6/04/2011

A MORTE DO AMIGO / Jacques Derrida




por Jacques Derrida

Como fazer para aceder a este plural? Com o quê? Esta pergunta se escuta também como uma música. Com uma doçura ingênua, o plural parece manter-se mesmo no meio desse abandono nele observado: uma ordem após o começo, com uma frase inaudível, como um silêncio interrompido. Segue uma ordem, sim; até mesmo a obedece, se submetido ao ditado. Pergunta-se. E eu, quando me submeto a prescrever um plural para essas mortes, tenho que dobrar-me ante a lei do nome. Não há objeção que permita resistir-se, nem o pudor depois do momento de uma decisão intratável e exata, o tempo quase nulo do gatilho: terá sido dessa maneira, unicamente, de uma vez por todas. E, sem sombra de dúvida, apenas posso suportar a mera aparição de um título neste lugar. Bastava apenas o nome próprio. Apenas e por si mesmo, também, disse a morte, todas as mortes em uma. É assim, mesmo quando seu portador está ainda vivo.Embora tantos códigos e ritos busquem nos despojar deste privilégio terrífic o: o nome próprio, por si mesmo, declara, energicamente, o desaparecimento do único; quero dizer: a singularidade de uma morte inqualificável (esta última palavra, “inqualificável”, ressoa agora como uma citação de Roland Barthes que haverei de reler mais tarde). A morte se inscreve no nome mesmo, para se dispersar de imediato. Para insinuar uma estranha sintaxe – no nome de um só, responder a muitos.

Ainda não sei por que preciso deixar como fragmentos estes pensamentos dedicados a Roland Barthes, e pouco importa no fundo que possa torná-lo compreensível, até porque me obstino, mais do que na ruptura, no não acabamento. O não acabamento marcado, a interrupção pontuada, porém aberta, carente até da aresta autoritária de um aforismo. Pequenos cascalhos surgidos durante a meditação, um de cada vez, na margem de um nome como promessa de um retorno.

Por ele, para ele, por Roland Barthes: por ele, para ele desfiro estes pensamentos. O que significa que penso nele e a partir dele, não apenas através de sua obra ou me referindo a ela. Por ele, para ele. O que implica em dizer que quero dedicar a ele estes pensamentos, os ofertar a ele, destiná-los a ele.

Contudo, agora, nunca chegarão até ele. Este deve ser o ponto de parti da: não podem socorrê-lo, chegar até ele, mesmo se tivessem podido fazê-lo enquanto vivia. Então, aonde chegam? A quem e por quê? São apenas para ele em mim? Em ti? Em nós? Não é o mesmo, ocorre tantas vezes, e desde o momento em que se encontra em outro, esse outro já não é mais o mesmo. Quero dizer, o mesmo que é ele. E, não obstante, ele, Barthes, deixou de ser. Ater-se a essa evidência, a sua claridade incontestável, retornar a ela como ao mais simples e apenas a isto: que mesmo reservado ao impossível alguma coisa é ainda oferecida e permite pensar. Contudo, é uma luz que deixa algo a que pensar ou a que desejar. Saber, ou melhor, aceitar o que permite desejar, amá-lo desde uma fonte invisível de claridade.

De onde vinha a claridade singular de Barthes? De onde lhe vinha? Porque, também, precisou recebê-la. Sem simplificar nada, sem violentar os vincos nem as ressalvas, essa claridade emanava sempre de determinado ponto que não era apenas um, que se manterá invisível a sua maneira, não localizável para mim – essa claridade da qual queria, senão falar, pelo menos dar uma idéia, e falar também do que dela preservei para mim.




O manter vivo e em si é o melhor movimentoda fidelidade? Com o incerto sentimento de adentrar na carne viva acabo de ler dois de seus livros que nunca antes li. Retirei-me a essa ilha por crer que ainda nada havia se detido E acreditei tão bem, e cada livro me dizia o que teria que pensar de tal crença. Estes livros são o primeiro e o último, cuja leitura tinha adiado por razões absolutamente diferentes. No primeiro, Le degré zéro de l’écrituré [1], compreendi melhor sua força e sua necessidade, mas, acima de tudo, do quanto havia me afastado dele, e que não se reduzia apenas às maiúsculas, às conotações, à retórica e todas as marcas de uma época da qual acreditava, então, ter saído, e da qual acreditava que era preciso extrair a escrita. Porém, nesse livro de 1953, como nos de Blanchot, aos quais nos remete com freqüência, esse movimento permanece pendente. O que chamo torpe e equivocadamente: a saída. E depois La chambre Claire[2], cujo tempo companhou Barthes em sua morte, como creio que nenhum outro livro tenha velado seu autor.

Le degré zéro de l’écriture e La chambre claire são títulos felizes para um primeiro e um
último livro. Felicidade terrível. Apavoradamente vacilante por sua oportunidade e predestinação. Quero pensar agora em Roland Barthes; hoje, quando atravesso a tristeza, a minha e a que imaginei senti r sempre nele, sorridente e cansada, desesperada, solitária, tão incrédula no fundo, refinada, cultivada, epicurista, sempre cedendo e sem crispar-se, contínua, fundamental e desentendida do essencial; quero pensar nele, apesar da tristeza, como em alguém que apesar de não privar-se (acredito) de nenhum gozo, legitimamente, os deu todos a si. Não sei se é possível afirmar isto, porém, tenho a impressão de que posso estar seguro de que, como dizem ingenuamente as famílias em luto, ele teria gostado desse pensamento. Traduza-se: a imagem desse eu de Barthes, que Barthes escreveu em mim, porém, que nem ele nem eu consideramos verdadeiramente como algo essencial; essa imagem – afirmo no presente – é quem ama em mim esse pensamento, goza com ele, aqui e agora, e me sorri.

Desde que li La chambre claire, a mãe de Roland Barthes, que nunca conheci, me sorri neste pensamento, como sorri ao que ela infunde de vida e reanima de prazer. Ela lhe sorri e, portanto, também a mim, em mim, desde – porque não? – a Fotografia do Jardim de Inverso, desde a invisibilidade radiante de um olhar da qual ele apenas nos disse que foi claro, tão claro. A primeira vez que li o primeiro e o último Barthes foi com a ingenuidade admitida de um desejo, como se ao ler sem deter-me, de uma só tirada, esse primeiro e último Barthes, se tratasse de um único volume com o qual me confinei em uma ilha; foi afinal para vê-lo todo, para sabê-lo todo. A vida prosseguiria (me restava tanto ainda por ler), mas acaso uma história ia a flagrar, atada a si mesma, a História convertida em natureza nessa aliança entre elas duas, como se... Acabo de escrever as maiúsculas de Natureza e História. Ele o fazia quase sempre. Com uma freqüência massiva em Le degré zéro de l’écriture, desde seu início (“Nada pode incluir, sem afetação, sua liberdade de escritor na opacidade da língua, porque através dela toda a História se preserva completa e unida como uma Natureza”). Porém o fez inclusive no La chambre claire (“ante quem sei que se amam, penso: é o amor como tesouro o que vai desaparecer, desde o momento em que eu já não me encontre aqui, nada poderá ser sua testemunha: apenas permanecerá a Natureza indiferente. É um dilaceramento tão agudo, tão intolerável que, só contra o século, Michelet concebeu a História como um juramento de amor”).

Agora bem, ele colocava em jogo as maiúsculas que eu mesmo tinha usado por mimetismo para citar. São aspas (“assim se disse”) que longe de marcar a hipóstase, sublevam, alegam, nomeiam o menosprezo e a incredulidade. Creio que ele não acreditava nesta oposição (nem em outras). Servia se delas como de passagem. Mais tarde, quis mostrar que os conceitos, fundamentalmente opostos em aparência, adversários, eram por ele empregados um por outro, em uma composição metonímica. Era algo que podia inquietar determinada lógica, embora a opusesse vigorosamente com a maior força, a enorme força do jogo, como uma maneira ligeira de mobilizá-la ao desarticulá-la. Como se: um atrás dos outros como se fora um idioma a surgir, para finalmente entender seu negativo ante os meus olhos; como se o andar, o porte, o estilo, o timbre, o tom, o gesto de Roland Barthes, tantas rubricas obscuramente familiares e reconhecíveis entre muitas, estivessem a me revelar abruptamente seu segredo, um dos mais secretos,  escondidos por trás dos outros (eu chamo secreto, tanto uma intimidade como uma maneira de atuar: não imitável), de um só golpe, o traço único disposto subitamente à plena luz; e, não obstante, como eu haveria de reconhecê-lo no que escreveu sobre a “fotografia unária” – naturalmente contra ela, já que anula o “pungente” no “estudioso”, o punctum no studium. Eu meditei: parecia o ponto de singularidade, antes de propagar-se no traço, porém, afirmando-se continuam ente desde o primeiro livro até a sua interrupção no último quando, apesar de tudo, resistia de diversas maneiras às mutações, as agitações, aos deslocamentos de terreno, à diversidade dos objetos, dos corpos e dos contextos.

Ocorria como se à instância do invariante me fosse entregue tal como finalmente era - em algo, em um detalhe. Sim. Exigia de um detalhe esse êxtase revelador, o acesso instantâneo a Roland Barthes (a ele, apenas a ele), a graça de um acesso alheio a toda busca. Esperava a revelação deste detalhe agora totalmente visível e dissimulado (evidente) que dos grandes temas, os conteúdos, os teoremas, as estratégias das escrituras que acreditava conhecer e reconhecer facilmente desde um quanto de século atrás – através dos distintos “períodos” de Roland Barthes (os que ele mesmo distinguiu em Roland Barthes par Roland Barthes[3] como “fases” e “gêneros”). Busquei como ele, e na situação em que escrevo desde a sua morte, em que certo mimetismo é um dever (acolhê-lo, identificar-se com ele para lhe deixar a palavra, e fazê-lo presente e representá-lo com fidelidade) e, na pior das tentações, a mais indecente, a mais mortífera, o dom e a suspensão do dom, tratar de escolher. Como ele, eu buscava o frescor de uma leitura nessa relação com o detalhe.







