Maria Gabriela Llansol & A Escrita como vontade
Por Nilson Oliveira
I. As três confidências.
As palavras são pedras,
O que nelas vive é o espírito que por elas passa.
Virgilio Ferreira
Maria Gabriela Llansol é na literatura portuguesa contemporânea um curioso caso de singularidade. Da sua escrita cintila uma força, qualidade própria dos renovadores, que faz da literatura um processo imanente à reinvenção da vida. Força que atravessa os livros imprimindo neles um estilo que arrasta a escrita para um espaço mais exigente. Algo não mais acabado, mas contínuo que se estende de um livro a outro erigindo na literatura uma diferença: a palavra outra. Maria Gabriela Llansol é sem engano um modo de escrita; é dessas escritoras que agem silenciosas, suas movimentações são quase invisíveis, dela só vemos as irrupções, em obras jorram num lastro cada vez mais sólido, líquido, surpreendente. Sua escrita se espraia em ondas cada vez mais extensas. O que ela começa em um livro supera no outro esgarçando o seu limite, edificando uma imagem que, pela perspectiva da leitura, se estende além do horizonte da vista, pois viaja numa velocidade cuja força engole e contagia todo aquele que nela se lança. Seduz o leitor como um canto de seria, atrai para o centro da sua atmosfera. Seu movimento revolve a não mais poder, escorre em uma jornada cujo curso ou destino é desconhecido. Essa escrita não tem rosto, está curvada para uma possibilidade outra, diversa, como uma miríade de pensamentos. Todos ligados à questão literária, mas partindo de um ponto que sempre recomeça num movimento preciso: “O mesmo ritmo; a mesma oscilação, criação de espaço e variação de tempo; a mesmíssima combustão” [Finita]; movimento em repetição, mas diga-se, repetição não do mesmo, porque está inserido em um processo de criação que por si só expressa pela diferença, pelo retorno ao novo, pois “o ciclo de Renascimento não está concluído; ainda há tempo, para voltar ao seu começo, e reescrever-lhe um novo sentido” [Finita], para retornar a uma outra coisa. É isso que lemos nos Diários de Maria Gabriela Llansol - um retorno ao ‘recomeço’ da escrita que é o próprio devir-criança da literatura, passagem de uma beleza sem igual. Escrita de uma delicadeza severa, fora das idiossincrasias, por sua radicalidade desloca o plano dos registros, as anotações, para a atmosfera dos acontecimentos. Llansol, em suas páginas, diz o indizível: vai além de si, navega para uma enseada que ultrapassa o limite do sujeito, mas o que alcança está intimamente ligado à vida e as coisas que fazem pulsar a escrita. Com efeito, em seus Diários , Llansol supera o estreito do confessional fazendo desta experiência um combate no qual cintila uma escrita outra. É isso que vemos em “Finita”, “Um Falcão em Punho” e “Inquérito Às Quatro Confidencias”.Três obras erguidas de maneira estilística, o que por si “não é nenhuma inspiração espontânea, nenhuma orquestração, nenhuma musiquinha. É um agenciamento” [1]; o que dá ao propósito um vigor, isto é, uma produção movida por uma potência criadora: fora de qualquer continuidade, tangenciada por uma vontade. Corte fulminante na linearidade, desenhando novos axiomas, “gaguejando em sua própria língua”. Mergulho frontal nas dobras do desconhecido, pura leveza, como quem surfa no horizonte das coisas vivas, fazendo da escrita um corpo que se revigora a cada lance de página escrita: “Escrever é amplificar pouco a pouco” [Um Falcão em Punho]. É a escrita vertida em um ciclo infindável que dilacera o livro e a um só tempo submete aquele que escreve a um processo persecutório. Dessa experiência não se sai ileso. Nela prepondera o desdomínio, a sensível linha que quase não se distingue: “o texto é a curta distância entre dois pontos” [Um Falcão em Punho]. O que aqui chama atenção é o ‘quase’ de que falamos. Palavra dissimulada em fragilidade, pois é o oposto, visto que ela nunca sede, existe para demarcar a sua diferença enquanto diferença radical; ‘quase’, linha aberta no coração do mundo. Outro ponto é o ‘entre’, de que fala Llansol, passagem de imensa sensibilidade, estreita o suficiente para ameaçar a identidade do que nela se lança. Ameaça que atravessa a certeza dos entendimentos, pois o ‘entre’ é a fissura que faz encontrar um lugar e outro, que reside em ambos sem nunca deixar gerar uma unidade, mas sendo também um tipo de atravessamento, todavia como encontro permanente dos diferentes, tal como Fernando Pessoa e sua multiplicidade. Esta possibilidade reside fora do alcance da dialética uma vez que consiste na diferença como força da própria diferença, fazendo da escrita uma máquina nutrida de pensamento, portanto muito mais do que uma letra no deserto da página branca. É esse espaço que possibilita a ‘escrita como vida’, com efeito, a escrita como criação.
