A Escrita Rizomática
Por Daniel Lins
O rizoma faz o múltiplo, mais do que o anuncia. O
fracasso de uma biologia que não fosse molecular, segundo Félix Guattari, em
seu livro Revolução molecular,
poderia encontrar na botânica os princípios de um rizomorfismo1. Em outras palavras, simultaneamente conexões, heterogeneidades,
multiplicidades e a-significâncias, o rizoma em sua orfandade radical desenha
uma literatura e uma escrita cuja alma, sempre carnal, nervura e gozo sem
entraves da língua, na língua, está para além das regenerações, das reproduções
das hidras e medusas. Rizoma é só produção, dança das palavras, viagem da
língua na língua.
Em oposição ao modelo centralizado, coagulado,
desidratado e organizado, o rizoma se define como um agenciamento de alianças,
sempre pelo meio, e em perpétuo devir. Fazer rizoma é enveredar como um cavalo louco
para uma escrita cujo devir é o devir-pensamento-musical da própria escrita. A
escrita rizomática é órfã, inclusive, do pecado... Qual foi o castigo maior, a
infâmia suprema do Divino contra o homem pecador? Ao pecar, ele nela, ela nele,
ambos desaprenderam a cantar. Sem a música, sem a fascinação nela inserida, como
uma sina, a escrita torna-se seca, fria, túmulo do pensamento. A escrita não
perde apenas o sexo, as sexualidades, os arrepios do gozo, mas seu destino
maior: o acontecimento. Ser digno daquilo que nos acontece, afora todo e
qualquer axioma moral.
O corpo como pensamento melódico, o corpo como
saúde, isto é, como literatura sem o aprisionamento de uma língua que a asfixia
na nulidade de uma escritura que se
substitui, como um câncer, ao fogo da escrita.
A escrita sempre por vir. Ora, saúde, enquanto literatura, consiste a
inventar um povo que falta. Cabe, pois, a função fabuladora da escrita
engendrar esse povo que falta, sob o signo de palavras parideiras. Palavras parideiras, disse eu?! Como as
“Pedras Parideiras” de Frecha da Mizarela, famosas em Portugal, a escrita
rizomática são pedras que parem pedras.
Não se escreve, todavia, com as lembranças; sequer
com as lembranças de um povo por vir, salvo quando nossas recordações são
àquelas de um povo rizomático, múltiplo, composto por imigrantes de todos os
países, e não por um povo convocado para dominar o mundo. Trata-se de um povo menor, eternamente menor, tomado em
um devir-revolucionário.
Compreende-se, assim, o amor de Deleuze pela
literatura americana e por seus escritores que podem escrever com “suas”
lembranças, a partir de um eu sempre eclodido em mil devires encarnados pela
matilha: americanos de todos os planetas, inclusive, àqueles ainda não
“descobertos”. Escritores das estradas e da escrita líquida, da fissura, da
fenda que, pelo que tudo indica, produzem uma escrita que canta... 2
E o devir é por definição o inumano.
Pós-humano! Nestas condições, compreende-se porque a estética deleuziana pode
ser denominada como estética dos fluxos ou da linha, estética órfã, rizomática.
A idéia de superioridade da literatura anglo-americana sobre todas as outras
literaturas, está ancorada em seu saber prioritário, em sua arte de lançar tais
linhas. Superioridade, pois ela se aproxima do mais alto objeto da literatura:
o rizoma, as dobras, a invenção de mundos possíveis, não históricos, não
arborescentes. Mas, o que são essas linhas de fuga que nutrem e se nutrem do
rizoma, e que relação mantém com a escrita? Vou tentar avaliar essa
pertinência. Deleuze encontra na literatura anglo-saxônica um vitalismo ao qual
não cessa de se referir e que vai guiar nossa compreensão da literatura do que
é pensar, do que pensar significa.
Qual é a trama principal de Deleuze? Libertar a
vida é a tarefa principal do pensamento, isso por que a vida e o pensamento
estão encarcerados. Estamos encarcerados, isso é um fato. O ponto de partida da
filosofia deleuziana reside pois na oposição maior, que nutre seu pensamento: o
casal libertação/prisão, liberdade/servidão. Memória das marcas em detrimento
memória das palavras – invenção rizomática de uma memória por vir. Ao invés da
nostalgia ferina do passado, a saudade do futuro.