Seus textos me são familiares e ainda desconhecidos. Essa é a minha certeza, como ocorre verdadeiramente com todos os textos que me importam. A palavra “frescor” é a sua, joga um papel essencial na axiomática de Le degré zéro de l’écriture. O interesse pelo detalhe também foi o seu. Benjamin via no engrandecimento analítico do fragmento ou do significante ínfimo um lugar de cruzamento entre a era da psicanálise e aquela da reprodutibilidade técnica, da cinematografia, da fotografia, etc. (Tendo despertado tanto pelos recursos da análise fenomenológica como pela estrutural, ultrapassando-os, o ensaio de Benjamin e o último livro de Barthes podiam muito bem ser os dois textos fundamentais sobre a questão do “Referente” na modernidade técnica.) Punctum traduz ademais, em La chambre claire, um valor à palavra “detalhe”: um ponto de singularidade que penetra a superfície da reprodução – e inclusive da produção, - das analogias, das semelhanças, dos códigos. Essa singularidade penetrada me alcança de um golpe, me fere ou me assassina e, em princípio, parece olhar diretamente para mim. Está em sua definição aquilo que se dirigia a mim. A mimse dirige a singularidade absoluta do outro, o Referente cuja imagem própia eu não posso suspender mesmo quando sua “presença” se oculta para sempre (razão pela qual a palavra “Referente” podia incomodar, se o contexto não a modificara), quando ele se encontra fundido já, enquanto passado.

A mim, se encaminha também a solidão que desfaz a trama do mesmo, as redes ou os ardis da economia. Porém, é sempre a singularidade do outro, lugar que incide em mim sem dirigir-se a mim, sem que esteja presente em mim e o outro possa ser eu; eu antes de ter sido ou, tendo sido, eu morto agora, no futuro anterior ou no passado anterior da fotografia. Em meu nome, acrescentarei. Mesmo que, como sempre, pareça ligeiramente marcada; creio que esse alcance do Dativo e do Acusativo que me conduz ou me destina o punctum, é essencial à categoria, em todo caso, na forma que se encontra empregada em La chambre claire. Ao relacionar duas exposições diferentes do mesmo conceito, vêse com claridade que o punctum me remete ao instante e ao lugar de onde eu o inscrevo; é assim que o pungente da fotografia me fere. Em sua superfície mínima, o ponto mesmo se divide: esta dupla pontuação desorganiza em seguida o unário e o desejo que ali se ordena. Primeira exposição: “é ele (o punctum) o que surge da cena, como uma flecha, e me transpassa. Existe uma palavra em latim para designar esta ferida, esta espetada, este corte feito por um instrumento pontiagudo; esta palavra me vem tanto mais quando[4] remete, também, à idéia de pontuação e a idéia de que as fotos que falo, estão, de fato, pontuadas, às vezes, inclusive, infestadas desses pontos sensíveis; precisamente, essas marcas, essas feridas são pontos. A esse segundo elemento que vem desordenar o studium, então, chamarei punctum, já que punctum é também furo, pequeno orifício, pequena mancha, pequeno corte – e, ainda, lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (porém, também, me mortifica e me golpeia)”.

O parêntese não encerra algo incidental ou uma idéia secundária, como acontece com freqüência; não é o dito em voz baixa sob o ângulo de pudor. E, em outro lugar, vinte páginas adiante, Barthes abre outra exposição: “ao passar em revista os interesses sensatos despertados em mim por determinadas fotos, me parecia confirmar que o studium, - que não se encontra atravessado, açoitado, zebrado por um detalhe (punctum) que me convida ou me fere, - engendrava um tipo de foto muito difundido (o mais disseminado do mundo), e que poderíamos chamar de fotografia unária”. A sua maneira, e o modo pelo qual exibe, põe em jogo e interpreta o par studium / punctum,  relatando ao mesmo tempo o que faz, e nos entregando suas notas; de imediato, escutamos a música. Essa é recisamente sua maneira. Fazer surgir lenta, com prudência, a oposição studium / punctum, o versus aparente da barra, em um novo contexto antes do qual parecia não existir oportunidade alguma de que viesse a aparecer. Dálhe essa oportunidade ou a acolhe. Sua interpretação pode parecer em princípio um pouco artificiosa, engenhosa, elegante, porém, perfeita; por exemplo, na passagem que leva do punctum ao me punge e ao pungente. Porém, impõe pouco a pouco sua necessidade, sem dissimular o artifício por baixo de nenhuma pretendida natureza. Faz a demonstração de seu rigor no decorrer de todo o livro, e este rigor se confunde com a sua produtividade, com a sua fecundidade realizadora. O faz conferir a maior quantidade de sentido, de poder descritivo ou analítico (fenomenológico, estrutural e, contudo, indo mais além). O rigor nunca é rígido. O flexível, uma categoria que creio indispensável para descrever de todas as maneiras, todas as maneiras de Barthes.

A virtude da flexibilidade se exerce sem o menor vestígio de trabalho, no entanto, desvenda pouco o seu desaparecimento. Nunca a abandona, mesmo que se trate de teoria, de estratégia de escrita, de intercâmbio social, e é legível até em sua grafia; a leio como a reafirmação extrema dessa civilidade que, em La chambre claire e ao falar de sua mãe, leva até o limite da moral e, inclusive, até a se submeter a ela. Flexibilidade, por sua vez, ligada e desligada, como já se disse da escritura ou do espírito. Tanto no vínculo como na desvinculação nunca exclui a eqüidade, - ou a justiça; imagino que honrou essa flexibilidade em segredo até nas escolhas impossíveis. Aqui, o rigor conceitual de um artifício se mantém flexível e brincalhão, dura o tempo de um livro, e será útil a outros, porém, apenas convém perfeitamente a seu signatário, como um instrumento que não se presta a nada, como a história de um instrumento. Porque, sobretudo e em primeiro lugar, esta aparente oposição (studium / punctum) não só evita a proibição senão que, pelo contrário, favorece certa composição entre os dois conceitos. O que devemos entender por composição? Um conjunto de coisas que se compõem em conjunto: 1) Separados por um limite impossível de transpor, os dois conceitos estabelecem entre si compromissos, um com o outro se compõem, e reconheceremos aí, de imediato uma operação metonímica, sutil, do “fora de campo”, que corresponde ao punctum, que, em sua qualidade de exterior ao campo se compõe de acordo com o modo “sempre codificado” do studium. Pertence-lhe sem pertencer-lhe, é impossível de ser localizado, não se inscreve jamais na objetividade homogênea de seu espaço enquadrado, porém, o habita, ou melhor, o assedia: “É um suplemento, é o que acrescenta à foto e que não obstante já estava ali”.

Somos uma presa do poder fantasmático do suplemento, essa condição não localizada. Esse é precisamente o que dá lugar ao espectro. “O Espectador somos nós, todos os que cotejamos as coleções de fotos nos periódicos, nos livros, nos álbuns ou nos arquivos. E aquele ou aquela que é fotografado é o alvo, a referência, uma espécie de pequeno simulacro, de eidolon emitido pelo objeto, que eu chamaria com gosto de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra conserva, através de sua raiz, uma relação com o ‘espetáculo’ e o incorpora a esta coisa um tanto terrível que existe em toda fotografia: o retorno do morto”. Desde o momento em que cessa de opor-se ao studium mantendo-se ao mesmo tempo heterogêneo, desde o momento em que não pode sequer distinguir entre dois lugares, dos conteúdos ou duas coisas, o punctum não se submete completamente ao conceito, se entendemos por ele uma determinação predicativa distinta e adversária. Esse conceito do fantasma é tão pouco apreensível, in totum, como o fantasma de um conceito. Nem a vida nem a morte, senão o assédio de um pelo outro. O versus da oposição conceitual é tão inconsistente como o é o obturador fotográfico. “A Vida / a Morte: o paradigma se reduz a um simples obturador, o que estabelece a separação entre a pose inicial e o papel final”. Fantasmas: o conceito do outro no mesmo, o punctum no studium, a morte completamente outra que vive em mim. Esse conceito da fotografia, fotografia como toda oposição conceitual, descobre nela uma relação de encantamento que constitui quem sabe toda a “lógica”. Penso em um segundo sentido da composição. Desta maneira: 2) na oposição fantasmática de dois conceitos, no par S / P  (studium / punctum), a composição é também a  música.

Abrir-se-ia aqui um extenso capítulo: Barthes músico. Poderia se colocar, como uma nota, este exemplo analógico (para começar): entre os dois elementos heterogêneos S e P, posto que a relação não seja já a exclusão simples, quando o suplemento do punctum parasita o espaço assediado do studium, é possível dizer entre parênteses, discretamente, que o punctum vem conferir seu ritmo ao studium, decompô-lo: “O segundo elemento vem quebrar (ou decompor) o studium. Esta vez não sou eu quem vai buscá-lo (como tenho investido com a minha consciência soberana o campo do studium), é ele quem parte da cena, como uma flecha, e vem me atravessar. Uma palavra existe em latim... punctum”. Quando a métrica foi marcada, a música chega, ao pé da mesma página, de outro lugar. A música é mais  precisamente a composição: analogia da sonata  clássica. Como fazia com freqüência, Barthes vai descrever seu caminho, e entregar-nos também o relato do que fez, fazendo (o que chamou de suas notas); o faz com cadência, com medida, e pouco a pouco, com circunspeção e prudência, com o sentido clássico da medida, marca as etapas (além de sublinhar, para insistir e talvez para jogar, quem sabe, ponto contra ponto ou ponto contra estúdio “neste ponto de minha busca”). Barthes dará a entender, em poucas palavras, com um movimento ambíguo de modéstia e de desafio, que não tratará o par de conceitos S e P como essências vindas de um lugar além do texto que está por escrever e que autoriza certa pertinência filosófica geral. Não levam a verdade senão ao interior de uma insubstituível composição musical. São motivos. Se si os quer transportar para outro lugar, e é possível, útil, necessário, é preciso proceder a uma transposição analógica, e a operação não terá êxito além da media onde outro opus, outro sistema de composição os arraste consigo de maneira também original e insubstituível. Escreve sobre isto: “Havendo distinguido na Fotografia dois temas (já que, em resumo, as fotos que amo estavam construídas à maneira de uma sonata clássica) podia ocupar-me sucessivamente de um e do outro”. Seria preciso regressar à “métrica” do studium por um punctum que não o é oposto, mesmo se si mantém como o radicalmente outro que vem para duplicá-lo, para ligar-se a ele, para compor-se com ele. Penso agora em uma composição em contraponto, em todas as formas cultas do contraponto e a polifonia, na fuga.

