Roger
Caillois
|
Edmond Jabès |
F R A G M E N T O D E
"O LIVRO DAS MARGENS" | Edmond Jabès
A eternidade das pedras
«Aprendi que, o quer que eu empreenda,
jamais farei senão perseverar.»
Roger Caillois
(Aproximações do imaginário)
A pedra é, provavelmente, a menos
eloquente, mas certamente a mais identificável das formas da eternidade.
Sobre ela, elevam-se nossos edifícios,
estrondam nossas tempestades.
Quando a pedra se faz transparente ou,
antes, quando a transparência se faz pedra, todos os sonhos da terra se dão a
ler.
A eternidade joga com a eternidade, na
limpidez de seus grandes espelhos imóveis.
... rastejantes clausuras.
E se a tempestade estivesse também no
cristal?
«PEDRAS»
de
Roger
Caillois
«Falo das pedras mais idosas que a vida e
que permanecem depois dela sobre os planetas resfriados, quando ela tivera a
fortuna de neles eclodir. Falo das pedras que nem mesmo têm que esperar a morte
e que não têm nada a fazer senão deixar deslizar sobre sua superfície a areia,
a enxurrada ou a ressaca, a tempestade, o tempo.
«O homem lhes inveja a duração, a dureza,
a intransigência e o fulgor, por serem lisas e impenetráveis, e inteiras mesmo
partidas. Elas são o fogo e a água na mesma transparência imortal, visitada, por
vezes, pela íris e, por vezes, por um vapor. Elas lhe trazem, elas que cabem em
sua palma, a pureza, o frio e a distância dos astros, várias serenidades.»
I
Um livro que cresce na distância, tal, em
seus desvelamentos, a estrela.
Um livro desabituado.
E precisamos levá-lo em conta e
recebê-lo, como se ele tivesse transposto um imenso espaço para nos atingir;
donde essa palavra, a um só tempo próxima e distante; eu diria mesmo tanto mais
próxima quanto ela parece vir do mais obscuro do tempo; donde essa continuidade
na ruptura, como se tudo se apagasse e renascesse no começo; essa continuidade
que, na pedra, é a revelação de uma cega impulsão ao invisível, de uma vontade
sem igual de durar e de cumprir o ciclo.
Do inerte ao inerte.
Descobrimos, depois de Roger Caillois,
no polido da pedra, o oval e o redondo, o duplo poliedro e o losango que são
como seus caminhos escandeados e os inebriantes retornos, e provamos seu
mistério e sua audácia.
Meio da representação múltipla, do
círculo e de sua metamorfose no círculo,
ou do círculo ou de sua metamorfose depois
do círculo, o centro – que é nó de verdade – está, a cada vez, alhures.
Mas, tudo é verdadeiro na pedra porque
ela existe na morte, porque ela é, a um só tempo, o anônimo rosto do mundo e a
primeira ou a última respiração do animal e do homem captados em sua sucessão
feliz ou infeliz; porque nela, enfim, tudo existe antes da vida e ultra-morte.
Assim, em seu cumprimento, a obra se
quer à imagem do mais humilde cascalho; à sua imagem espalhada que o mar, a
chuva e o vento acariciam e desgastam; pois a usura, tais as rugas, é também
prova de fatal cumprimento.
«... o perfil mais puro, mais pobre
também, mas o único verdadeiramente necessário.»
«Nessa longa aquiescência, nessa
derradeira miséria, se dissimula seguramente uma das formas concebíveis da
perfeição.»
Assim como na pedra fendida, a beleza
está no fundo de uma ferida.
«Eu também, quando escrevo essas páginas,
reunindo minhas palavras com labor e liberdade, cumpro, mas de outro modo, a
mesma tarefa que não era ainda tarefa nem nada de semelhante e que, no entanto,
fora aquela das pedras que tentei descrever.»
II
(Círculo que faz a pedra
caída n’água.
Ah! Tornar-me-ei, um
dia, mestre do universo lançando, do alto da falésia, pedras cada vez mais
pesadas ao mar?
Nesse ponto do dia.
O centro contestado.)
«Círculo encontrado
por sorte na ágata, cortado por um círculo vizinho, ele nos deixa a impressão
de uma tentativa abortada.
«Ao contrário, ele afirma sua glória
quando se proclama vasto e isolado como o sol no vazio do céu, sobre campo
unido de ágata ou de crista incandescente. Então, dá-se a maravilha.»
Na pedra jaz a primeira palavra da
terra, o infinito do signo.
O universo, talvez, tenha nascido
dessa leitura ousada.
Na pedra tudo cessa de se perder,
desde quando ela se imobilizou em seu desabrochar e sua existência não é mais
que uma eterna não-existência.
Explorando, como ele o faz, o universo
dos minerais, Roger Caillois teve, de imediato, consciência de cotejar uma
verdade que, desde sempre, o assombrava? Daí, uma certa calma, uma espécie de
serenidade – quase uma segurança – em sua postura e que provam, sem dúvida,
esses exploradores de impossível que, recusando mesmo o milagre, denunciam, em
nome da ideia que eles servem, a impostura por toda parte onde ela se
manifeste.
