Se uma característica de um momento
verdadeiramente revolucionário é o fracasso completo das categorias
convencionais para descrever o que está acontecendo à nossa volta, então temos
um bom sinal de que estamos vivendo em tempos revolucionários.
A confusão profunda, ou até mesmo a
incredulidade, demonstrada pelos comentaristas franceses e estrangeiros, diante
dos “atos” sucessivos do drama dos Coletes Amarelos, que agora vai se
aproximando rapidamente de seu clímax insurrecional, é o resultado de uma quase
total incapacidade de se levar em conta os modos com que o poder, o trabalho, e
os movimentos que se posicionam contra o poder, mudaram no curso dos últimos 50
anos, e particularmente desde 2008. Os intelectuais em sua maior parte fizeram
um péssimo trabalho em entender essas mudanças.
Permita-me oferecer duas sugestões sobre as
origens dessa confusão:
1. Em uma economia financeirizada, apenas os
que se encontram mais perto dos meios de criação de dinheiro (essencialmente,
os investidores e as classes de profissionais gestores) estão em posição de
empregar a linguagem do universalismo. Como resultado, qualquer reivindicação
política baseada em necessidades e interesses particulares tendem a ser
tratadas como manifestações de política identitária, e no caso da base social
dos Coletes Amarelos, portanto, não se pode imaginar que seja nada senão
protofascista.
2. Desde 2011, houve uma transformação em
escala mundial dos pressupostos do senso comum sobre o significado de
participar em um movimento democrático de massa – ao menos da parte dos que
mais provavelmente participariam dele. Os outros modelos “verticais” ou
vanguardistas de organização deram lugar rapidamente a um ethos horizontal
aonde a prática e a ideologia (democrática, igualitária) são no final de contas
dois aspectos da mesma coisa. A incapacidade de compreender isso dá a falsa
impressão de que movimentos como os Coletes Amarelos são anti-ideológicos, ou
até mesmo niilistas.
Deixe-me fornecer alguns argumentos de fundo
para essas afirmativas.
Desde o abandono do padrão monetário do ouro
em 1971, vimos uma mudança profunda na natureza do capitalismo. A maioria dos
lucros corporativos não derivam mais da produção nem da comercialização do que
quer que seja, mas da manipulação do crédito, dívida, e “capital rentista
regularizado”. À medida que as burocracias governamentais e financeiras se
tornaram tão intimamente interligadas ao ponto de se tornar cada vez mais difícil
diferenciar uma da outra, a riqueza e o poder – particularmente o poder de
criar dinheiro (ou seja, o crédito) – também se tornou na prática a mesma
coisa. (Era para isso que estávamos chamando atenção no Occupy Wall Street
quando falávamos dos “1%” – aqueles com a capacidade de transformar a sua
riqueza em influência política, e sua influência política de novo em riqueza.)
Apesar disso, comentadores políticos e midiáticos recusaram-se sistematicamente
a reconhecer a nova realidade. Por exemplo, no discurso público, fala-se de
política fiscal como se esta fosse principalmente a maneira como o governo
levanta fundos para financiar as suas operações, quando na verdade é cada dia
mais simplesmente uma maneira de: 1) assegurar-se que os meios de criação de
crédito não serão democratizados (já que apenas o crédito oficialmente aprovado
é aceitável para pagamento de imposto), e 2) redistribuir o poder econômico de
um setor da sociedade para outro.
Desde 2008 os governos vêm injetando dinheiro
novo no sistema financeiro, o qual, devido ao notório “efeito de Cantillon”,
tendeu a ser acumulado majoritariamente por aqueles que já têm ativos
financeiros, e seus aliados tecnocratas das classes profissionais gestoras. Na
França obviamente esses são precisamente os macronistas. Os membros dessas
classes sentem-se como a encarnação de todo e qualquer universalismo, a sua
concepção de universal sendo firmemente enraizada no mercado, ou de maneira
crescente, na fusão atroz entre burocracia e mercado que é a ideologia dominante
no que se chama “centro político”. Os que trabalham nessa nova realidade
centrista são cada dia mais impedidos de aceder a qualquer possibilidade de
universalismo, já que eles literalmente não podem pagar por ele. A habilidade
de agir a partir de uma preocupação com o planeta, por exemplo, e não a partir
das exigências de mera sobrevivência, é agora um efeito colateral direto de
formas de criação de dinheiro e de distribuição gestionária da renda; qualquer
pessoa forçada a pensar exclusivamente em si mesmo ou nas necessidades
materiais imediatas da sua família é vista como afirmando a sua própria
identidade particular; e enquanto certas identidades podem ser permitidas com
indulgência e condescendência, as da “classe trabalhadora branca” só podem ser
uma forma de racismo. Vimos a mesma coisa nos Estados Unidos, aonde os
comentaristas liberais de esquerda foram capazes de argumentar que se os
mineiros de carvão votavam em Bernie Sanders, um socialista judeu, isso só
poderia ser expressão de racismo, ou na insistência estranha que os Coletes
Amarelos sejam fascistas, mesmo que eles não o tenham percebido.
