3/18/2011

Poemas de EDMOND JABÈS │ Tradução: Caio Meira






Foto:  © Paul EDWARDS






O estrangeiro

Ele vivia de desejo e da tinta de sua caneta. Detestava frases canhestras e clichês tanto quanto reuniões — as familiares, em particular as que deixaram vermelhos os olhos de sua infância —, livros de ouro e jornais. Sua origem era ignorada; isso gerava nos curiosos intermináveis especulações a seu respeito: a saber, se era um estrangeiro — ainda que seu sotaque nunca o tivesse denunciado — ou um cidadão do país — nesse caso, pelo menos um parente seu seria conhecido. Alguns diziam que se desinteressava da condição das palavras, que era um egoísta incurável; outros, ao contrário, sustentavam que se ele se mantinha distante de seus semelhantes era porque estava infeliz. Atribuíam a ele algumas aventuras amorosas, mas todas com misteriosas viajantes que ficavam por um dia e depois não eram mais vistas. Os filósofos se confessavam impotentes para associá-lo a seus tratados. Ele surgia da pena, de surpresa, como se fosse atraído pelo rosto ou pela voz de um vocábulo de cujo poder de sedução ninguém suspeitara, para se tornar um dos enigmas da poesia.




L’Étranger

Il vivait de désir et d’encre. Il détestait les phrases empruntées, les clichés autant que les réunions — celles de famille en particulier qui ont rougi les yeux de son enfance — les livres d’or et les journaux. On ignorait son  origine ; ce qui donnait lieu, de la part des curieux, à d’interminables spéculations sur son compte : à savoir s’il était un étranger – bien que son accent ne l’eût jamais trahi — ou un citoyen de ce pays-ci — auquel cas on lui aurait connu au moins un parent. Certains disaient qu’il se désintéressait de la condition des mots, qu’il était un incurable égoïste ; d’autres, au contraire, soutenaient que, s’il gardait ses distances avec ses semblables, c’est parce qu’il était malheureux. On lui attribuait quelques liaisons, mais toutes avec de mystérieuses voyageuses débarquées pour un jour et qu’on ne revit plus. Les philosophes avouaient leur impuissance à l’associer à leurs traités. Il surgissait de la plume par surprise, attiré, on eût dit, par le visage ou la voix d’un vocable dont personne n’avait soupçonné le pouvoir de séduction, pour devenir une des énigmes de la poésie.


Petites incursions dans le monde des masques et des mots [1956]. In : Jabès, Edmond, Le Seuil le Sable, Paris, Gallimard, 1990, pp. 315-316


*


A cada manhã, ao acordar, eu me digo


A cada manhã, ao acordar, eu me digo: Não conceda nenhum crédito a seu pensamento. Registre e anote.
E rastreio tudo o que se oferece — ou se esconde — à visão. Impiedosamente.
Por preguiça ou desinteresse, nem sempre anoto. É preciso aprender escrever com palavras plenas de silêncio.
Todo livro não é a anedota ou a história trágica da perda de um livro?
Um jogo, certamente. Não me acontece esquecer quem sou e onde estou?
Venho de outro país; com certeza é por isso.
Lembro-me, entretanto, que quando eu ainda vivia na terra de minha infância, tinha a impressão de vir de outro lugar, de outra cidade, de outro continente, sem nunca chegar a saber exatamente quais seriam.
Ignorar de onde se vem quase significa confessar vir de nenhum lugar. Mas isso é ridículo.
Eu me calava. Fazia como se…
Sou um silencioso. Pergunto-me, graças ao recuo que agora tenho de minha vida, se esse gosto pronunciado pelo silêncio não tem sua origem na dificuldade que sempre tive de me sentir pertencer a um lugar qualquer.
Antes de conhecer o deserto, eu sabia que ele era meu universo. Somente a areia pode acompanhar uma palavra muda até o horizonte.
Escrever sobre a areia, à escuta de uma voz do além-tempo, os limites abolidos. Voz violenta do vento ou, imóvel, do ar, essa voz resiste a você. O que ela anuncia é o que o agride ou esmaga. Palavra das profundezas abissais das quais você não é senão um ruído ininteligível; a sonora ou inaudível presença.
Se fosse preciso uma imagem para o Nada, ele nos seria dada pela areia. Poeira de nossos liames. Deserto de nossos destinos.
Para o desenraizado, a árvore é o elemento da paisagem que não o retém.
Pedras anônimas, edifícios se erguem à glória do anonimato. Ó cidades em que erro à procura de meu passado ancestral, lendo-o em cada ferida revelada pela espessura dos muros fendidos. Apesar de vocês, suas pedras amordaçadas de cimento e cal me reconheceram; pois, como eu, elas não são daqui, e não se lembram senão da noite, úmida e compacta, de onde foram extraídas.
Vivi da errância, como o capitalista vive de suas rendas, tendo, de meus antepassados, herdado uma terra hostil. Terei de acrescentar que ela talvez tenha sido, em sua hostilidade, meu único bem?
Estrangeiro, apenas um mundo estrangeiro poderia ser o meu.