A Fotografia do jardim de Inverno é o punctum invis ível do livro, não pertence ao corpus das fotografias que ele mostra, nem a série de exemplos que analisa e exibe. E, sem sombra de dúvida, irradia todo o livro. Uma espécie de serenidade vem aos olhos de sua mãe, cuja claridade ele descreve sem que seja jamais visível. O radiante se compõe com a ferida que inscreve no livro um signo, um punctum invis ível. Neste ponto ele já não fala de luz ou da fotografia, que nada tem mais a ver; ele pronuncia a voz do outro, o acompanhamento, o canto, o acorde, “e a última música”: “Mais ainda (já que intento dizer esta verdade) esta Fotografia do Jardim de Inverno era para mim como a última música que escreveu Schumann antes de fundir-se na loucura, esse primeiro Chant de l’Aube, que concorda tão bem com o ser de minha mãe e a pena que sofro por sua morte; não podia falar esta concordância senão mediante uma sucessão infinita de adjetivos”. E, em outro lugar: “em um sentido, nunca ‘falei’ para ela, nem ‘discorri’ ante ela; pensava sem dizer que a ligeira insignificância da linguagem, a suspensão das imagens devia ser o espaço mesmo do amor, sua música. Para ela, tão forte que era minha Lei interior, a vivi, no final, como um menino feminino”. O que por ele houvera querido evitar: não as avaliações (seria possível ou mesmo desejável?) senão tudo aquilo que se insinua na avaliação mais implícita para remeter ao código (inclusive ao studium). Por ele, haveria querido, sem conseguir, escrever no limite, o mais próximo do limite, porém, também, mais distante da escrita ‘neutra’, ‘branca’, ‘inocente’, cuja novidade histórica e infidelidade perderam importância, simultaneamente, no Le degré zéro de l’écriture: “Se a escrita é verdadeiramente neutra... então a literatura está vencida...

Desgraçadamente nada é mais infiel que a escrita branca; os automatismos se elaboram no mesmo lugar onde se encontrava no princípio uma liberdade, uma rede de formas enrijecidas preenchem a frescura primeva do discurso”.

Não se trata aqui de superar a Literatura, senão impedir que, como um saber, se feche sensatamente sobre a ferida singular, uma ferida sem falta (nada é mais insuportável e mais cômodo que todos os movimentos de culpa no luto, com todos os seus espetáculos inevitáveis). Escrever (lo). Ao amigo morto em si dar de pressente a sua inocência. O que eu queria ter querido evit ar, evitar-lhe: a dupla ferida de falar dele, aqui e agora, como de um vivo ou como de um morto. Nos dois casos desfiguro, firo, durmo ou mato. Porém, a quem? A ele? Não. A ele em mim? Em nós? Em vocês? O que quer dizer isso? Que nós permanecemos entre nós? É verdade, porém, talvez, um pouco simples. Roland Barthes nos olha (cada um por dentro, cada um pode dizer que seu pensamento, sua recordação, sua amizade olha então só a ele) e o seu olhar, mesmo que cada um de nós disponha dele também, a sua maneira, segundo o seu lugar e sua história, não fazemos o que queremos. Ele está em nós porem não com a gente; não dispomos dele como de um momento ou de uma parte de nossa interioridade. E o que então nos olha pode ser indiferente ou amante, terrível, disposto ao reconhecimento, atento, irônico, silencioso, com fastio, reservado, fervente ou sorridente, criança ou envelhecido; em uma palavra pode, em nós, dar todos os signos da vida ou da morte que extrairmos da reserva definida de seus textos ou de nossa memória. O que queria evitar não é a Novela e a Fotografia, senão alguma coisa que existe em uma e outra, e não é nem a vida e nem a morte; algo que ele disse antes que eu (e sobre o que voltarei – sempre a promessa, a promessa de regressar, que não é mais um recurso fácil de composição).




Nunca conseguirei evitá-lo, em particular porque esse ponto se deixa sempre apropriar pelo tecido que ele mesmo dilacera sobre o outro, e um véu de studium torna a se formar. Porém, quem sabe, valha mais não chegar até lá e preferir no fundo o espetáculo da insuficiência, do fracasso, do truncado? (Não é irrisório, ingênuo e propriamente pueril se apresentar-se ante um morto para pedir-lhe perdão? Isso tem sentido? Ao menos que isso seja a origem do senti do em si mesmo? A origem em uma cena que alguém realizaria ante outros que o obserevam e personificam também o morto? Uma boa análise da puerilidade em questão seria aqui necessária, porém insuficiente). Duas infidelidades, uma escolha impossível: por um lado, não dizer nada que o recorde, que recorde a sua própria voz, calar-se ou pelo menos, fazer-se acompanhar ou emanar, em contraponto, através da voz do amigo. Então, por um fervor de amizade ou de reconhecimento, também por aprovação, contentar-se com citar, com acompanhar o que corresponde ao outro, mais ou menos diretamente, ceder-lhe a palavra, anular-se frente a ela, seguir-la, diante dele. Porém, esse excesso de fidelidade terminará por não dizer nada, terminará por não intercambiar nada. Regressa, deste modo, à morte. Remete a ela, remete a morte para a morte. Pelo contrário, ao evitar toda citação, toda identificação, inclusive toda aproximação, para que tudo o que se dirija a Roland Barthes ou fale dele venha, em verdade do outro, do amigo vivo, se enfrenta o risco de fazê-lo desaparecer ainda mais, como se fora possível acrescentar morte à morte, pluralizá-la indecentemente. Restaria fazer e deixar  de fazer ambos de uma só vez. Corrigir uma infidelidade com outra. De uma morte à outra: é essa a inquietude que me fez colocar o começo em plural? Agora, e com freqüência, eu sei que escrevi para ele (digo sempre ele, escrever a ele, dirigir-me a ele, evitá-lo). Muito antes destes fragmentos. Para ele: porém quero rememorar obstinadamente, para ele, que hoje não se trata de respeito, portanto de respeito vivo, de atenção viva à capacidade do outro, ainda que coloque de fora o nome de Roland Barthes que estará só daí em diante, que não deve expor-se sem trégua, sem debilidade, sem misericórdia, a esta evidência demasiado transparente para não ser ultrapassada imediatamente: Roland Barthes é o nome de quem já não pode nem escutá-lo nem suportá-lo. E ele (não o nome, e sim o portador), quando eu pronunciar o seu nome que deixou de sê-lo, não acolherá nada do que digo aqui acerca dele, para ele, mais além do nome, porém, ainda, no nome.

A atenção viva se afasta em direção ao que não pode mais recebê-la, se precipita em direção ao impossível. Porém, se o seu nome não é mais seu, - o foi alguma vez? Quero dizer simplesmente, unicamente? Casualmente o impossível se converte, às vezes, em possível: como utopia. É isso o que ele dizia antes de sua morte, porém, para si, sobre a Fotografia do Jardim de Inverno. Porém, mais além das analogias, “ela realizava para mim,utopicamente, a ci ência impossível do ser único”. E o dizia unicamente, restituído para sua mãe e não para a mãe, porém a singularidade pungente não contradiz a generalidade, esta não o proíbe usar como lei, apenas a flecha e a faz signo. Singular plural. Existe desde a primeira linguagem, com a primeira marca, outra possibilidade, outra oportunidade que a dor desse plural? E a metonímia? E a homonímia? Poder-se-ia sofrer de outra coisa, porém, se poderia falar sem elas? O que poderíamos chamar um pouco apressadamente a mathesis singularis é o que para ele se realizava “utopicamente” ante a Fotografia do Jardim de Inverno: é impossível e ocorre, utopicamente, metonimicamente, a partir do que ele marca, de que ele escreve, inclusive, “antes” da linguagem. Barthes fala pelo menos duas vezes de utopia em La chambre claire. As duas vezes entre a morte de sua mãe e a sua, na medida em que confia esta à escrita: “Morta ela, não tenho razão alguma para me acoplar à marcha do Vivente superior (a espécie). Minha particularidade não podia, então, jamais universalizar-se (mais que utopicamente, pela escrita, cujo projeto devia converter-se então no fim último de minha vida)”. Quando digo Roland Barthes é a ele que nomeio, bem além de seu nome. Porém, como a partir deste momento ele é inacessível ao chamado, como a nominação é incapaz de converter-se em invocação, apelação, apóstrofe (se supormos que, revogada hoje, esta possibilidade jamais pode ser pura), é a ele em mim a quem nomeio, atravesso o seu nome para ir à direção dele em mim, em ti, em nós.