Em outra medida, o ‘entre’ sustenta duas curiosas questões: o nascimento da escrita e o fantasma que ronda e ameaça aquele que escreve. É a partir dessa abertura, as fissuras, que a escrita engendra o seu espaço, o ‘não-lugar’, e nele faz gerar as suas questões. Mas isso não é garantia de nada, pois a escrita, no curso da obra, também tem as suas exigências e, por vezes, não permite que nada aconteça acuando o escritor até a fadiga, ao silêncio aterrador que não lhe permite escrever uma linha sequer. Alerta a isso e para não ser tragado pelo ‘vazio’, o escritor se impõe um movimento, a perpétua travessia, tal como fez Rilke. Tudo começa deste ponto, e Llansol atenta a isso escreve: “o texto, lugar que viaja”. ‘Viagem’ sem rumo ou destino, ‘viagem’ que não reconhece nada que não seja a escrita ou que não esteja intimamente ligado a ela; ou seja, ‘dentro’ da escrita, mas ‘fora’ de toda representação, no eterno recomeço, tal como os nômades que sem sair do deserto se deslocam a não mais poder. Llansol migra de um texto a outro sedimentando, num jogo ‘infinito’, uma obra única, tal como pensou Blanchot: “o infinito da obra, numa tal perspectiva, é tão só o infinito do próprio espírito. O espírito quer realizar-se numa única obra” [O espaço literário]. Com efeito, Llansol, pelo que experimenta em sua escrita, navega para o aberto de lugares surpreendentes nos quais desenha a sua marca; nela, o mundo cala-se porque não são, por fim, os seres, suas preocupações, seus desígnios, suas atividades que falam; quem fala é uma linguagem outra que só se expressa pelo que se designou como linguagem literária.
II. O memorial
Mas só as palavras esclarecem,
só nelas o sentir é verdade assumida.
Vergílio Ferreira
Voltemos à questão que desviamos no início, o que é um diário? O que pensar desse recurso de aparência tão frágil que com Llansol ganhou uma estrutura tão sólida? Pois bem, antes de Llansol vimos Goethe, Joubert, Virginia Woolf, Kafka, Jean Cocteau, todos se enredarem nesse recurso e através dele fazerem surgir questões cruciais que atravessam muitos instantes de suas vidas. Contudo, não nos enganemos: o Diário não é o pêndulo que denuncia as circunstâncias da obra ou da vida do escritor. Ele penas acompanha o escritor na sua rotina fora da obra, em momentos vários, registrando as coisas que lhe afetam no interior dos dias. Com isso, o escritor faz do Diário a sua verdade provisória, anotando rigorosamente, de página a página, as situações que o instante lhe determina, sem fazer disso uma confissão, pois não há nada a revelar. Em seu Diário , o escritor escreve para si; é como diz Blanchot, um “Memorial” [2], e nele o escritor escreve tão somente para não perder o eixo, para recordar exatamente o momento em que escreve. “O Diário enraíza o movimento de escrever no tempo, na humildade do cotidiano datado e preservado pela data” [3]. Com efeito, o Diário é o ponto onde o escritor inicia sua jornada a novas memórias: de agora, de depois, mas nunca de ontem, é escrito para frente, a partir do movimento das horas e dos dias, pois esse escritor “não quer romper com a felicidade, a convivência de dias que sejam verdadeiramente dias e que sigam de modo verdadeiro” [4].Por isso a insistência por datas e horas, para não voltar, para seguir adiante. “Talvez seja dito sem a preocupação do verdadeiro, mas é dito com a salvaguarda do evento, pertence aos negócios, aos incidentes, ao comentário do mundo” [5]. Distante da obra, o escritor está entregue à dispersão que os dias lhe ocasionam, vive a (in) certeza de cada momento, daí escreve insistentemente em seu Diário por uma garantia de estabilidade, pois, sabe, não pode desviar do que lhe é “dado” como vocação: a escrita. E talvez por essa razão “os escritores que mantém um Diário sejam os mais literários de todos os escritores”[6].
