8/01/2011

A força do anonimato| c i d a d e




A cidade anônima
Marina Garcés

Texto de Marina Garcés, professora de Filosofia da Universidade de Zaragoza e da UOC,  e integrante de Espai en Blanc, que introduziu o debate sobre “A cidade e o anonimato -  a crise do espaço público”, em Metrópolis – revista de información y pensamiento urbano, nº 79, verano 2010. Na seqüência, publicaremos alguns dos outros textos da série. Tradução do espanhol: Boca do Mangue.

Na cidade cinzenta e disciplinada do capitalismo industrial, o anonimato era sinônimo de homogeneidade, padronização das formas de vida, silenciamento da dissidência, repressão da diferença… O anonimato apontava para uma indeterminação e para uma invisibilidade que representava uma promessa de liberdade em relação às comunidades fechadas tradicionais, mas também uma nova forma de controle social. Hoje em dia, as metrópoles contemporâneas já não são governadas através da padronização de todas as formas de vida, mas, ao contrário, através de uma gestão pormenorizada das diferenças (culturais, raciais, econômicas, pessoais). A vida tem sido privatizada até o extremo em que cada pessoa vê seu próprio “eu” convertido numa marca que deve administrar e, portanto, visibilizar a partir daquilo que a distingue e singulariza. O anonimato, então, se converte em tudo aquilo que não cabe e que escapa a essa estratégia de miniaturização seletiva do controle. Assim, o anonimato adquire novos sentidos. Falar da cidade anônima, em nosso contexto metropolitano atual, implica um deslocamento decisivo: da cidade cinzenta para uma realidade social opaca, do padrão ao difuso, do silêncio ao rumor, da vida intercambiável à vida irredutível. Em definitivo, é o deslocamento do anonimato como forma de submissão ao anonimato como forma de resistência.
Nessas páginas, queremos recorrer aos distintos sentidos desse anonimato que resiste. Em continuidade ao trabalho sobre A força do anonimato que Espai em Blanc desenvolveu em 2008-2009, nos propomos dar um passo mais além e oferecer um olhar caleidoscópico sobre as distintas práticas que conformam esse novo anonimato: deserção, desafeto e abstenção, mas também rebelião, picaresco e apoio mútuo. O anonimato encontra hoje sua força, muitas vezes ambivalente, no silêncio do cidadão descrente, na mobilidade dos migrantes para além das diferentes formas de captura de sua identidade, na cooperação uma a uma das redes peer-to-peer e da Web 2.0, nas redes afetivas de um novo picaresco urbano ou no fogo sem palavras de uma periferia em chamas, para nomear alguns exemplos.
Não queremos cair na armadilha de formular a pergunta sociológica ou policial sobre os novos anônimos (quem são?) para tratar de identificá-los, mas queremos nos situar precisamente onde essa pergunta deixa de funcionar. O que ocorre, então? Que possibilidades se abrem? De que maneira o anonimato pode ser a expressão da heterogeneidade mais radical e de um desafio aos atuais dispositivos de poder?
Partimos da hipótese de que as transformações metropolitanas que acabamos de descrever não são a expressão de metamorfoses superficiais das formas de vida, mas implicam numa mudança radical do espaço político moderno. Suas formas de visibilidade e de representação já não funcionam, ainda que sigam se impondo como formas ocas de reprodução do que há. Encontramo-nos numa realidade pós-política na qual a pergunta pelo comum já não passa pelas instituições que conhecemos até hoje. O espaço político, saturado de palavras e de imagens capturadas (pelo mercado, pela publicidade, pela comunicação) está recorrido em seus porões e em suas margens por uma vitalidade que se lhe escapa. A cidade anônima é o nome que damos a esse outro mapa, composto de afetos e desafetos que não se correspondem com os indicadores sociais mais reconhecidos: participação política, coesão social e crescimento econômico. Por isso, podemos dizer que a cidade anônima é a cidade que cresce quando as coordenadas do espaço político moderno se desarticulam. Mais especificamente, a cidade anônima emerge na implosão do consenso, no esgotamento do sujeito político e, como dizíamos, na crise do espaço público. Vejamos mais detalhadamente.
Em primeiro lugar, a cidade anônima é o rumor de fundo que implode o consenso que fundamentou uma determinada configuração política e social, nascida nas cidades ocidentais após a Segunda Guerra Mundial. O mundo globalizado não é um mundo unificado. É um mundo que expulsa, condena, maltrata grande parte da população, dentro e fora do primeiro mundo. O consenso tácito sobre o progresso, as conquistas sociais e o desenvolvimento, compartilhado por opções políticas diversas, se quebrou. Quem espera de quê?  Não sabemos de que estão feitas hoje as esperanças nem os mal-estares. A cidade anônima é o cenário de uma nova questão social.
Em segundo lugar, o anonimato emerge como potência política após o esgotamento do sujeito moderno, em suas diferentes figuras: o proletariado já não existe, nem como consciência nem como horizonte de luta, e a cidadania se transformou numa soma agônica de indivíduos privatizados, de “eus-marca” competindo no cenário do mercado global. Poder se esfumar, desertar, apagar-se, desaparecer e, ao mesmo tempo, poder cooperar, ressoar e se aliar sem se tornar prisioneiro de uma nova captura identitária ou corporativa é a dupla potencia desse anonimato resistente que transborda as capacidades conhecidas do sujeito político moderno.
Finalmente, a cidade anônima é o mapa humano (material, urbano, social e político) que se impõe na crise do espaço público, como miragem da palavra e da visibilidade auto-transparentes. Hoje, poderíamos dizer, parafraseando a conhecida sentença de Spinoza: não sabemos o que pode uma cidade. Dentro de uma mesma cidade, vivemos vidas e falamos linguagens intraduzíveis, padronizadas unicamente pelos ritmos do consumo. Mas, frente a isso, nossa pergunta não é: como reduzir essa disparidade a códigos visíveis e interpretáveis?, e, sim, como torná-la mais opaca, mais resistente e mais criativa? É evidente que essa fragmentação favorece em muitas ocasiões a guetização, a auto-referência, a polarização, a desigualdade, inclusive aos enfrentamentos. Mas, a cidade anônima é precisamente o anúncio de novas respostas que já não aceitam o ou dentro ou fora, o comigo ou contra mim como código de comportamento. Dentro, porém, à margem, a cidade anônima não aspira simplesmente ao acesso, à inclusão e à representação. Pode usar ou reclamar taticamente seus direitos, mas, sobretudo, move-a o desejo de criar espaços de vida habitável. Nas páginas que seguem nos propomos explorar os sentidos e as possibilidades de alguns desses espaços, com todas as sombras e ambigüidades que possam implicar.
Publicado em 06/05/2011 por Boca do Mangue

2 comentários:

  1. simplesmente fenomenal o seu texto (tema, abordagem, estilo de linguagem, crítica equilibrada e ao mesmo tempo rigorosa). Parabéns

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    1. Que bom que gostou, Valeu! Apareça sempre que quiser. O melhor abraço.

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