O que passa em relação a ele e se diga dele subsiste entre nós. O pesar começou neste ponto. Quando, porém? Porque, antes desse acontecimento inqualificável chamado morte, a interioridade (do outro em mim, em ti, em nós) havia empreendido a sua obra. Desde a primeira nominação, havia precedido a morte como o tivera feito outra morte. O nome, por si mesmo, o tornou possível: esta pluralidade de mortes. E, inclusive, se a relação entre elas fora somente analógica, a analogia seria singular, sem medida comum com nenhuma outra. Antes da morte sem analogia nem relevo, antes da morte sem nome e sem frase, antes dessa morte ante a qual nada temos que dizer e é imperativo o silêncio, antes dessa morte que é chamada “minha morte total, não dialética”, antes da última, os outros movimentos de interiorização eram, por sua vez, mais ou menos poderosos, poderosos de outro modo, mais ou menos seguros de si mesmos, de outro modo. Mais: não se encontravam ainda perturbados ou interrompidos pelo silêncio de morte do outro que vem chamar fora dos limites de uma interioridade falante. Menos: a aparição, a iniciativa, a resposta ou a intrusão imprevisível do outro vivo invocam também este limite. Vivo Roland Barthes não se reduz ao que cada um de nós imagina, ou ao que podemos pensar crer ou saber e recordar dele. Porém, uma vez morto o fará? Não, porém o risco da ilusão será mais forte e mais débil, outra, em todo o caso.  “Inqualificável” é, contudo, uma palavra que tomo emprestada dele. Inclusive, se lhe imponho certa deportação, esta já se encontra marcada pelo que eu já tinha lido em La chambre claire. “Inqualificável” designava nesse texto uma forma de vida, - esta, a sua, foi breve depois da morte de sua mãe, - uma vida semelhante já à morte, uma morte antes da outra, mais de uma, que imitava de antemão. Isso não impediu seu caráter acidental, imprevisível, vindo de um fora incalculável. Este semelhante, talvez, autoriza a exilar o inqualificável da vida até a morte. É esta a psyche: “Se disse que o luto, por seu trabalho progressivo, apaga lentamente a dor; não devia e não o posso crer, porque, para mim, o Tempo elimina a emoção da perda (não choro), é tudo. Respeito aos demais, tudo está imóvel. Porque o que eu perdi não foi a Figura (a mãe), senão um ser, e não um ser, senão uma qualidade (uma alma): não indispensável, porém, insubstituível. Eu poderia viver sem Mãe (todos nós o fazemos, mais cedo ou mais tarde); porém, a vida que me restava seria seguramente e até o fim, inqualificável (sem qualidade)”. A câmara clara diz mais, sem dúvida, que a câmara lúcida, nome deste aparato anterior à fotografia e que se opõe à câmara escura. É-me impossível não associar a palavra claridade, onde quer que ela apareça ao que ele disse, muito antes, de sua mãe menina, da “claridade de seu rosto”. Acrescenta em seguida: “... a pose ingênua das mãos, o lugar que havia ocupado com docilidade, sem mostrar-se e sem ocultar-se”. Sem mostrar-se e sem ocultar-se. Não se trata da Figura da Mãe, senão de sua mãe. Não deveria haver, não deveria haver aí, nesse caso, metonímia, o amor protesta (“eu podia viver sem a Mãe”). Sem mostrar-se e sem ocultar-se. Isso foi o que ocorreu. Ela havia ocupado já o seu lugar “docilmente”, sem a iniciativa da menor atividade, com a passividade mais doce, e ela não se mostra nem se oculta. A possibilidade dessa possível derrota fragmenta toda unidade, e é o amor; desorganiza todos os discursos originados do studium, as coerências teóricas e as filosofias. A estas é preciso decidir entre a presença e a ausência, aqui e ali, o que s revela e o que se dissimula.

Aqui, ali, a outra única, sua mãe, aparece, quer dizer, sem aparecer, visto que o outro não aparece, senão desaparecendo. E ela “sabia” fazêlo, inocentemente, porque na pose sem pose de sua mãe encontra-se a qualidade da alma do menino que a decifra. Não disse mais e nada. Não disse mais e nada destaca. De novo a claridade, a “força da evidência”, como ele disse, da Fotografia. Porém, isso implica em presença e ausência, não se mostra nem se oculta. Na passagem sobre a câmera lúcida, cita Blanchot: “a essência da magem é estar de fora, por completo, sem intimidade e, contudo, mais acessíveis e misteriosas que o pensamento de foro íntimo; sem significação, porém invocando a profundidade de todo sentido possível; não revelado e, contudo, manifesto, tendo esta presença-ausência que constitui o atrativo e a fascinação das Sereias”.

A aderência do “referente fotográfico” sobre o que ele insiste e com toda justiça: não se relaciona com um presente, nem com um real, senão com o outro, e cada vez de maneira distinta de acordo com o tipo de “imagem” (fotográfica o não, depois de haver tomado todas as precauções diferenciais possíveis, não havíamos reduzido o que ele disse de específico da fotografia, a supor que sua pertinência se entende a outros lugares: diria, inclusive, a todos os lados. Trata-se de reconhecer, desta vez, a possibilidade de suspender o Referente (não a referencia), em qualquer lugar que se produza, mesmo na  fotografia, e sustar um conceito ingênuo de Referente, aquele que se admite com tanta freqüência). Pequena classificação sumária e completamente preliminar, a sensatez em si: há, no tempo que nos vincula aos textos e a seus presunçosos signatários, famosos, autorizados, ao menos três possibilidades. O “autor” pode já estar morto, no sentido mais comum do t ermo, no instante que começamos a lê-lo, quando esta leitura nos leva a escrever sobre ele, como se diz, mesmo que se trate de seus escritos ou dele mesmo. Os autores que não se “conheceu” em vida, que não foram encontrados, amados (ou não), são os mais numerosos. Esta a-simbiose não exclui certa modalidade do contemporâneo (e vice-versa); implica, também, interiorização, um luto a priori com ricas possibilidades, uma completa experiência da ausência cuja originalidade eu não posso descrever aqui. Podemos falar, logo após, de uma segunda possibilidade, os autores que vivem no momento em que os lemos, quando esta leitura nos leva a escrever sobre eles, etc. Como uma bifurcação da mesma possibilidade, podemos saber-los vivos, conhecê-los ou não, termos com eles encontrado, amado (ou não), etc., e a situação pode mudar com respeito a eles; podemos encontrá-los depois de termos começado a lê-los (tenho uma recordação muito viva do primeiro encontro com Barthes), milhões de relevos podem assegurar a transição: as fotografias, a correspondência, a publicação das declarações, as gravações.


Depois há uma “terceira” ocasião, quando ocorre a morte e após ela, daqueles também “conhecidos”,  encontrados, amados, etc. Agora bem, acontece que me ocorreu escrever no rastro de ou sobre textos de autores mortos a muito tempo, antes mesmo de que eu os estivesse lido (por exemplo, Platão ou João de Patmos[5]) ou cujos autores vivem no momento em que escrevo: o que é o mais perigoso em aparência. Porém, o que eu acreditava impossível, indecente, injustificável, o que desde já muito tempo, de maneira mais ou menos secreta e resoluta, me havia prometido nunca fazer (cuidando o rigor, a fidelidade se si quer e porque se quer e porque esta vez foi demasiado grave), é escrever ante a morte, não depois, muito depois da morte, regressando a ela; senão ante a morte, na ocasião da morte, nas recopilações de celebração, de homenagem, escritos “à memória” daqueles que em vida haviam sido meus amigos, demasiado presentes em mim para que alguma “declaração”, ou mesmo alguma análise ou “estudo” não me pareça intolerável nesse momento preciso. - Porém, e o silêncio, então? Não é por acaso outra ferida, outra injúria?
- A quem?
- Sim, a quem nós fazemos à oferenda e por quê?
Que fazemos quando intercambiamos este discurso?
A quem nós velamos? Buscamos anular a morte ou conservá-la? Intentamos por em regra, satisfazer ou liquidar contas? Com o outro, com os outros afora, em si? Quantas são as vozes que se cruzam, então? Que se vela e se retoma, se estreitam e s e abraçam com efusão ou passam uma junto da outra em silêncio? Irá alguém entregar-se a avaliações de última instância? A assegurar-se de que a morte não ocorreu ou que irreversível e que desta maneira se está imunizado com o regresso do morto? Ou ainda, converter-se em seu aliado (“o morto está comigo”), se pôr do seu lado, exibir seus contratos secretos, aniquilá-lo ao exaltá-lo, o reduzir ao que uma atração literária ou retórica pode ainda conter quando se cobra valor mediante estratégias cuja análise seria interminável, como todas as armadilhas do “trabalho de luto” individual ou coletivo? E ademais, esse chamado “trabalho” cai como o nome de um problema.

Se trabalhar é, também, dialetizar a morte, a mesma que Roland Barthes chamava: de não dialética. (“Eu não podia mais que esperar a minha morte, total, não dialética”). Um pedaço de mim como um pedaço da morte. Dizer “as mortes” é acaso dialetizá-las ou o contrário? (porém estamos aqui em um limite no qual querer satisfaz bem menos). Luto e transferência. Em uma entrevista com Ristat, quando se tratou da “prática da escrita” e da autoanálise disse, recordo: “A auto-análise não é transferencial, e nisto, talvez, não estejam de acordo os psicanalistas”. Sem dúvida. Talvez, haja, sem dúvida, transferência na auto-análise, em particular quando passa pela escrita e pela literatura; porém, joga de outra maneira, joga mais – e as transferências do jogo aqui são essenciais. Comparada com a possibilidade de escrever, nós temos necessidade de outro conceito de transferência (mas, existiu um alguma vez?). O que mais acima se expressou com “ante a Morte”, “em ocasião da morte”: toda uma série de soluções típicas. As piores ou a pior em cada uma delas, vil ou ridícula, contudo, não obstante, tão freqüente: manobrar mais, especular, obter um benefício que seja sutil ou sublime, tirar do morto uma força suplementar dirigida contra os vivos, denunciar, injuriar mais ou menos diretamente aos sobreviventes, para autorizar, legitimar e elevar-se à altura de onde a morte, supõe-se, ergueu o outro, e se por ao abrigo de toda suspeita. Existem outras menos graves, certamente, porém, não deixam deser: fazer uma homenagem com um ensaio tratando da obra ou de uma parte da obra legada, discorrer sobre um tema com que se tem segurança de que havia captado o interesse do autor desaparecido (cujos gostos, curiosidades e programa não deveriam causar surpresa).

