8/04/2011

Carta a D. História de um amor




História de um amor



 Por Juan Forn
Olhem o casal da foto, projetem-na para o futuro e imprimam, sobre ela, essas frases: “Você acabou de completar oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, só pesa quarenta e cinco quilos, mas segue sendo bela, elegante e desejável. Faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos e escrevo a você para compreender o que tenho vivido, o que temos vivido juntos, porque te amo mais do que nunca”. Agora imaginem que essas frases são o começo de uma carta, dele a ela, uma carta de cem páginas que ele irá escrevendo noite após noite, enquanto ela dorme no quarto de cima de uma casinha rodeada de árvores, nas proximidades do povoado de Vosnon, na região francesa do Ausbe. Menos de um ano depois, a polícia local fará esse trajeto, alertada por uma nota pregada na porta da casa: “Prévenir à la Gendarmerie”. A porta está aberta. Na cama matrimonial do quarto de cima jazem em paz André Gorz e sua esposa Dorine. De um lado, uma linhas escritas a mão, dirigidas à prefeita da cidade: “Querida amiga, sempre soubemos que queríamos terminar nossas vidas juntos. Perdoa a ingrata tarefa que te deixamos.”

Pouco antes, Gorz havia terminado de escrever aquela longa carta a sua esposa Dorine e a enviado ao seu editor de sempre, que a públicou com o título “Carta a D. História de um amor”. Na última página, diz Gorz: “À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Não quero assistir a sua incineração, não quero receber um frasco com tuas cinzas. Vigio a sua respiração, minha mão acaricia a sua. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos”.
André Gorz era um judeu austríaco “completamente desprovido de interesse, não tem um centavo, escreve”: assim foi apresentado formalmente à inglesa Dorine, quando ela chegou a Suiça, em 1947, com um grupo de teatro vocacional. Ela esperava outro homem, na Inglaterra, para se casar. Mas, Dorine preferiu subir num trem com Gorz rumo a Paris. Ali trabalhou de modelo vivo, recolheu papel usado para vender por quilo, foi guia de uma escritora britânica que estava ficando cega, enquanto ela escrevia num sótão. Também aprendeu  alemão sozinha (ele se negou a lhe ensinar; havia jurada não voltar a usar essa língua quando correram com ele da Áustria), para ajudá-lo na vistoria da imprensa européia que ele fazia para uma agencia e que se converteria, com o tempo, em sua marca de estilo: o cruzamento entre filosofia e jornalismo de seus potentes ensaios breves. Antes, Gorz fracassou com um romance que pretendia ser um grande ensaio totalizador sobre a época e, até mereceu um prólogo de Sartre (O traidor). O romance levava ao paroxismo esse olhar-se o umbigo, firmemente, dos existencialistas franceses (“Enquanto indivíduo particular, ele não via relevância alguma em que alguém se lhe unisse como individuo particular. Não há relevância filosófica alguma na  pergunta Por Que Se Ama”). No restante de seus livros, Gorz é, exatamente, o oposto dessa voz: nunca impostou, nunca se pôs em primeiro plano, nunca se fixou no próprio umbigo ao teorizar, nunca escreveu outro romance, tampouco; é considerado o pai da ecologia política.  Saber-se-á o que significará isso dentro de alguns anos. Mas, mesmo assim, a obra de Gorz termina sendo apenas uma nota de rodapé desse tempo (o que vai da Guerra Fria e das guerras de libertação às crises do comunismo e a crise da política) que não caiu em nenhuma das armadilhas da inteligência. Essa foi sua virtude, sua forma de fazer filosofia e jornalismo ao mesmo tempo.
Naquela carta que escreveu a Dorine antes de morrer, Gorz lhe diz: “Nossas relação se transformou no filtro pelo qual passava minha relação com a realidade. Por momentos, necessitei mais de teu juízo do que do meu”. Não foi o único a valorizá-la dessa maneira. Sartre, Marcuse e Iván Illich se apaixonaram, em diferentes épocas, por essa mulher impenitentemente discreta. Mas ela preferia Gorz. Ele também a preferiu: duas vezes mudou literalmente de vida por influência de Dorine. A primeira foi aos quarenta anos, quando ela descobriu que havia contraído uma doença incurável por culpa de uma substância que lhe haviam injetado para lhe fazer radiografias: a medicina lavou as mãos sobre o caso e ela começou uma corrente de correspondência com outros afetados do mesmo mal, que não só lhe deu décadas de sobrevivência mas que levou Gorz a mudar o eixo de seu discurso; nas relações de Dorine viu os rudimentos essenciais daquilo que chamaria ecologia política (esse lugar onde se tocam o pensamento de Sartre com o de Marcuse, de Iván Illich e de Foucault). A segunda vez foi aos sessenta anos, quando decidiu se aposentar antes do tempo para se dedicar por completo a Dorine: para levar a mesma vida que ela primeiro e, depois, fazer para ela as coisas que ela já não podia fazer (“Lavro seu jardim. Você me assinala da janela do quarto de cima em que direção seguir, onde necessita mais trabalho”).
O suicídio a dois de Gorz e Dorine tem dois antecedentes sobre os quais correm rios de tinta: quando Stefan Zweig bebeu e deu de beber a sua jovem segunda esposa um frasco de barbitúricos diluído em limonada, num hotel de Petrópolis, Brasil, onde havia chegado fugindo da Segunda Guerra; e quando Arthur Koestler fez o mesmo com a sua esposa de sempre (e a seu cachorro de sempre, também), em sua casa de Londres, fugindo do Mal de Parkinson que o estava devorando. Em ambos os casos, houve nota de suicídio, em ambos os casos o papel da mulher foi tristemente passivo, em ambos os casos há uma atmosfera opressiva e amarga que a última cena de Gorz e Dorine consegue evitar quase por completo.
Naquela carta derradeira, Gorz fazia uma tremenda confissão a sua esposa: “Durante anos considerei uma fraqueza o apego que você me manifestava. Como diz Kafka, em seus diários, meu amor por você não se amava. Eu não sabia me amar por lhe amar. Você fez o mesmo para me ajudar a ser eu mesmo e assim lhe paguei”. Gorz havia visto uma vez Dorine dizer, com toda naturalidade, a Beauvoir: “Amar a um escritor implica amar o que escreve”. Dorine lhe havia dito o mesmo na noite em que conseguiu conquistá-la, na Suiça, em 1947: “Seremos o que faremos juntos”. Mas, recém tomou plena consciência do que diziam aquelas palavras quando terminou de escrever aquela carta, subiu pela última vez aquelas escadas e se encostou para sempre naquela cama, junto à mulher com quem havia partilhado, dia após dia, sessenta anos seguidos, desde aquela noite na Suiça. “Lá fora está escuro. Estou tão atento a sua presença como quando começamos. Vejo sua respiração, minha mão lhe acaricia. No caso de ter uma segunda vida, oxalá a passemos juntos”.