 Chaque matin, au réveil, je me dis


Chaque matin, au réveil, je me dis : « N’accorde à ta pensée aucun crédit. Enregistre et note.
« Et je traque tout ce qui s’offre — ou se cache — à la vue. Impitoyablement.
« Par paresse ou désintéressement, je ne note pas toujours. Il faut apprendre à écrire avec des mots gorgés de silence.
« Tout livre n’est-il la cocasse ou tragique histoire de la perte d’un livre ?
« Un jeu, certes. Ne m’arrive-t-il pas d’oublier qui se suis et où je suis ?
« Je viens d’un autre pays ; c’est, bien évidemment, pour cela.
« Je me souviens, cependant, que lorsque je vivais encore dans la patrie de mon enfance, j’avais le sentiment de venir d’ailleurs, d’une autre cité, d’un autre continent, sans jamais arriver à préciser lesquels.
« Ignorer d’où l’on vient, c’est presque avouer venir de nulle part. Mais cela est ridicule.
« Je me taisais. Je faisais comme si…
« Je suis un silencieux. Je me demande, grâce au recul que je prends, maintenant, avec ma vie, si ce goût prononcé par le silence n’a pas son origine dans la difficulté qui, de tout temps, fut la mienne, de me sentir d’un quelconque lieu.
« Avant de connaître le désert, je savais qu’il était mon univers. Seul le sable peut accompagner une parole muette jusqu’à l’horizon.
« Écrire sur le sable, à l’écoute d’une voix d’outre temps, les limites abolies. Voix violente du vent ou, immobile, de l’air, cette voix vous tient tête. Ce qu’elle annonce est ce qui vous agresse ou écrase. Parole des abyssales profondeurs dont vous n’êtes que l’intelligible bruit ; la sonore ou l’inaudible présence.
« S’il fallait une image au Rien, le sable nous la fournirait. Poussière de nos liens. Désert de nos destins.
« Pour le déraciné, l’arbre est un élément du paysage qui ne le retient pas.
« Pierres anonymes, des édifices s’élèvent à la gloire de l’anonymat, Ô villes, où je flâne en quête de mon arrière passé, le lisant dans chaque blessure révélée par l’épaisseur des murs fissurés. Vos pierres que ciment e chaux bâillonnent m’ont, malgré vous, reconnu ; car, comme moi, elles ne sont pas d’ici e ne se souviennent que de la nuit, humide et compacte, d’où elles furent extraites.
« J’ai vécue d’errance, comme le capitaliste de ses rentes, ayant, de mes ancêtres, hérité d’une terre hostile. Ajouterais-je qu’elle fut, dans son hostilité, peut-être, mon seul bien ?
« Étranger, seul un mode étranger pouvait être le mien. »


Edmond Jabès, Un étranger, avec, sous le bras, un livre de petit format, Paris, Gallimard, 1989, pp. 32-33






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Canção do estrangeiro

Estou à procura
de um homem que não conheço,
que nunca foi tão eu mesmo
quanto desde que o procuro.
Teria ele meus olhos, minhas mãos
e todos esses pensamentos semelhantes
aos destroços deste tempo?
Estação de mil naufrágios,
o mar deixa de ser mar,
convertido em água gelada dos túmulos.
Mais longe, porém, quem sabe mais longe?
Uma menina canta a contragosto
e, à noite, reina sobre as árvores,
pastora em meio a carneiros.
Arranquem a sede do grão de sal
que nenhuma bebida poderá aplacar.
Com as pedras, um mundo se consome
por ser, como eu, de parte alguma.




*


Chanson de l’étranger

Je suis à la recherche
d’un homme que je ne connais pas,
qui jamais ne fut tant moi-même
que depuis que je le cherche.
A-t-il mes yeux, mes mains
et toutes ces pensées pareilles
aux épaves de ce temps ?


Saison de mille naufrages,
la mer cesse d’être mer,
devenue l’eau glacée des tombes.
Mais, plus loin. Qui sait plus loin ?
Une fillette chante à reculons
et règne la nuit sur les arbres,
bergère au milieu des moutons.
Arrachez la soif au grain de sel
qu’aucune boisson ne désaltère.
Avec les pierres, un monde se ronge
d’être, comme moi, de nulle part.