O tratamento assinalaria ainda a dívida, a satisfaria suficientemente e, considerando o contexto, se faria a adaptação do tema. Por exemplo, na Poétique, seria preciso sublinhar agora o imenso papel que jogou e continuará jogando a obra de Barthes no campo aberto da literatura e da teoria literária (é legítimo, é preciso fazer e faço). E depois, por que não, entregar-se, como em um exercício feito possível e influenciado por Barthes (iniciativa que graças a sua memória, encontra aprovação em nós), à análise de um gênero ou de um código discursivo, das regras
de um cenário social, fazê-lo com essa minúcia vigilante que, por pior que seja, sabia desarmar-se com certa compaixão desiludida, uma elegância um pouco descuidada que o levava a abandonar a partida (eu mesmo o vi várias vezes se enfurecer: por questão de ética ou de fidelidade).

De quê gênero se trata? E então? Aquele, por exemplo, que neste século se fez às vezes de oração fúnebre? Estudar-se-ia o corpus de declarações nos periódicos, nas cadeias de rádio ou de televisão, se analisaria as recorrências, as restrições retóricas, as perspectivas políticas, as explorações dos indivíduos ou de grupos, os pretextos à tomada de posição, para a ameaça, intimidação ou aproximação (penso no semanário que, por motivo da morte de Sartre, depois de obter suas fotos para envolvê-las até com a justiça, ousou movimentar um processo para quem, - uns poucos, - não havia dito nada a respeito, ou porque estavam viajando ou por decisão própria, e àqueles que não haviam dito o que era preciso. A todos acusava de ainda ter medo de Sartre). Em seu tipo clássico, a oração fúnebre possui algo de bom, sobretudo quando permitia interpelar diretamente o morto e, às vezes, amparálo.

A morte em mim é certamente uma ficção suplementar, sempre com os outros ao redor do sarcófago, à que apóstrofo dessa maneira; porém em seu excesso caricatural, o exagero retórico marcava, pelo menos, que era preciso permanecer ali, unicamente entre nós. É necessário interromper o comércio dos sobreviventes e desgarrar o pretexto sobre o outro, o outro morto em nós, porém, outro, e as certezas religiosas de outra vida poderiam acolher favoravelmente esse “como se”. As mortes de Roland Barthes: suas mortes, aqueles e aquelas, os seus que estão mortos e cujas mortes o te riam habitado e localizar os lugares ou as instâncias graves, tumbas orientadas em seu espaço interior (sua mãe, para terminar e, sem dúvida, para começar). Suas mortes, aquelas que ele viveu no plural, que encadeou intentando em vão “dialetizá-las” antes da “absoluta” “não dialética”, essas mortes que, em nossa vida, constituem sempre uma série aterrorizante que jamais termina. Porém, como ele as viveu? Não existe resposta mais impossível e proibida do que esta. Porém, nos últimos anos um movimento se precipitou; parece meter sentido algo como uma aceleração autobiográfica, como se dissera: “sinto que me resta pouco tempo”, devo me ocupar, em princípio, desse pensamento de morte que começa como o pensamento e como a morte, na memória do idioma. Contudo vivo e como escritor, escreveu uma morte de Roland Barthes, por ele mesmo.

E, finalmente, suas mortes, esses textos sobre a morte, tudo o que escreveu, arcando enfaticamente o deslocamento sobre a morte, sobre o tema que, se si quer, poderia ser ele da Morte, se é que existe. Da Novela à Fotografia, de Le degré zéro de l’écriture (1953) a La chambre claire (1980), certo pensamento da morte pôs tudo em movimento, ou melhor, o lançou em uma viagem, em uma espécie de travessia até um lugar além de todos os sistemas que confinam, de todos os saberes, de todas as positividades científicas cuja novidade tentou desde o Aufk lärer[6] ; e ao descobridor que havia nele por um tempo, o tempo de um trajeto, de uma contribuição que só depois dele se tornou indispensável, quando ele já se encontrava em outra parte e o dizia, ao franquear com uma modéstia calculada, com uma cortesia que esclarece uma exigência rigorosa e uma ética intratável como uma fatalidade idiossincrática assumida com inocência. No principio de La chambre claire, disse para si mesmo, falou sobre o seu “incômodo” de sempre: “ser um sujeito vacilante entre duas linguagens, uma expressiva e a outra crítica; e no seio desta última, entre muitos discursos, os da sociologia, da semiologia e da psicanálise, - porém, (me digo), pela insatisfação em que me encontro finalmente ante uns e outros, rendo testemunho do único fato que com segurança me ocorreu (por mais ingênuo que tenha sido): a resistência arrebatada a todo sistema redutor. Já que, toda vez, tendo já realizado algo e experimentava alguma coisa da consistência deles, ao senti-los se resvalar à redução e a reprimenda, os abandonava suavemente e me punha a falar de outra maneira”.


 O mais distante desta travessia é, sem dúvida, o grande final, o grande enigma do Referente, como o chamou durante os últimos vinte anos e a morte, justamente, nada tem a ver com isso (será preciso voltar a isto com outro tom). Em todo c aso, desde Le degré zéro de l’écriture, o mais distante da literatura como literatura, a “modernidade” literária, a literatura a produzir-se e produzir sua essência como o seu próprio desaparecimento, mostrando-se e ocultando-se por sua vez. (Mallarmé, Blanchot...), tudo isso passa pela Novela, e “a Novela é uma morte”:  “A modernidade começa com a busca de uma literatura impossível. Assim, na Novela se encontram esses aparatos ao mesmo tempo destrutivo e passível de ressurreição, próprios de toda a arte moderna... A Novela é uma Morte; faz da vida um destino, da recordação um ato útil, e da duração um tempo direcionado e significativo”. Agora bem, a possibilidade moderna da fotografia (arte ou técnica, aqui pouco importa) é o que conjuga em um mesmo sistema a morte e o referente. Não é esta a primeira vez que ocorre, e esta conjugação, para ter uma relação essencial com a técnica reprodutiva, o com a técnica em si, não esperou à Fotografia. Porém, a demonstração imediata que carrega o dispositivo fotográfico, ou a estrutura do resíduo que deixa atrás de si, são acontecimentos irredutíveis, cuja originalidade é indelével. É o fracasso ou, em todo caso, o limite de tudo que, na linguagem, a literatura e as demais artes, parecem sustentar alguns teoremas toscos sobre a suspensão geral do referente, ou daquele que, por uma significação às vezes caric aturesca encobria-se classificado nesta categoria ampla e vaga.

Agora bem, pelo menos no instante em que o punctum dilacera o espaço, a referência e a morte encontram uma coincidência na fotografia. Porém, devemos falar a referência ou o referente? A minúcia analítica deve estar aqui à medida do desafio e a fotografia a submete a uma prova: aí, o referente está visivelmente ausente, suspenso, desaparecido na ocasião única e passada do já acontecido, porem a referência a esse referente, poderíamos dizer, o movimento intencional da referência (já que neste livro Barthes aflui justamente à fenomenologia) implica irredutivelmente o haver-sido de um único e invariante referente. Implica este “retorno do morto” na estrutura mesmo da sua imagem e do fenômeno de sua imagem. Isto é, o que não se produz, - ou, pelo menos, não da mesma maneira, porque a implicação e a forma da referência assumem outros caminhos e desvios em outro tipo de imagens ou de discursos, digamos, de marcar, em geral.

Desde o princípio, em La chambre claire, a “desordem” que introduz a fotografia é atribuída, fundamentalmente, à “única vez” do referente, uma só vez que já não se deixa reproduzir ou pluraliz ar, uma vez cuja implicação referencial se encontra inscrita na própria estrutura do fotograma, seja qual for o número de suas reproduções ou mesmo o arti fício de sua composição. Daí “a obstinação do Referente por estar sempre ali”. “Dir-se-ia que a Fotografia sempre leva consigo seu referente, ambos fustigados pela mesma imobilidade fúnebre ou amorosa..., em suma, o referente se adere. E esta aderência é singular...”. Mesmo que já não se encontre ali, o seu ter-estado-ali formando parte da estrutura referencial ou intencional de minha relação com o fotograma, confere o retorno do referente à forma da obsessão. É um “retorno do morto” cujo advento espectral no espaço mesmo do fotograma se assemelha muito ao de uma emissão ou ao de uma emanação. É uma espécie de metonímia alucinante: é qualquer coisa, um pedaço vindo de outro (do referente) que se encontra em mim, ante mim, porém, também, em mim como um pedaço de mim mesmo. (já que a implicação referencial é também intencional e noemática, não pertence ao corpo sensível ou ao suporte do fotograma). E, ademais, o “alvo”, o “referente”, o “eidolon emitido pelo bjeto”, “o Spectrum” que posso ser eu, visto em uma fotografia minha: “... vivo, então, uma micro-experiência de morte (do parêntesis): converto-me verdadeiramente em espectro.




















O Fotógrafo sabe bem, ele mesmo tem medo (mesmo que seja por razões comerciais) desta morte em que seu gesto haverá de me embalar... converti-me em um Tudo-Imagem, quer dizer, a Morte em pessoa... No fundo, aquilo que aponto na foto que me toma (a “intenção” com que a observo) é a Morte: a Morte é o eidos dessa Fotografia”. Transportado por esta relação, puxado ou atraído pela peculiaridade desta relação (Zug[7], Bezug[8], etc.), pela referência ao referente espectral,atravessou os períodos, os sistemas, as modas, as “fases”, os “gêneros” marcando e pontuando neles o studium, passando através da fenomenologia, da lingüística, da mathesis literária, da semiologia, da análise estrutural, etc. Porém, seu primeiro movimento foi o de reconhecer sua necessidade e sua fecundidade, o seu valor crítico, a sua luz, e voltá-los contra o dogmatismo. Não farei uma alegoria, menos ainda uma metáfora, porém recordo que foi durante as viagens que passei mais tempo a sós com Barthes. Às vezes frente a frente, quero dizer cara a cara (por exemplo, no trem de Paris a Lille ou de Paris a Bordeaux), às vezes, cotovelo com cotovelo, separados apenas por um corredor (por exemplo, na travessia Paris- Nova York-Baltimore, em 1966).