Tradução: Boca do Mangue



Fonte: 
texto extraído do blog Boca do Mangue:


Nota: O livro “Carta a D. História de um amor” foi publicado no Brasil, pelas editoras Anna Blume e Cosac Naify, em 2008. Este livro você encontra na Estante Virtual.


(Artigo de Juan Forn, no jornal argentino Pagina/12em 15/07/2011.

3 comentários:

  1. Anônimo12:41

    Simplesmente maravilhoso: o assunto, o texto, a emoção resultante... Belíssimo.

    Bjo
    Eliana Pougy

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  2. Anônimo21:16

    Ainda em prantos depois de ler a carta. Nossa que intensidade de amor...
    Que tratado a carta enquanto relato do relacionamento perpassa varias décadas mostrando novidades que ainda hoje são tema recorrente como a bioetica as questoes de consumo, medicina etc.
    Adorei.
    Isabel.

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  3. Estante virtual? Cuidado!
    O portal já não é mais tudo de bom. Atualmente está massacrando os sebos e livreiros.
    Confiram o abaixo-assinado com sete mil signatários contra o aumento de 100% no valor das tarifas e outros abusos. As taxas já somam 18%! Participem!
    http://www.change.org/pt-BR/peti%C3%A7%C3%B5es/cultura-para-todos-por-uma-estante-virtual-mais-justa

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