Esses são instintos profundamente
antidemocráticos.
Para entender o apelo do movimento – ou seja,
a repentina emergência e a disseminação incendiária de uma política realmente
democrática ou mesmo insurrecional – creio que é preciso atentar para dois
fatores em geral não levados em consideração.
O primeiro é que o capitalismo financeiro
envolve um novo alinhamento de forças, sobretudo ao opor os gestores-técnicos
(cada vez mais empregados em simples “trabalho de merda”, como parte do sistema
de redistribuição neoliberal) à classe trabalhadora, que é agora vista mais
como as “classes cuidadoras” – como aqueles que nutrem, cuidam, mantêm,
sustentam, mais do que os “produtores” de antigamente. Um efeito paradoxal da
informatização é que ao mesmo tempo que a produção industrial se tornou
infinitamente mais eficiente, a riqueza, a educação, e outros setores do
cuidado se tornaram menos. Isso combinado com o desvio dos recursos para as
classes administradoras sob o neoliberalismo (e os cortes no estado do bem
estar associados a ele) significou que, em quase toda parte, foram os
professores, enfermeiros, trabalhadores em clínicas de repouso, paramédicos, e
outros membros das classes cuidadoras que se tornaram a vanguarda da militância
trabalhadora. Os choques entre os trabalhadores de ambulância e a polícia em
Paris na última semana podem ser tomados como um símbolo nítido do novo arranjo
de forças. Mais uma vez, o discurso público ficou aquém das novas realidades,
mas com o tempo, vamos ter que começar a fazer perguntas completamente
diferentes: não que tipos de trabalho podem ser automatizados, por exemplo, mas
quais queremos afetivamente que o sejam, e quais não; quanto tempo estamos
dispostos a manter um sistema no qual quanto mais o trabalho de uma pessoa
ajuda imediatamente ou beneficia imediatamente outros seres humanos, menos ele
será provavelmente pago por isso.
Em segundo lugar, os acontecimentos de 2011,
a começar pela Primavera Árabe, passando pelos movimentos das praças até o
Occupy, parecem ser marcados por uma quebra fundamental do senso comum
político. Uma maneira de saber que um momento de revolução global de fato
aconteceu é que ideias consideradas loucas pouco tempo antes repentinamente se
tornam pressupostos fundamentais da vida política. A estrutura sem liderança,
horizontal, diretamente democrática do Occupy, por exemplo, foi quase
universalmente caricaturada como idiótica, sonhadora e pouco prática, e assim
que o movimento foi suprimido, pronunciada como a razão para o seu “fracasso”.
De fato, ele parecia exótico, ao se basear profundamente não apenas na tradição
anarquista, mas no feminismo radical, e até mesmo, em certas formas de
espiritualidade indígena. Mas agora ficou claro que este passou a ser o modo
default de organização democrática em qualquer lugar, da Bósnia ao Chile, a
Hong-Kong ao Kursditão. Se um movimento democrático de massas emerge, essa é a
forma que se espera que ele tenha. Na França, o Nuit Debout pode ter sido o
primeiro a abraçar esse tipo de política horizontal em uma escala de massa, mas
o fato de um movimento originado entre trabalhadores rurais, pequenas cidades,
ou auto-empregados ter adotado espontaneamente uma variação desse modelo mostra
o quanto se trata de um novo senso comum sobre a natureza da democracia.
Talvez a única classe de pessoas que parece
incapaz de captar essa nova realidade sejam os intelectuais. Da mesma forma
como durante a Nuit Debout, muitas das autodenominadas “lideranças” do
movimento pareciam incapazes ou relutantes em aceitar a ideia de que formas
horizontais de organização eram na verdade uma forma de organização (eles
simplesmente não podiam entender a diferença entre a rejeição de estruturas hierarquizadas
e o caos total), também agora os intelectuais de esquerda ou de direita
insistem que os Coletes Amarelos são “anti-ideológicos”, incapazes de entender
que, para movimentos sociais horizontais, a unidade da teoria e da prática (que
para os movimentos sociais radicais do passado tendiam a existir muito mais na
teoria do que na prática) existem de fato na prática. Esses novos movimentos
não precisam de uma vanguarda intelectual para fornecer-lhes uma ideologia
porque eles já têm uma ideologia: a rejeição das vanguardas intelectuais, a
adoção da multiplicidade e da própria democracia horizontal.
Certamente há um papel para intelectuais
nesses movimentos, mas ele terá que envolver muito menos fala e muito mais
escuta.
Nenhuma dessas novas realidades, seja as
relações entre dinheiro e poder, seja a nova compreensão da democracia, vão
sumir num futuro próximo, aconteça o que acontecer no próximo Ato do drama. O
chão se moveu sob os nossos pés, e faríamos bem em pensar sobre aonde devemos
depositar nossas lealdades: sobre o pálido universalismo do poder financeiro,
ou sobre aqueles cujos atos de cuidado tornam a sociedade possível.
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