O tempo de nossas viagens não foi, sem dúvida, o mesmo e é preciso acomodar-se a estas duas certezas absolutas. Se eu quisesse e pudesse deixar surgir aqui um relato, falar dele tal e como foi para mim (a voz, o timbre, as formas de sua atenção e de sua distração, sua maneira cortês de estar aqui ou ali, o rosto, as mãos, a roupa, o sorriso, o cigarro, tantos traços que nomeio sem descrevê-los porque aqui é impossível): mesmo se procurasse reproduzir o que ocorreu antes, que lugar reservar para a advertência? Que lugar sobraria para a imensa extensão dos silêncios, aos não ditos da discrição, da prevenção ou do para-que-serve, do que em nós já-nos-é-muitoconhecido, ou do que permanece infinitamente desconhecido de uma e da outra parte? Continuar falando dele na solidão que advém após a morte do outro, esboçar a mínima conjectura, arriscar a mais tênue interpretação, sinto este esforço como uma injúria ou como uma ferida in aeternum remexida, -e, contudo, também, como um dever para com ele. Porém, não o cumprirei, ou em todo caso não agora, aqui. Sempre a promessa de regresso. Como crer no contemporâneo? Seria fácil demonstrar que seus tempos que parecem pertencer à mesma época, são delimitados em termos de um registro histórico, fechados, ou de um horizonte social, etc., segue sendo infinitamente heterogêneo e carecem, na realidade, de relação. Pode-se ser muito sensível a ele, porém, também, ater-se, simultaneamente, em outra vertente, a um ser-conjuntamente que nenhuma diferença, que ninguém diferindo pode ameaçar. Este ser-conjuntamente não se reparte de maneira homogênea em nossa experiência. Existem nós, pontos de grande condensação, lugares de enérgica avaliação, trajetos virtualmente inevitáveis de decisão ou de interpretação.

A Lei parece produzir-se aí. O ser-conjuntamente se refere a ele e nele se reconhece, mesmo que não se constitua precisamente lá. Contrariamente ao que se pensa com freqüência, os “sujeitos” individuais que habitam as zonas mais indefiníveis, não são “super-eus” autoritários, não dispõem de um poder, se é possível supor que se dispõe do Poder. Como aqueles para quem tais zonas se voltam de forma indefinida (e tratam, em princípio, de sua história), e mais do que dominar nelas, as habitam, capta nelas um desejo ou uma imagem. É certa maneira de desfazer-se da autoridade; mais ainda, ao contrário, é certa liberdade, uma relação confessa com a sua própria finitude, o que confere, por um paradoxo sinistro e rigoroso, esse suplemento de autoridade, esse resplendor, essa presença que passeia seu fantasma por onde eles já não mais estão e de onde jamais regressarão; em suma, o que faz com que surja sempre esta pergunta, mais ou menos virtual: o que é que ele ou ela pensam disto? Não é que se esteja disposto a lhe dar sempre razão, a priori e em todas as circunstâncias, muito menos que se espere um veredicto ou se creia em uma lucidez sem debilidades, porém se impõe a imagem de uma avaliação, um olhar, um afeto, inclusive, antes de  buscá-los. É difícil, então saber quem interpela quem com esta “imagem”. Quisera descrever com paciência, interminavelmente, todos os trajetos dessa interpelação, sobretudo quando sua referência passa pela escrita; quando se converte em algo tão virtual, visível, plural, dividido, microscópico, móvel, infinitesimal, também especular (posto que a demanda seja com freqüência recíproca e o trajeto se perde com maior facilidade), preciso, chegando aparentemente quase a anular-se no zero, no tempo que se exerce tão poderosamente e de maneira tão diversa.

Roland Barthes é o nome de um amigo que no fundo, no fundo de uma familiaridade, conhecia pouco e cuja obra, evidente, eu não li em sua totalidade, quero dizer relido, compreendido, etc. E, sem dúvida, meu primeiro movimento, muito frequentemente, foi de aprovação, de solidariedade, de reconhecimento. Porém, me parece, que nem sempre foi assim, e por menos que importe, devo dizer, para não ceder demasiado ao gênero. Foi, e posso dizer que segue sendo, um daqueles ou daquelas de quem sempre me pergunto, desde a quase vinte anos, de maneira mais ou menos articulada: o que pensa ele disto? No presente, no passado, no futuro e no condicional, etc. Sobretudo: e porque não o dizer e o surpreender? No momento de escrever. Disse em uma carta, faz já muito tempo. Retorno o “pungir”, através deste par de conceitos, esta oposição que não é o fantasma desta parelha, punctum / studium. Retorno a ela porque o punctum parece dizer e para deixar que Roland Barthes diga por si mesmo, o ponto desta singularidade, a travessia do discurso para o único, o “referente” como o outro insubstituível, o que foi, e já não será jamais e retorna como aquele que nunca voltará, marca o retorno do morto na mesma imagem que o reproduz. Retorno a ele porque Roland Barthes é o nome daquele que me punge, ou punge aqui o que intento dizer torpemente. Retorno a ele, também, para mostrar como tratou e deu o caráter de signo propriamente a esse simulacro de oposição. Em princípio, valorizou o absolutamente irredutível do punctum à unicidade do referencial (recorro a esta palavra para não ter que escolher entre referente e referência; o que se adere à fotografia é menos o referente em si mesmo, na efetividade presente de sua realidade, que a implicação na referência do haver-sido-único). A heterogeneidade do punctum é rigorosa, sua originalidade não sofre nenhuma contaminação, não permite nenhuma concessão. E, sem dúvida, em outros locais, em outros momentos, assumiu favoravelmente outra exigência descritiva, digamos, fenomenológica, porque o livro se apresenta também como uma fenomenologia. Assumiu o ritmo requerido da composição, de uma composição musical que mais rigorosamente chamarei de contrapontista. È preciso reconhecer e, com efeito, não se trata aqui de qualquer concessão, que o punctum não é o que parece.

Esse outro absoluto que compões com o mesmo, com o seu outro absoluto que não é o seu oposto, com o lugar do mesmo e do studium (é o limite da oposição binária e, sem dúvida, de uma análise estrutural do que o próprio studium pode abusar). Se for algo mais ou algo menos que o mesmo, assimétrico, - com respeito a tudo e em si mesmo, - o punctum pode invadir o campo do studium ao qual, sem dúvida, falando com rigor, não pertence. É preciso recordar que está fora tanto do campo como do código. Lugar da singularidade insubstituível e do referencial único, o punctum i rradia e, isto é o mais surpreendente, se presta a metonímia. Assim, quando se deixa arrastar aos relevos substitutivos, pode invadir tudo: objetos e afetos. Este singular que não se encontra em parte alguma dentro do campo, mobiliza tudo e por todas as partes, pluraliza. Se a fotografia afirma a morte única, a morte do único, esta se repete de imediato e, como tal, é ela mesma, porém, em outro lugar. Ele falou que o punctum se deixa levar até a metonímia. Não é assim, é ele quem induz a ele, e nisso radica sua força ou, mais do que sua força (porque não exerce uma restrição efetiva, senão que se mantém inteiramente em reserva). Seu dynamis ou, dito de outra maneira, seu poder, sua virtualidade e, inclusive, sua dissimulação, sua latência. Barthes marca com certos intervalos de composição esta relação entre a força (virtual ou de circunspeção) e a metonímia, e aqui devo aludir a ela de maneira injustamente abreviada: “Por fulgurante que seja o punctum tem, mais ou menos virtualmente, uma força de expansão. Esta força é, com freqüência, metonímica”. E mais adiante: “acabo de compreender que por imediato, por incisivo que seja o punctum podia conciliar certa latência (porém, jamais, algum exame)”. Esta potencia metonímica mantém uma relação essencial com a estrutura suplementar do punctum (“é um suplemento”) e do studium que recebe todo o seu movimento, mesmo quando deva contentar-se, como o “exame”, com o girar ao redor do ponto. Consequentemente, a relação entre os dois conceitos não é nem tautológica nem proposital, nem dialética, nem em forma alguma simétrica; é suplementar e musical (contrapontista). Metonímia do punctum: por mais escandaloso que seja permite falar, falar do único, dele e para ele. Deixa em liberdade o traço que o vincula ao único.


A Fotografia do Jardim de Inverso, que ele não mostra nem oculta, mas diz, é o punctum de todo o livro. A marca desta ferida única não se encontra em nenhuma parte, porém a sua claridade não localizada (a mesma dos olhos da sua mãe) irradia todo estúdio. Faz desse livro um acontecimento insubstituível. E, contudo, apenas uma força metonímica pode assegurar certa generalidade no discurso, oferecê-lo a análise e propor os conceitos para uma utilização quase instrumental. Porque de outra maneira, como seria possível nos tornarmos balançados pelo que disse de sua mãe sem havê-la conhecido, ela que não foi apenas a Mãe, nem uma mãe, senão que foi só o que foi e cuja foto tirada “nesse dia”? Como poderia pungir-nos se não atuara uma força metonímica que não se confunde com uma facilidade no movimento de identificação, senão, precisamente, em seu contrário? A alteridade se mantém quase intacta, essa é a sua condição. Não me coloco em seu lugar, não tendo a substituir sua mãe pela minha. Se o faço, ela só pode emocionar-me a partir da alteridade sem relação, através da unicidade absoluta que o poder metonímico vem a me recordar sem apagá-la. Tem razão quando protesta contra a confusão que se faz entre quem foi sua mãe e a Figura da Mãe, porém, a potência metonímica (uma parte pelo todo, ou um nome pelo outro, etc.) sempre inscreverá uma e outra em uma relação sem relação.  As mortes de Roland Barthes: pela  brutalidade um pouco indecente deste plural talvez se possa pensar que eu resisti ao único; que havia negado, evitado, procurado apagar sua morte. Como um signo de proteção ou de protesto, de um mesmo golpe a havia exposto, a havia entregado, precisamente, ao processo de uma estudada metonímica. Pode ser, porém, como falar de outra maneira sem correr este risco? Sem pluralizar o único. Sem generalizá-lo até no que tem de mais insubstituível, sua própria morte? Não falou ele mesmo de sua própria morte até no último instante e, também, metonimicamente, de suas mortes? Não foi ele quem disse o essencial (especialmente em Roland Barthes par Roland Barthes: título e assinatura  etonímicos por excelência) da vacilação indecisa entre “falar e calar-se”? Mesmo se si pode calar falando. O único “pensamento” que posso ter é que no final desta primeira morte estava já inscrita aminha própria morte; não existe nada entre as duas senão a espera; não tenho mais recursos além desta ironia: falar do “nada o que dizer”. E, mais adiante: “O horror nisto: nada o que dizer da morte de quem mais amo, nada a dizer de sua foto”. L’amitié[9],(A amizade) nessas páginas no final do volume que leva este título: não temos o direito de mudar nada, seja o que é.