Não nos perguntaremos qual é essa prisão na
qual estamos desde o início encarcerados, visto que ela se encontra em todos os
lugares. Qual quer que seja nosso estatuto, homem livre vivendo nas democracias
modernas, melhor dizendo, nas oligarquias sociais, ou escravos das novas
ditaduras econômicas, sobremaneira, ou totalitarismos religiosos, dominação
conjugal, amorosa, estamos igualmente aprisionados.
Compreende-se, pois, que a prisão não é uma
instituição precisa que releva do direito penal e da administração da pena como
privação de liberdade. Ela é a metáfora real susceptível de nos dar o axioma
maior do social instituído, ou descrever adequadamente a vida dos homens em seu
percurso ordinário e médio, cotidiano, inclusive nos países ricos e
desenvolvidos. Pois o social é o tipo de poder repressivo, opressivo, sob o
qual a liberdade pode tão só se asfixiar.
Mas, de que nos libertamos? Da prisão, prisão
da linguagem, inclusive daquela que enclausura o pensamento nas significações
estabelecidas em detrimento dos sentidos. A língua é vista unicamente como uma
cadeia de poderes opressivos. Ela não é um pensamento em ato, o poder de falar,
a língua aprisiona o pensamento. A língua contém, com efeito, signos admitidos
que remetem às significações relativamente fixas e registradas pelas convenções
e regras tão constrangedoras para a combinação desses signos – estruturas e
invariantes. A língua não é, pois, um “tesouro”, mas o inimigo do escritor,
como forma que o encarcera.
Daí o trabalho inventivo do escritor (Joyce,
Guimarães Rosa, Blanchot, Céline, Guyotat, Clarice Lispector, Borges, Lawrence,
Kafka, Khatibi etc) que consisti a se libertar da língua, levando-a ao
movimento, aos tubos ou ondas selvagens, tornando-a itinerante, retirante,
reduzindo-a, desviando-lhe, deformando-a, desterritoralizando-a em sua própria
territorialização. Uma língua bilíngüe, segundo um bilingüismo que supera o
próprio marasmo e retorno do mesmo da língua: dois é uma multidão. Dois são
cães em matilha, em estado amoroso, conquistando cadelas em pleno cio. O
bilingüismo é sempre múltiplo. Não se fala uma língua separada de suas inúmeras
línguas tatuadas na própria língua.
O escritor rizomático está, pois, do lado do
informal, do inacabado, da deformação que abre e liberta, instiga os conteúdos
e quebra aquilo que esmaga a vida, faz passar as linhas de fuga no horizonte,
faz a apologia do barato abstêmio e do porre com um copo de água. É isso: ficar
chapado com um copo de água! Não era esse um sonho de Henry Miller?
Neste contexto, emerge como um furacão a
pergunta: “O que é escrever”? A essa terrível questão, sempre retomada, mas
nunca fechada, que desde Blanchot concentrou o essencial da reflexão
contemporânea sobre a literatura, Deleuze não hesita um segundo. Não há
mistério, seu vitalismo de origem nietzschiana lhe fornece a simplicidade de
sua resposta: Por que escrever senão para “Libertar a vida em todos os lugares
em que ela é prisioneira”? Podemos, desde já, a partir dessa intuição
organizadora de toda sua obra, afirmar que a tarefa maior pensamento é libertar
a vida, inventar novas possibilidades de vida.
Com essa expressão comum a Nietzsche, a
Foucault e a Deleuze, e que caracteriza seu vitalismo, sob o signo da estética,
ou seja respectivamente: uma teoria da vontade de potência, uma teoria das
forças e de sua dobra, ou ainda, uma teoria do desejo como agenciamento ou
máquina desejante, criação de modos de existência ou de novas possibilidades de
vida, estilo de vida, um estilo de escrita – a escrita rizomática. Percebe-se
assim porque a literatura está presente em toda a filosofia de Deleuze: é que
ambas são indiscerníveis quanto a sua finalidade primordial. Mas, esta comunidade
de objeto não deixa de dar lugar a uma especificidade própria a cada uma, que
tem a ver com a substância e as formas que essas duas atividades põem em
jogo, distinguindo-as sem ambigüidades.