III. O Diário como invenção
Impossível seguir, na minha narrativa,
uma cronologia contínua.
Vergílio Ferreira
Talvez as razões de Maria Gabriela Llansol, quando faz uso do Diário, não sejam precisamente essas que traçamos acima. Talvez ela esteja inserida em um outro momento desse combate. Contudo sabemos que ela vem da ‘mesma linhagem’ dos escritores que se lançaram ao Diário, mas a sua experiência denuncia uma relação de outro tipo: Llansol se inseriu de tal modo no espaço literário, que a sua escrita esfacelou todas as fronteiras. Nela tudo parece um imenso exercício de estilo. A seu modo, ela reinventou o uso do Diário, pois o escreve como quem navega na literatura sem nunca se esquivar, valendo-se de um estilo como uma verdade que encobre tudo. É isso que vemos em sua trilogia: Finita, Um Falcão em Punho, Inquérito Ás Quatro Confidencias. A própria opção por estender os Diários, a uma espécie de trilogia, mas de livros autônomos e diferentes ligados tão somente pelo estilo, dá a eles uma dimensão literária. Neles, os diários, Llansol encontra Musil, Spinoza, Hölderlin e muitos outros com que trava diálogos extraordinários:
É freqüente em Herbais o tempo, sem a luz, torna-se verde;
Ele (Musil) diz: — O dom de envolver a realidade
numa atmosfera sugestiva (o poeta).
Eu digo: — O dom de envolver uma atmosfera sugestiva
na realidade ( que procuro desenvolver pouco a pouco, e a que chamo
escrita, seja ou não expressa verbalmente e incorporada, por sinais,
no papel) [Um Falcão em Punho].
Nesses Diários, Llansol imprime suas preferências, suas questões, seu pensamento, mas não faz isso por mera estratégia para analisar a literatura, faz pelo prazer, pela alegria de pesar, de criar. Na ‘sua’ escrita, “o pensamento não é o raciocínio, é um feixe de reflexões, de sentimentos, de visões que se encadeiam e abrem caminho...”. E esses caminhos se estendem e se ramificam a outros, que avançam ao longo dos seus Diários, atravessando, como toda boa narrativa, zonas de inventividade, de migração: “Embora goste deste lugar, partir é o objcetivo da minha permanência aqui.”[Um falcão em punho]
IV. A comunidade que vem
Ó mão que escreve projectada na sombra.
Virgilio Ferreira
É curioso como em Inquérito às quatro confidências Llansol se faz acompanhar de uma afetiva comunidade de outros. E como eles desenvolve um diálogo que, sem se propor a falar de tudo, atravessa várias superfícies, sempre deixando transparecer uma habilidade em edificar hiatos, vácuos, numa conversa provida de silêncios, buracos, nos quais se desenha a presença na ausência, o rosto do impensado:
— Gabriela, dança. Se vamos embora daqui, por que não deixar tudo em desordem?
— Tudo o que você vê aqui, vê-se noutro lugar — respondi-lhe, e ela percebeu que
era a minha forma particular de entrar na brincadeira que propunha.
— Não vejo corpo aqui — principia ela.
— Está noutro lugar, e a imagem está aqui.
— Não vejo o Mais Jovem.
— Ainda está no escritório, e no chão da sala.
— Não vejo o jantar.
— Está por fazer, mas pronto noutro lugar.
— Não vejo o espelho.
— Quebrou-se. Mas está no lugar que te disse.
— Não te vejo a ti.
— Estou aqui onde me vês. No azul. Ali.
— Tem quantos muros?
— Não os vejo. Mas se olhar, verei que são três.
— Clamor chegou
— Já não está no escritório.
— É o Vergílio, ao telefone.
— Diz-lhe que está aqui. É aqui o outro lugar. [Inquérito às quatro confidências]
A escrita é a força que conduz a comunidade, nela não há sujeito, é pura intensidade, nômade, constituída de palavras sem sons. São como vozes que sussurram de dentro da escrita / incomunicável a qualquer outro espaço que não seja o da literatura. Vozes atravessadas pelo neutro; vozes (Llansol, Vergílio Ferreira, Augusto Joaquim) que ecoam tão somente para dizer e ir, como os ventos que agitam a areia no deserto, sempre de passagem, trafegando pelo imenso, infinita tela branca: não-lugar.
