3/02/2011

ANTONIN ARTAUD



O Pesa-Nervos

Tradução: Izabela Leal

Senti realmente que você rompia a atmosfera em torno de mim, que fazia o vazio para permitir que eu avançasse, para dar o lugar de um espaço impossível ao que em mim estava apenas em potência, a toda uma germinação virtual, e que devia nascer, aspirada pelo lugar que se oferecia.
Coloquei-me com frequência nesse estado de absurdo impossível para tentar fazer nascer em mim o pensamento. Somos os poucos que nessa época quiseram atentar contra as coisas, criar em nós espaços para a vida, espaços que não existiam e pareciam não poder encontrar lugar no espaço.
Sempre me surpreendi com essa obstinação do espírito em querer pensar por meio de dimensões e espaços, em se fixar nos estados arbitrários das coisas para pensar, em pensar por segmentos, por cristalóides, e que cada modo do ser permaneça petrificado num começo, que o pensamento não esteja em comunicação instantânea e ininterrupta com as coisas, mas que essa fixação e esse gelo, essa espécie de transformação da alma em monumento se produza por assim dizer ANTES DO PENSAMENTO. Evidentemente é a melhor condição para criar.
Mas fico ainda mais surpreso com essa incansável, com essa meteórica ilusão que nos insinua essas arquiteturas determinadas, circunscritas, pensadas, esses segmentos de alma cristalizados, como se fossem uma grande página plástica e em osmose com todo o resto da realidade. E a surrealidade é como um retraimento da osmose, uma espécie de comunicação invertida. Não que eu veja nisso uma diminuição do controle, vejo ao contrário um controle maior, mas um controle que, em lugar de agir, desconfia, um controle que impede os encontros da realidade cotidiana e permite encontros mais sutis e rarefeitos, encontros adelgaçados e reduzidos a um fio, que pega fogo e nunca se rompe.
Imagino, como o único estado aceitável da realidade, uma alma trabalhada e sulfurosa e fosforosa desses encontros.
Mas não sei que lucidez inominável, desconhecida, me dá o tom e o grito e faz com que os sinta como meus. Sinto-os numa certa totalidade insolúvel, quer dizer, de cuja sensação nenhuma dúvida se apodera. E eu, em relação a esses encontros turbulentos, estou num estado de ínfima comoção, quero que imaginem um nada imobilizado, uma massa de espírito enterrada em algum lugar, tornada virtualidade.

*

Vê-se um ator como através de cristais.
A inspiração por etapas.
Não se deve deixar a literatura penetrar demais.

*
Visei apenas à relojoaria da alma, apenas transcrevi a dor de uma adequação abortada.
Sou um abismo completo. Os que me acreditavam capaz de uma dor inteira, de uma bela dor, de angústias fartas e carnudas, de angústias que são uma mistura de objetos, uma trituração efervescente de forças e não um ponto suspenso
– mas com impulsos variados, desenraizantes, que vêm da confrontação de minhas forças com esses abismos do absoluto ofertado,
(da confrontação de forças de volume potente)
e há somente os abismos volumosos, a interrupção, o frio, –
os que então me atribuíram mais vida, que me pensaram num grau inferior de queda do si, que me acreditaram mergulhado num ruído torturado, numa escuridão violenta contra a qual eu lutava,
– estão perdidos nas trevas do homem.

*

No sono, nervos crispados ao longo das pernas.
O sono vinha de um deslocamento de crença, a constrição relaxava, o absurdo não caminhava sobre os pés.

*

É preciso compreender que toda inteligência é apenas uma vasta eventualidade, e que se pode perdê-la, não como o alienado que está morto, mas como um vivo que está na vida e que sente sobre si a atração e o sopro (da inteligência, não da vida).
As titilações da inteligência e essa brusca inversão das partes.
As palavras a meio caminho da inteligência.
Essa possibilidade de pensar para trás e de injuriar imediatamente o pensamento.
Esse diálogo no pensamento.
A absorção, a ruptura de tudo.
E de repente esse filete de água sobre um vulcão, a queda delgada e lenta do espírito.

*

Encontrar-se num estado de extrema comoção, iluminado pela irrealidade, com pedaços do mundo real num canto de si mesmo.

*

Pensar sem a mínima ruptura, sem armadilha no pensamento, sem uma dessas escamoteações súbitas das quais minhas medulas são íntimas como postos-emissores de correntes.
Minhas medulas às vezes se entretêm com esses jogos, se divertem com esses jogos, se divertem com esses raptos furtivos presididos pela cabeça do meu pensamento.
Por vezes, bastaria só uma palavra, uma pequenina palavra sem importância, para ser grande, para falar com o tom dos profetas, uma palavra testemunho, uma palavra precisa, uma palavra sutil, uma palavra bem macerada nas minhas medulas, saída de mim, que se fixaria no extremo limite de meu ser,
e que, para todo mundo, não seria nada.
Sou testemunha, sou a única testemunha de mim mesmo. Essa casca de palavras, essas imperceptíveis transformações do meu pensamento em voz baixa, dessa pequena parte do meu pensamento que declaro já ter sido formulada, e que aborta,
sou o único juiz a avaliar o seu alcance.

*

Uma espécie de deperecimento constante do nível normal da realidade.

 Izabela Leal é poeta, professora da UFPA

Um comentário:

  1. Sempre encontro poraqui consolo pra minha ânsia literária.
    beijo

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