Escrita rizomática como variação contínua
Cabe deixar viajar a língua e as palavras, por
a língua em variação contínua, pois é
assim que se pode esvaziar os conteúdos, desfazer as formas e deixar passar
algo a-significante, informal, a-subjetivo. A variação contínua é como o rizoma, não tem princípio nem fim, mas
meio; não é arborescente, tão tem raiz, é órfã. É encontro. É uma espécie de
bate papo entre internautas: só se entra pelo meio. Neste sentido, a variação contínua, a escrita como puro
devir, desterritorializa as dualidades, as oposições pertinentes para por meio
da vibração das palavras e do estremecimento das regras provocar, no sentido também de vomitar, uma cheia, uma inundação,
uma libertinagem, profusões de signos úmidos, secos, irrigados e, assim, abrir
alas para uma língua desviante que fia e engendra um sentido novo, inédito: uma
escrita por vir.
Tal é o objeto do estilo e procedimentos
próprios a cada escritor. Cabe, pois, de certo modo, fazer uma língua na
língua. Tudo aquilo que subverte e a torna estrangeira é muito bom para a
língua. “Falo todas as línguas, mas em iídiche” (Kafka). Donde o tema célebre
que Deleuze pediu emprestado a Proust, e que abre seu livro Crítica e Clínica:
“Os belos livros são escritos em uma espécie de
língua estrangeira”. Efetua-se, pois, o encadeamento das seguintes idéias:
Somos prisioneiros. Como nos libertar?
Pela criação de linhas de fuga. Como criar linhas de fuga? Mediante a variação contínua que é a única
inventora e livre, pois escapa aos poderes e invariantes que nos encarceram. A
liberdade é uma linha de fuga, é fuga ativa, engendradora de vidas e
gradientes. Surge, uma vez mais, a pergunta que não quer calar: mas, o que
significa fugir? A fuga significa no mínimo uma abertura, uma brecha que fenda,
fissura àquilo que aprisiona. Um pouco de ar fresco, uma espécie de antiutopia:
a imanência.
Experimento I - Éden, Éden, Éden
O modelo evocado é aquele do cano que se fura
para deixar jorrar os fluxos, ao mesmo tempo em que se espraiam, derramam,
aspergem. Ou ainda, o da máquina
masturbatória de Pierre Guyotat, em seu livro Éden, Éden, Éden, cujo prefácio escrito por Roland Barthes é hoje
um texto cult! 3
Nada mais chato, mais entediado que uma sala de
aula com uma professora/professor escrevendo no quadro negro, ou passando suas
eternas transparências, para crianças/jovens. Plenos de vitalidade, asas,
sonhos molhados, tatuados em seus corpos como uma escrita vagabunda, viajante,
errante, eles molham o papel ou a tela com seu líquido gelatinoso, quente, rico
em proteínas como as lágrimas, outro nome para dizer esperma. Lágrima =
proteína, leite, sal são os mesmos componentes do esperma, segundo Aristóteles.
Chorar com a verga, grande olho pronto a furar
o quadro ou a tela de uma pedagogia insossa, ou cano entupido, sem invenção, de
uma escrita mimética, castrada, educastradora. Barthes: “(...) é preciso
‘entrar’ na linguagem de Guyotat: não para acreditar em sua linguagem, ser
cúmplice de uma ilusão, participar de uma fantasia, mas escrever essa linguagem
com ele, em seu lugar, assinar o livro com ele” (Barthes).
A escrita de Guyotat é um sopro no qual se tem
antes de tudo a impressão de que as palavras não podem ser ditas: anêmica,
falta à palavra a força da escrita/rizomática, e de súbito não podem também ser
ouvidas, estão no limite do audível. Para superar o inevitável sentimento de
provocação e de arrogância, induzido na visão deste Éden atroz, cabe aceitar que cada signo de pontuação advenha as
inspirações, as expirações, os soluços de um sopro que provoca a eclosão das
formas, das marcam, as nódoas, os contornos que enlameiam uma tela enorme
impossível a pintar, insuportável a olhar.
É como se, acossado pelo estado tísico da
palavra esvaziada pelas representações e significações chupadoras de sangue,
acopladas a um vampirismo abjeto, Guyotat apelasse para a força das pedras e
delas extraísse pedras de sangue coladas como a peste na carne das
palavras-sopros aspirando ao vitalismo de uma escrita contra a escritura: doxa
e redundância vazia, uma espécie de lei para ser obedecida, numa morte anunciada
da invenção da própria escrita.