— Gabriela, e se eu tivesse visto o seu rosto negro?— Pergunta-me o Vergílio.
— Onde os olhos castanhos não sobressaem, e o não-lugar existe?
— Sim. — Dirijo-me para lá, para o meu rosto negro. — o rosto da minha morte e das multidões anônimas a que não pertenço. [Inquérito às quatro confidências]
Com efeito, o não-lugar é também o espaço onde a escrita se afirma destituindo-se do peso de todo autor. Nele, o escritor finalmente encontra a sua morte, ‘alegria breve’, que muito nos faz lembrar o êxtase de Santa Teresa d'Ávila (tão belamente esculpida por Bernini), essa louca vontade que nos arrasta a uma entrega total, da qual Eckhart descreve como o “ultrapassamento infinito no esquecimento, o êxtase, a indiferença a mim mesmo”[7]. Experiência atravessada por uma vontade desejante, pura intensidade, que remetida à esfera do escrever encontra eco no pensamento de Blanchot: “O escritor já não pertence ao domínio magistral em que exprimir-se significa exprimir a exatidão e a certeza das coisas e dos valores segundo o sentido de seus limites. O que se escreve entrega aquele que deve escrever a uma afirmação sobre a qual ele carece de autoridade, que é ela própria sem consistência, que nada afirma, que não é repouso, a dignidade do silêncio, pois ela é o que ainda fala quando tudo foi dito, o que não precede a palavra, porquanto, na verdade, impede-a de ser palavra iniciadora, tal como lhe retira o direito e o poder de interromper-se. Escrever é quebrar o vínculo que une a palavra ao eu, quebrar a relação que, fazendo-me falar para “ti”, dá-me a palavra no entendimento que essa palavra recebe de ti, porquanto ela te interpela, é a interpelação que começa em mim porque termina em ti. Escrever é romper esse elo”[8].
Portanto, segundo Blanchot, quem fala é a linguagem, não mais pertencente ao EU, mas à literatura, à escrita que por essa literatura se faz transparecer, bruta, nua de qualquer verdade. Assim entendemos as palavras de Blanchot que pela sua radicalidade atravessam a intimidade do problema: o ‘não-lugar’, pois em Blanchot todo ponto de origem e de chegada é abolido, e tudo acontece pelo meio, num fluxo enlouquecido, uma espécie de rizoma no qual a escrita desloca-se e a um só tempo afirma-se: é o ‘não-lugar’, espaço no qual reside essa comunidade que vem, trazendo sua força, sua singularidade e, com isso, reinventando o conceito de comunidade: “Trata-se ao mesmo tempo de um confronto e de uma oposição. De se colocar diante de si mesmo para desafiar e se pôr à prova, para se dividir no ser à distância que é também condição desse ser”[9]; fazendo dessa experiência a linha que separa e aproxima, mas sobremaneira condição na qual essa comunidade se mantém ligada pela distância. “Estou aqui onde me vês. No Azul. Ali ”[Inquérito às quatro confidências].
É uma comunidade que não se enquadra nas formas do comum, pois não é de modo algum a comunidade do encontro, mas da própria vivência da solidão, do limite / comunidade impossível.
Gostei muito de conhecê-la, mais ainda pela perspectiva na qual foi apresentada. Abraços
ResponderExcluirPoema Deleuzeano
ResponderExcluirPensamento sem imagem
Anarquia mental
Libertação total
de paradigmas territoriais
Palavras, textos, obras
falando por si só
a estética do nonsense
para dar significado
àquilo que nos amarra
que aprisiona as nossas singularidades
Nasce um poema deleuzeano
longe do lugar-comum
pois a criação
é uma nova possibilidade
de vida não-fascista
sem rótulos
sem marcas
sem estéticas corrompidas
o imprevisível
o intempestivo
surgindo para engendrar
uma beleza que não esteja subjugada ao poder
Milhões de incertezas brotando
Para fazer a diferença das diferenças
Luta filosófica ferrenha
entre palavras e sentidos
Eis um poema deleuzeano...
Tânia Marques 12/07/09