A interrogação
apaixonada do mundo mineral que ele descobre, o conduz, desta vez – e pela
primeira vez, provavelmente – a se identificar com cada um de seus fragmentos,
a ponto de aprender e acompanhar a escritura deles; a ponto de estabelecer consigo mesmo –
tendo-se tornado o objeto, a pedra estilhaçada – uma exemplar caderneta de
correspondências que o impelirá, pouco a pouco, a se definir através de uma
mitologia nova, uma metafísica, uma moral, uma estética, nessas regiões de
ultra-tempo, onde a vida e a morte são sinônimas.
Assim afronta ele uma escritura – a
sua? – no vazio onde ela está inscrita, tais esses sóis extintos que selam as
últimas páginas do livro. Livro gravado no signo e em seu silêncio; quer dizer,
no que, por ter sido, afirma sua ausência e no que, para ser, se nomeia.
«Nessa visão um pouco alucinada que
anima o inerte e ultrapassa o percebido, por vezes eu parecia captar em seu
estado natural um dos nascimentos possíveis da poesia.»
III
Revejo-me, nos desertos do Egito, à
busca de sílex – amarelos, às vezes marrons – desenterrando-os, apanhando-os
por seu rosto humano subitamente surgido de seu nada – por um rosto do homem
eterno que o tempo modela por séculos e não por instantes – por seu rosto vivo
contra a vida.
Só, no meio das areias das quais cada
duna testemunha do esgotamento do vento, do abandono do mundo, eu me contentava
com a aparência; ao passo que é no interior da pedra que bate genialmente o
coração obreiro da morte, que se escreve, em pulsões celestes ou infernais, o
universo cerrado da eternidade.
*
FRAGMENTO
DE UMA CARTA
Grato por «Casas de um tabuleiro de
xadrez», que foi, para mim, o objeto, o centro de uma longa reflexão.
O prefácio dessa obra nos revela uma
postura segura de si mesma mas, ao mesmo tempo, inquieta com seus passos.
E é nessa perspectiva que teus livros
devem, agora, ser lidos. A interrogação faz recuarem as divisas de cada um
deles. Para além – nos prolongamentos, portanto, da interrogação – insinua-se o
comentário que é nova interrogação e nova meditação.
Há o objeto de tua curiosidade que é
descascado vigorosamente, implacavelmente – mas também descascado, como
descascamos as nozes, como descascamos uma árvore – e há o que escorrega de
teus dedos, o que só poderá ser captado alhures – ou, talvez, jamais captado –
e que, de repente, nos ilumina.
Há a questão e, ao cabo, o desespero
de uma resposta recusada.
E há o relato em sua dimensão
soberana.
A necessidade, no que é dado, de
interrogar o secreto, é o próprio de teu pensamento: esse secreto que não é o
que é alapado mas, ao contrário, o que fala no recôndito. De sorte que é a
palavra do segredo que é incessantemente questionada.
Tua abordagem das coisas – e dos seres
– se faz, primeiro, instintivamente quase, através do que os dissimula.
Tu partes – para ver, para compreender
– do que não se entrega imediatamente à visão nem à audição. Cata de paciência.
Rastro no rastro indefinidamente realçado.
E é então que o segredo fala e essa
palavra encontra em teus livros seu lugar privilegiado.
Tua postura se torna tateante, mas
como maravilhada ou apavorada por seus horizontes.
A vertigem nos toma face ao vazio onde
toda verdade – aquela desenhada na pedra igualmente – morre por ter sido, por
se perpetuar na morte; de sorte que é seu próprio e original apagamento que nos
parece ser, agora, sua luminosa e coerente manifestação.
Fascinados pelo que não é, precisamos
então nos apropriar do objeto revelando-o a si mesmo e aos outros a fim de
reduzi-lo, como se ele fosse o obstáculo a vencer, a transpor; assim como tu
precisaste ir ao extremo do comportamento de teus semelhantes para unir-te a
eles em seu silêncio. Mestres da redução ao nada, assim como da aquiescência.
Tudo se mantém. Tudo se responde. O
homem às crenças do homem; a guerra à festa; a dança do inseto à imobilidade da
pedra. A regra do jogo é regra do universo.
Tu nos conduzes, de incursões em
incursões, aos confins de nós mesmos. Abrimos os olhos sobre o que, por ter
apelado a todos seus recursos, permanece espelho de um mundo que não cessaremos
de sondar ao nos mirar: mundo da escritura onde se desperta e se deita o mundo,
palavra elegida em que nos medimos por nós mesmos e pelo espaço, como se
precisássemos viver – e morrer – no que só governa para ser governado e
governar por nossa vez.
O vocábulo é distância na
não-distância; quer dizer, imensidão de uma separação que cada letra acentua
anulando-a. O que é dito, o é sempre em função do que jamais será expresso. É
nesses extremos limites que nos reconhecemos.
... mas tu és severo com essa rosa
atormentada das areias. Uma certa verdade que é aquela ensinada pelo deserto,
deixou-a se perder em si mesma, como se fosse necessário puni-la por ter ousado
ser flor.
O Livro das Margens
Tradução:
Amanda Mendes Casal & Eclair Antonio Almeida Filho
Nenhum comentário:
Postar um comentário