Para compreender a necessidade daquele que
escreve, cabe infalivelmente reencontrar alguém que fala, que projeta em um
espaço que – O delírio é superbrilhante
– *, em seus entrechoques graças aos
inúmeros signos que as pontuam, é que sua rítmica se confunde com a respiração
daquele que fala. Como descrever, todavia, a escrita de Guyotat? “Aquilo” que
não se poder descrever, Guyotat nos diz de soprá-lo, de ingeri-lo para poder
expulsá-lo. Engolir a escrita-punheteira como se engole a hóstia: sem mastigar.
Eis por que Guyotat bane o ponto de seu texto: o ponto pararia o sopro abrindo
espaço para morte da palavra. A necessidade literária de Éden, Éden, Éden, torna-se uma necessidade teatral.
Cabe observar que adaptado inúmeras vezes para o teatro, a apresentação em
Paris, no Teatro Rond-Point, 2004,
alcançou imenso sucesso e provocou um efeito bombástico no marasmo da
dramaturgia francesa.
Éden, Éden, Éden é uma exploração de territórios
proibidos, perigosos, censurados, é um mergulho vertiginoso nas interrogações,
é também o confronto com a morte mediante a sexualidade, ou com a sexualidade
mediante a morte, é contar o horror, o estupro, a tortura. É fazer escorrer o sangue, o suor, o catarro,
a merda numa dança do esperma maluco; enfim, todas as matérias mais nobres às mais vergonhosas e que são, sem embargo, estatuárias de vida. Trata-se
de transgredir as leis, feitas exatamente
para serem transgredidas. É assim que Guyotat concebe a sexualidade como o
“caroço das coisas”. Para nela chegar,
ele produz uma escrita posta a serviço de uma língua de combate, numa luta
contra a língua maternal, uma língua matricida. Ele quer, em todo caso, matar
aquilo que de maternal existe na língua.
Em Éden,
o sexo aparece em toda sua brutalidade, sem relação com nada: nem raízes nem
começo, nem gênero nem diferença, aqui a escrita rizomática atinge seu
paroxismo! O “caroço das coisas”, que é o próprio sexo, numa escrita sem
limite, sem direção, sem identidade-prisão em que a potencia do caos é ainda a
força das sexualidades, para além do sexo dirigido ou procriador: mulher,
homem, animal ou planta, o sexo é, sobremaneira, uma servidão do gozo, de
outrem. Abaixo, pois, o sexo privado! Abaixo a mitologia privada dos sexos
catalogados pela ordem de gênero! Tristes
gêneros!
Para Guyotat, amante inveterado do onanismo, a obrigação sexual é uma das tarefas mais
monstruosas que o Criador impôs a sua criatura. As cenas de bordeis que habitam
a quase totalidade de Éden, nas
quais padecem, indiferentemente, moças e rapazes, atestam que a ferramenta sexual é o membro menos
“humano” que existe na criação. Que diz o autor a respeito de Éden? Em uma entrevista, logo após a
publicação e censura, em 1971, de seu livro em Paris *,
expõe publicamente seu método:
“Em minha prática há três níveis de escrita”. Primeiro, um
texto ‘selvagem’ que escrevo desde a idade de quatorze anos; a seguir, comecei
a escrever textos ‘doutos’. Um texto inserido à masturbação, escrito durante a
própria experiência sexual cuja redação periódica e sempre ligada a uma prática
sexual imediata – e interdita
enquanto imediata, esta observação é capital –, interrompida a cada vez pelo
orgasmo (...) Há por outro lado um texto de notas, um imenso amontoado de
notas; e finalmente, o texto dito “douto” ou ‘erudito’. Estes três momentos do
texto formam um percurso, ao mesmo tempo histórico e simultâneo da
representação: histórico é a passagem do texto selvagem ou douto, por exemplo;
simultânea e a escrita de textos selvagens, notas e erudito”.
O texto original, o texto matriz, se apresenta sob a forma
do “texto selvagem”: cabe ficar à escuta da ressonância arcaica, selvagem e
mítica inserida como um gozo sem entraves no corpo e sexo da própria escrita,
na carne sexual da escrita. Uma escrita-tesão, tão-somente tesão. Esse texto
selvagem, escrito em paralelo ao ato sexual, leva-me a afirmar que o ato sexual
é uma perda de texto. A vontade de
escrever, ligada diretamente à vontade sexual, a vontade de ejacular, é vontade
de escrever. Não por caso, o título desse texto selvagem é A Outra mão bate punheta (L’Autre main branle).