O que liga Blanchot e Bataille foi único e L’amitié o disse de maneira absolutamente singular. Contudo, a força metonímica da escrita mais pungente nos permite ler estas páginas, que não si gnifica dizer expô-las, para além de sua reserva essencial. Permite-nos pensar aquilo que, não obstante, nunca se abre: não se mostra nem oculta. Sem que possamos entrar na singularidade absoluta dessa relação, sem esquecer que apenas Blanchot pode escrever isso e falar somente de Bataille, quiçá sem que possamos compreender tal relação e, em todo caso, sem conseguir conhecê-la, podemos pensar o que está escrito. Não deveríamos poder citar, porém assumo toda a violência da citação e, sobretudo, de uma citação necessariamente truncada: “Como aceitar falar deste amigo? Nem como elogio, nem pelo interesse de alguma verdade. Os traços do seu caráter, as formas de sua existência, os episódios de sua vida conforme, mesmo, com a busca da que se sentiu responsável até a irresponsabilidade, não pertencem a ninguém, a nada. Não há testemunho. Os mais próximos não dizem senão o que os foi mais próximo, não o distante que se afirma nessa proximidade; e a distância cessa quando cessa a presença... Apenas buscamos encher um vazio, não suportamos a dor: a afirmação desse vazio... Tudo o que dissemos tem só um velar da afirmação única: tudo deve desaparecer e não podemos nos manter fiel além da vigília a este movimento que desaparece, e a que pertence agora essa alguma coisa em nós que repele toda recordação”. Em La chambre claire, o valor da intensidade cuja pista eu sigo (dynamis, força, latência) conduz a uma nova equação contrapontista, a uma nova metonímia da própria metonímia, da virtude substitutiva do punctum. É o tempo.

Não é este o último recurso para a troca de um instante absoluto por outro, para a substituição do insubstituível, desse referente único por outro que é ainda outro instante, completamente outro e ainda o mesmo? Não é o tempo, a forma e a força pontuais de toda a metonímia, a sua última instância? Faço aqui uma passagem de uma morte à outra, a de Lewis Payne para a de Roland  Barthes, essa passagem parece atravessar (entre outras, se nos atrevermos a dizer) pela Fotografia do Jardim de Inverno. E sobre o tema do Tempo. Em resumo, uma sintaxe aterrorizante onde encontro, em  princípio, a mostra de uma concordância singular na transição entre S e P: “... A foto é bela, o rapaz também...”. E, há aqui a passagem de uma morte para outro: “Agora sei que existe outro punctum (outro estigma) além do ‘detalhe’. Este novo punctum que não é mais forma senão intensidade, é o Tempo, é a ênfase dilacerante do noema (isso aconteceu), sua representação pura. Em 1865, o jovem Lewis Payne tentou assassinar o secretário de estado americano W. H. Seward. Alexander Gardner, o fotógrafo, o esperava em sua cela: o rapaz esperava a forca. A foto é bela, o rapaz também: no studium. Porém, o punctum é: vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isso será isso aconteceu; observo com horror um futuro anterior cuja aposta era a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose (aoristo), a fotografia me fala sobre a morte em tempo futuro.

O que me punge é o descobrimento desta equivalência. Ante a foto de minha mãe menina; digo a mim mesmo: morrerá. Tremo como o psicótico de Winnicott, ante uma catástrofe que já ocorreu. Esteja ou não morto o sujeito, toda a fotografia é uma catástrofe”. E, mais adiante: “Porque existe sempre nela esse signo imperioso de minha morte futura, cada foto, mesmo se estivera plenamente enraizada no mundo excitado dos vivos, vem a interpelar a cada um de nós, um a um, alheia a toda generalidade (porém, não alheia a toda transcendênci a)”.O Tempo: metonímia do instantâneo, a possibilidade do relato emanada pelo seu próprio limite. Na modernidade técnica de seu dispositivo, o instantâneo fotográfico não poderá ser em si mesmo outra coisa que a metonímia mais surpreendida de uma instantaneidade velha. Velha, mesmo que jamais seja estranha à possibilidade da tekhné no geral. Se si tomam mil precauções diferenciais, devemos falar de um punctum em toda marca (e a repetição, a iterabilidade[10]  da estrutura), em todo discurso, seja literário ou não. Se assumirmos que não se mantém um referencialismo ingênuo e “realista”, o que interessa e anima a nossa leitura mais reflexiva, ou a mais estudada, é a relação com algum referente único e insubstituível: o que ocorreu apenas uma vez, para dividir-se, de imediato, pelo apontamento ou aspiração, ante o objetivo do Fedón (de Platão[11]) ou do Finnegans Wake (JamesJoyce[12]), do Discurso sobre o método (René Descartes[13]) ou da Lógica de Hegel, do Apocalipsis de João (de Patmos[14] ) ou do Golpe de dados (de Mallarmé[15]). Esta referência irredutível nos é evocada pelo dispositivo fotográfico, em uma poderosa projeção de um sobre o outro.

De fato, a força metonímica divide o traço referencial, suspende e deixa a desejar o referente sem deixar de conservar ao mesmo tempo a referência. Ela permanece viva na mais fiel amizade, enluta o destino final, o comprometendo simultaneamente. L’amitié: entre os dois títulos, o do livro e o da contribuição final em cursivas, entre os títulos e o exergo[16] (“citações” de Bataille afirmando duas vezes a “amizade”), o intercâmbio é, contudo, metonímico, porém, nele a singularidade não perde sua força, pelo contrário. “Sei que existem os livros...

São os próprios livros que remetem a uma existência. Esta existência, porque já não é uma presença, começa a esclarecer-se na história, e a pior das histórias, a história literária...

Se queres publicar “tudo”, dizer “tudo”, como se não existira senão uma urgência: que seja dito; como si o ‘tudo já está dito’ devera permitirmos, finalmente, reter uma palavra morta... Embora exista quem nos é próximo e, com ele, o pensamento nele se afirma, seu pensamento se abre ante nós. Porém, o preservado nessa relação e no que a preserva, não é somente a mobilidade da vida (que seria pouco), senão o imprevisível que nela introduz a estranheza final...

Sei bem que em seus livros, Georges Bataille parece falar de si mesmo com uma liberdade sem restrições que nos deveria despojar de toda discrição, - porém, que não nos dá o direito de nos colocar em seu lugar, nem o poder de lhe tomar a palavra na sua ausência. Porém, é certo de que fala de si?... Devemos renunciar a conhecer a quem nos liga a algo essencial; quero dizer, vemos os acolher na relação com o desconhecido de onde também eles nos acolhem em nosso distanciamento”. De onde vem o desejo de finalizar estas últimas linhas (14 e 15 de setembro de 1980)? A data, que é sempre um pouco uma assinatura, exibe a contingência ou a  nsignificância da interrupção. Como o acidente e como a morte, parece imposta, “aquele dia” (aqui concordam o tempo e o espaço, os marcos de uma publicação, etc.), porém, afirma, sem dúvida, outra interrupção. Esta não é mais essencial nem mais interior, porém se anuncia como outra compreensão, outro pensamento da mesma...

Hoje, al regressar da experiência um pouco insular em cuja essência havia-me afastado com os dois livros, olho somente as fotografias incluídas em seus outros livros (sobretudo em Roland Barthes par Roland Barthes) e nos periódicos. Já não me separo das fotografias e dos manuscritos. Não sei o que prossigo buscando, porém o procuro através de seu corpo, o que mostra dele e o que diz sobre ele, ou que eventualidade esconde dele, assim como o que ele não podia ver em sua escrita. Busco nas fotos os “detalhes” e creio, sem a menos ilusão, sem complacência, que alguma coisa me olha sem me ver, como ele mesmo dizi a e como acredito, nas páginas finais de La chambre claire. Trato de imaginar os gestos em torno daquela que se acredita ser a escrita essencial. Por exemplo, como ele escolheu todas essas fotografias de meninos e de velhos? Quando elegeu este “lugar de memória”? Marpa[17] falando da morte de seu filho? E essas linhas brancas sobre o fundo negro no interior da coberta de Roland Barthes par Roland Barthes...? Hoje mesmo alguém recorda uma palavra (menos que uma carta, uma frase apenas) que me foi destinada sem ser-me dada faz vinte e quatro anos, exatamente. Na véspera de uma viagem, essa palavra devia acompanhar o dom de um livro singular, um pequeno livro que é ilegível, contudo, para mim, hoje. Sei, creio saber por que se interrompeu esse gesto. Foi muito mais contida (de fato, o pequeno livro esta incluído em outro), como a memória protegida da interrupção. Esta, por razões às vezes grave e veloz, tinha muito a ver com algo que estou tentado a chamar o todo da minha vida.