Chansons pour le repas de l’ogre [1943-1945]. In : Jabès, Edmond, Le Seuil le Sable, Paris, Gallimard, 1990, p. 46)








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Edmond Jabès, o estrangeiro
Caio Meira


Inédita em livro no Brasil, a obra poética de Edmond Jabès inscreve-se, sem dúvida, entre as mais singulares de toda a literatura contemporânea. Sob qualquer que seja o ângulo que a observemos, ela apresenta a marca de se manter irredutível a classificações, situando-se sempre em regiões fronteiriças, isto é, nas zonas de tensão entre as várias formas e gêneros que a escrita pode assumir. Em virtude desse aspecto inclassificável ou irredutível, uma característica maior de sua escrita é ser estrangeira a definições, explicações; trata-se de uma escrita antes de tudo estrangeira a si mesma, pois é percorrendo a própria indeterminação, sempre ampliando ou recuando suas fronteiras, que o texto de Jabès encontra sua força. Essa indeterminação radical se inscreve em vários níveis e camadas de sua poética, sendo, de fato, o que lhe dá caráter original e inovador, além de perturbador e subversivo. A escrita jabesiano, enigmática e grave, mas ao mesmo tempo clara e direta, situa-se sempre nas fronteiras entre poesia, prosa, reflexão filosófica, relato autobiográfico, narrativa histórica e mística, sem, porém, apresentar qualquer traço de dogmatismo.

O estrangeiro que fundamenta a poética de Edmond Jabès encarna-se em primeiro lugar nas figuras do exilado, do nômade, do desenraizado, do deslocado ou em qualquer outro nome que designe, de alguma maneira, aquele que veio de fora, ou que, pelo menos, suscita a questão do limite, da fronteira. Trata-se, mais do que caracterizar psicológica ou socialmente essas personagens, de dar voz uma questão verdadeiramente estrangeira, inesgotável, ou a uma multiplicidade de questões que atravessam e marcam seu texto estrangeiro desde Le livre des questions (1963). Todos os livros surgidos depois deste livro fazem parte de um grande Livro das Questões, local de perpetuação incessante de questões que nem a morte do poeta veio interromper. Em cada página, a reiteração, a renovação e a multiplicação de toda questão. Esse questionamento ininterrupto estabelece uma estrutura dialógica para a escrita jabesiana — ainda que eu e outro estejam entre as figuras questionadas. Interrogar seu próprio eu é, aliás, uma das características mais marcantes do estrangeiro, que é um estrangeiro a si mesmo antes de ser um estrangeiro para o outro. No diálogo jabesiano, portanto, eu e outro não formam duas entidades psicológicas que trocam afirmações, perguntas e respostas. Eles são, antes, veículos da própria questão estrangeira: primeiro porque essa questão parte de um eu indeterminado, segundo porque não há uma “resposta” e sim um relançamento, uma desterritorialização da questão para fora de suas fronteiras.

Escrever, para Jabès, é constituir um lugar onde a primazia é dada à questão, formando um diálogo indeterminado cuja função é perpetuar essa questão e levá-la a seus limites extremos. Tal lugar, porém, só pode ser habitado como estrangeiro, como nômade ou como exilado. Esse habitar que é ao mesmo tempo um desabitar enuncia o lugar da escrita jabesiana, lugar do estrangeiro, mas também o do escritor e sua obsessão pelo Livro. O estrangeiro-escritor é quem vai garantir a perpetuação do questionamento, do diálogo e do livro. Lugar, diálogo, Livro, questão, limite, estrangeiro: essas são algumas das palavras-chave que permitem penetrar na poética jabesiana.


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Caio Meira nasceu em Goiânia (1966). Vive no Rio de Janeiro desde 1984. Graduou-se em psicologia e tem pós-graduação em Teoria Literária/Poética (UFRJ, 2002). Além de textos teóricos e artigos sobre literatura, publicou 3 livros de poesia: No oco da mão (UERJ, 1993),Corpo Solo (Sette Letras, 1998) e Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer (Beco do Azougue, 2003). Romance (2013). Atua também como tradutor da língua francesa, tendo como principais publicações as edições brasileira de dois livros do historiador e crítico literário Tzvetan Todorov: A literatura em Perigo e A beleza salvará o mundo, ambos publicados pela Editora Bertrand do Brasil (2009 e 2010).













Um comentário:

  1. "O estrangeiro-escritor é quem vai garantir a perpetuação do questionamento, do diálogo e do livro." sempre aprendo muito poraqui!!!!!

    beijos

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