O texto selvagem evacua um vocabulário bruto,
economicamente prostitucional,
sinteticamente retórico e lingüisticamente da ordem do palavrão ou do “baixo
calão”. As palavras em Guyotat se
excitam, excitam, ejaculam na cara lisa do leitor inundando-o ao mesmo tempo de
urina, “chuva de prata” mesclada ao líquido menstrual e ao odor forte de
clitóris e vagina em movimento, abalos, agitação impulso, oscilação, dança e
sacudidas. Ora, uma só palavra em francês, usada como gíria, branle, do verbo blanler, carrega em si
todos os sentidos aqui repertoriados e explica melhor o título citado: L’Autre
main branle.
Experimento
II - Como fazer para si uma máquina masturbatória
Pierre Guyotat
inventa uma escrita-punheteira,
máquina para produzir gozo orgástico, colada à escrita rizomática do gozo
imediato, presente. Como fazer para si uma máquina masturbatória engendradora
de uma escrita do gozo?
Receita ou Manual de auto-ajuda: Enquanto a
professora escreve no quadro, ele amarra com um cordão a entre-glande de seu
pênis rígido, de garoto saindo da puberdade, cavalo selvagem extraído
diretamente de Água viva, de Clarice
Lispector. Como um bom aluno, com a
mão direita copia a lição, e com a esquerda se masturba. Puxa delicadamente o
barbante, movimentando o vergão numa cadência progressiva, o que provoca na
sala tremores de terra... Emascula o
branco celeste de sua bermuda dilacerada pela força de um gozo, pura
escrita-punheteira, e pelo sexo enfeitiçado, contaminado pela alegria de um
orgasmo, o mais solitário dos orgasmos, orgasmo roubado, virtual/real que tem
que a força de transformar o tédio heideggeriano
da escola, em festa e olhos revitalizados do bordel!
Chamo esse acontecimento fuga ativa, ou rizomática, distinguido-a da fuga através do sonho e
do imaginário, ou da arte que faz da obra um fim em si, embora ela seja
tão-somente um meio de resistir, inclusive, quando não resiste a nada:
“As grandes aventuras geográficas da história
são linhas de fuga, ou seja, longas caminhadas, a pé, a cavalo ou de barco: a
dos hebreus no deserto, a de Genserico, atravessando o Mediterrâneo, a dos
nômades através da estepe, a longa caminhada dos chineses – é sempre sobre uma
linha de fuga que se cria, não é, é claro, porque se imagina ou se sonha, mas,
ao contrário, porque se traça algo real, e compõem-se um plano de consistência.
Fugir, mas fugindo, procurar uma arma.”4
O rizoma é um agenciamento, o livro, agenciamento com o fora, contra o livro imagem do mundo. Como o
fora não tem imagem nem significação nem subjetividade, não se trata mais de
imitar, de copiar, mas agenciar. Não livro imagem do mundo, da sociedade, da
época, não livro mensagem, não livro número com uma unidade de sentido
camuflado e secreto. A obra literária é um agenciamento de fluxo heterogêneo,
ou de signos ou linhas que valem por si, por sua potência de revolta contra as
significações dominantes e libertação de sujeitos dominados.
Em síntese, cabe entrançar um plano de uma
escrita-composição, escrita bailarina, que inclua os domínios heterogêneos:
literatura, poesia, imagem, pintura, musica, filosofia, ciência. É uma escrita
que faz rizoma por meio de uma linha nômade-barroca, sob os traços de Deleuze e
Guattari, segundo uma autonomia cigana capaz de esvaziar os dois autores para preenchê-los com nossos vazios plenos, nossos alfabetos criadores de uma
língua na própria língua: um alfabeto e não uma gramática. Trata-se, pois, de
uma composição literária escrita numa língua
que gagueja. Ora, como se sabe, há gagos que cantam muito bem. Assim, a
escrita rizomática abstrata, vazia, traça linhas de fuga e se atualiza por meio
das leis físicas da natureza e se realiza pela sua velocidade nômade. É parado
que os nômades andam mais depressa.