A coisa, (que recebo hoje na véspera da mesma viagem, quero dizer, através dos mesmos lugares), eu encontrei por acaso, muito tempo depois da morte de quem me a destinou. Tudo me é muito próximo, a forma da escrita, a assinatura, as próprias palavras; outra interrupção converte isto em algo muito distante, tão inteligível como a pequena diária insignificante, certamente, porém, na interrupção o outro aparecido se dirige a mim, dentro de mim, o outro verdadeiramente aparecido... O papel conserva suas dobras de vinte e quatro anos, leio a escrita azul (cada vez mais sensível à cor da escrita, de qualquer modo, agora o sei melhor) de alguém que, ao falar da morte, me havia dito um dia, embora nós estivéssemos em um automóvel, me recordo frequentemente: “isso me ocorrerá a qualquer momento”. E assim o foi. Foi ontem. Outra coincidência estranha, um amigo me envia, precisamente hoje, dos Estados Unidos, a fotocópia de um texto de Barthes que eu nunca havia lido (Análise textual de um conto de Edgar Allan Poe[18], 1973). Haveria de ler mais tarde. Porém, ao “percorrê-lo” havia a advertência: “Outro escândalo da enunciação é o retorno da metáfora como expressão. De fato, é trivial anunciar a frase ‘estou morto! ’... o revolvimento da metáfora em expressão, para esta metáfora, precisamente, é impossível: a enunciação do ‘estou morto’, segundo a sua expressão literal, está forcluida ... Se trata, pois, se si quer, de um escândalo da linguagem... Trata-se aqui de um realizar, porém, é tal que nem Austin nem Benveniste o haviam previsto em suas análises..., a frase inaudita “Estou morto” não é de forma alguma um enunciado incrível, senão muito mais radicalmente, a enunciação impossível”. Esta enunciação impossível, “Estou morto” não ocorre nunca? Tem razão; “com apego a expressão”, está “forcluida”. E, contudo, a compreende, é possível a compreensão do seu sentido chamado “literal”, mesmo que seja apenas para declará-lo legitimamente impossível no seu ato de enunciação. E ele, em que pensava no momento em que se referia a essa expressão? Sem dúvida, pensava pelo menos nisto: que na idéia de morte, quando qualquer outro predicado torna-se problemático, a idéia é compreendida de maneira analítica: incapaz de enunciar, de falar, de dizer eu no presente, etc. Sim, eu pontual, pontuando, no instante, uma referência a si como a um referente único, etc., esta referência auto-afetiva que define o coração do vivente. Retornar deste ponto à metonímia, à força metonímic a do punctum sem a qual não haveria punctum como tal...

No coração da tristeza pelo amigo quando morre, esse ponto podeser tal, que depois de afirmar uma morte tão numerosa, e pronunciar com tanta freqüência “estou morto” de acordo com a metáfora ou a metonímia, nunca pode dizer literalmente “estou morto”. Se o tivesse feito, teria cedido ainda à metonímia. Porém a metonímia não é o horror ou a mentira, não diz o falso. E no ensejo da expressão talvez não haja punctum. Isto é que torna impossível qualquer enunciação, porém nada reduz o sofrimento; inclusive, é uma fonte, uma fonte de sofrimento, o não-pontual, o inimitável. Ao escrever retornando à expressão, e se tentar traduzir para uma outra língua... (todas essas perguntas são tanto da tradução como da transferência).  Eu: o pronome ou o nome, o proto-nome daquele a quem o enunciado “estou morto” não pode alcançar, o enunciado literal, certamente, e se for possível o enunciado não metonímico? E isto, mesmo quando sua enunciação fosse possível? A enunciação do “estou morto” que ele disse impossível, não surge desse regime que ele chama, em outra parte, de utópico, - e ao que chama? E não se impõe a utopia nesse lugar, se nos é possível ainda dizer, em que uma metonímia atua sobre esse eu em sua relação consigo mesmo, o eu, quando não remete a nada mais que aquele que fala no presente? Haveria alguma coisa como uma frase do eu e, o tempo dessa frase elíptica, daria lugar à substituição metonímica. Para se dar tempo, seria preciso regressar, aqui, sobre aquilo que vincula implicitamente em La chambre claire ao Tempo como punctum e a força metonímica do punctum...  

“O que eu devo fazer?” Em La chambre claire, ele parece aprovar o que coloca o “valor civil” por cima do “valor moral”. Em Roland Barthes par Roland Barthes disse que se deve entender por moralidade como “o contrário da moral (é o pensamento do corpo em estado de linguagem)”. Entre o possível e o impossível do “estou morto” se encontra a sintaxe do tempo e alguma coisa como a categoria de iminência (o que aponta no sentido de futuro, o que está a ponto de chegar). A iminência da morte se apresenta, ela esta sempre a ponto de, apresentando-se precisamente por não apresentar-se já e a morte se mantém, então, entre a eloqüência metonímica do “estou morto” e o instante em que leva até o silêncio absoluto, sem admitir mais nada (um ponto final é tudo). Desde a sua iminência, esta singularidade pontual (entendendo esta última palavra como um adjetivo, porém, também, como uma espécie de verbo que marcam a sintaxe ainda durável de uma frase) irradia o corpus, nos faz respirar em La chambre claire esse ar cada vez mais denso, atormentado, povoado de espectros. Sirvo-me destas palavras, “emanação”, “êxtase”, “loucura”, “magia”, para referir-me a ele. É inevitável, justo e injusto, que os livros mais “autobiográficos” (os que ele escreveu no final, escutei dizer) começam com a morte para dissimular os outros. E, além, começam na morte. Cedendo ao movimento, eu não abandonaria de imediato esse Roland Barthes par Roland Barthes que, em suma, em não soube ler. Entre as fotos e grafias se encontram todos os textos dos quais eu devia ter falado ou dividido com os que eu devia meaproximar... Não o fiz sem saber nos os fragmentos precedentes? Por exemplo, neste preciso instante, quase ao azar, baixo o título Sua voz (“a inflexão, é a voz no que há já de irremediavelmente passado, morto”); plural, diferença, conflito; para que serve a utopia? Falsificações (“escrevo de forma clássica”), o círculo de fragmentos; o fragmento como ilusão; do fragmento ao diário; pausas: anamnesis (“O biografema[19] não é outra coisa que uma anamnesis  fática: a que atribuo ao autor que amo”); a lassidão das grandes palavras (“História” e “Natureza”, por exemplo); Os corpos que passam; o discurso previsível (por exemplo: “Texto dos mortos: invocação de que não podemos mudar uma só palavra”), relação com a psicanálise; amo, não amo (na antepenúltima linha intento compreender como pude escrever “não amo... a fidelidade”.

Sei que dizia também amá-la e que podia dar à lembrança dessa palavra. Suponho, - pela qualidade do tom, do modelo, da inflexão, de certa maneira de dizer rapidamente, porém de maneira significativa amo, não amo, - que, neste caso não amava esse pathos de que se encarrega, facilmente, a fidelidade e, sobretudo, a palavra; o discurso sobre a fidelidade no instante em que se cansa, converte-se em algo terno, tenso, insosso, proibido, infiel). Da escolha de uma indumentária; mais tarde... Teoria contrapontista ou desfiladeiro dos estigmas: uma ferida surge, sem dúvida, no lugar do ponto de singularidade sinalado, no lugar do instante (estigmatizado) em sua extremidade. Porem, em / no lugar deste acontecimento, o lugar cedeu, através da mesma ferida, à substituição que se repete, conservando apenas um desejo passado do insubstituível. Ainda não logro recordar quando li ou escutei seu nome pela primeira vez, e depois como chegou a converter-se em alguém para mim. Porém, se a anamnesis sempre se interrompe de imediato e promete, cada vez, o recomeço, este não chegou ainda.

Texto publicado pela primeira vez em Poétique, n. 47, em setembro 1981.




Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Publicado originalmente em: Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 7, n. 20 –Agosto de 2008 - ISSN 1 676-8965.


[1] Em português: Barthes, Roland, O grau zero da escritura.
[2] Em português: Barthes, Roland, A câmara clara: nota sobre
a fotografia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. (NdoT).
[3] Em português: Roland Barthes, Roland Barthes por Roland
Barthes, São Paulo, Estação Liberdade, 2003 (NdoT).
[4] Esta é a forma do qu e eu buscava: o que acontece, o que não acontece e não vale mais p ara ele; como sempre, ele declara que
busca o que vem e o que acontece a ele, o conveniente, o que se ajusta como uma peça de roup a, mesmo que seja uma roupa feita
e à moda, deve submeter-se ao habitus inimitável de um só corpo. Eleger, então, suas palavras, novas e muito velhas, no
tesouro das línguas, como se elege uma peça de roupa e o tomar em consideração em seu todo: a estação, a moda, o lugar, a tela,
o tom, o corte.
[5]Também conhecido como São João, João Evangelista ou
Apóstolo João.
[6] Aufklärer, em Kant, tem o sentido de maioridade e descreve a situação do indivíduo esclarecido, a autonomia, o momento fundamental para a compreensão positiva de liberdade. (NdoT).
[7]Traço, movimento. (NdoT).
[8] Referência, relação. (NdoT).
[9] 9 - Blanchot, Maurice, L’Amitié, Paris, Gallimard, 1971.
[10]  o conceito de iterabilidade em Derrida, implica a possibilidade incessante de repetição na alteridade. (NdoT).
[11] NdoT.
[12] NdoT.
[13] NdoT.
[14] NdoT.
[15] NdoT.
[16]  O que está fora, mas, ao mesmo tempo, presente na obra.(Em economia, o termo corresponde à parte inferior da moeda,onde geralmente se grava a data ou alguma legenda). NdoT.
[17] Chökyi Lodrö de Mar, mais conhecido como Marpa (1012-1097) foi o primeiro membro tibetano da linhagem Kagyü.Dizem as tradições que o restabelecimento do Budismo no Tibet ocorreu, em grande medida, graças a ele. (NdoT).
[18] "Analyse textuelle d'un conte d'Edgar Allan Poe", In Sémiotique narrative et textuelle, Paris, Larousse, 1973. (NdoT).
[19] Barthes, na página 51 do seu A Câmara Clara, (Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984), define ‘biografema’ deste modo: “... gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de ‘biografemas’; a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia”. (NdoT).




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