maio 1989, p. 74. Disponível em: <www.revistas.usp.br/revusp/article/download/25443/27188>.