Eis as dobras da escrita rizomática, mergulhada numa
topologia pictorial à dimensão fractal, mais que duas e menos que três
dimensões, próxima do Universo amarrotado,
de J. P. Luminet, da teoria das catástrofes de R. Thom e da esponja de
Sierpinsky. Uma escrita que se faz com o pleno/vazio é permeável ao mundo.
Lençóis do Maranhão, com suas dobras infinitas e barroco-carne, seus líquidos e
sólidos em núpcias, impostos ao olhar dos mortais que os contemplam. Entre a dança dos lençóis e as dobras
eróticas de santa Tereza D’Avila, a escrita rizomática é um convite, um
banquete, pura superfície selvagem: a
imanência, uma vida, a vitalidade
radical de um campo que é dobras de seda em movimento, que nomadiza o olhar e
sacode os corpos esvaecidos.
O método da dobra consiste em experimentar a vida, os
sentidos ou sensualidades, em todos os nervos vivos de um pensamento e
considera os personagens de um romance como conceitos; assim, o indivíduo é
interpretado, reinventado, sob as dobras do mundo que o envolve ou é por ele
envolvido.
A literatura rizomática não falará, pois em seu nome ou sob
a pretensão de funções imaginárias e mesmo institucionais. Se a escrita
desenvolve um nome é, sobremodo, para perder a forma do “eu” e integrar a cumplicidade
de um “nós” no qual o leitor poderá encontrar um lugar comum que é, ainda, um
não lugar. Não copiar, mas interpretar; não comentar, mas inventar. Em
Deleuze, “nós” designa uma multiplicidade e, desde sua enunciação impessoal,
nos faz encontrar o diferente, antes de tudo, evasivo, manco, desestabilizado
pelo mesmo gesto nos catálogos razoáveis.
A obra, não menos que o autor se liberta da unidade
subjetiva, abre folhas soltas difíceis a enclausurar nos encadeamentos por
demais artificiais do dogma. A obra implica antes a forma de uma nota,
entendida como notação marginal, esboço tomado no calor do informal, no seio de
uma variedade, de uma mistura um pouco especial. A escrita de Deleuze atesta a
dança das palavras, sob o signo de um pensamento não arborescente, rizomático,
viagem ao país do corpo, corpo que é caosmos aberto aos afectos e
encontros-surpresas, desembaraçado da cognição reguladora de um saber dado de
antemão. A escrita rizomática é como o devir inumana: o inumano do humano com
sua constelação de devires: animais, vegetais etc.
Assim, os parágrafos nos livros de Deleuze são verdadeiras
folhas andarilhas, pé na estrada,
grampeadas entre as quais se entrelaçam signos vindos de todos os lugares, como
imigrantes do alfabeto e da escrita, tão difíceis a ler sem se deixar agarrar
ou aferrar por eles. Donde, sem dúvida, a extraordinária referência aos
lobisomens ou bichos-papão, aos feiticeiros, aos animais que explorados como
linhas de fuga, são intercessores, extras-seres, não sem humor nem malícia. Há
um prazer do texto que passa pela evocação/participação de devir-animal ou
devires-imperceptíveis próprios ao rizoma e acontecimento.
Texto publicado na revista Polichinello nº 10 ׀ Por Uma Escrita Rizomática ● ISSN: 2178-1230 - 10
1 GUATTARI,
Félix. Revolução molecular. São
Paulo, 1987.
2 Cf. DELEUZE,
Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34.
3 GUYOTAT,
Pierre. Éden, Éden, Éden. Paris: Gallimard, 1970.
* Cf. Guyotat. Vivre :
Paris Gallimard, 2003, p. 11. Explications, Paris : Léo Scheer, 2000, Littérature
interdite, Paris : Gallimard, 1972, p. 77-73
* Esta censura provocou forte reação de
diversos intelectuais contra a falta de liberdade de expressão na França, entre
outros : Barthes, Foucault, Simone de Beauvoir, Sartre, Leiris, Duras,
Derrida, Sollers e muitos outros. Jacques Lacan, plagiador conhecido de Pierre Guyotat, se recusou a assinar o
manifesto... Éden, Éden, Éden foi proibido aos menores de 18 anos, de 1971 a 1981. Com a vitória
de François Mitterand, a censura foi erradicada.
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