12/16/2014

PARA UM RETRATO DE CAUBY CRUZ | Ney Ferraz Paiva






Para Um Retrato de Cauby Cruz
Considerações Sobre Um Retrato

Por Ney Ferraz Paiva


C a u b y   C r u z




Este trabalho retoma a poesia de Cauby Cruz, atravessa-a, faz ecoá-la – mas também lida com o embargo e o silêncio em torno dela. O próprio poeta surpreendido e desconfortável na sua mudez. Ofuscado pelos notáveis concorrentes, tão opostos a seu pequeno fracasso. Engessado em seu único livro, abriu-se um programa póstumo para ele. Em todo caso, procuro uma fala outra que daí se desprenda, e consiga tecer (ou destecer) o idioma de dias ainda tomados por tantas derivas artísticas, os anos 1940 e meados de 1950 em Belém. Um período notável prefigurativo de grandes obras literárias: Chove nos Campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir, 1941, A Linha Imaginária, de Ruy Barata, 1951, O Estranho, de Max Martins, 1952, O Homem e Sua Hora, de Mário Faustino, 1955. Tempo de companheirismos e aproximações, mas também de distanciamentos e rivalidades literárias entre jovens colegas – Ruy Barata, Max Martins, Jurandir Bezerra, Mário Faustino, Benedito Nunes, Alonso Rocha, Cauby Cruz. O liame de uma desconexão. Este o tênue mote deste trabalho, que pretende fazer um perfil biográfico com pitadas de ensaio, no qual se procura questionar as relações tradicionais entre poesia, imagem, fotografia, a partir dos termos críticos presentes no livro Filosofia da Caixa Preta – Ensaios Para uma Futura Filosofia da Fotografia, de Vilém Flusser. Uma espécie de reaparição no espaço de renovadas questões, como se algo se devolvesse, se mostrasse de volta no processo de aproximação e acolhimento entre literatura e fotografia e dos seus imprevisíveis desdobramentos. Um aparte talvez disperso no burburinho – um desvio no desvio, um desnível de fluidez do acontecimento. Mas que acontecimento? Tornar-se alguém que escreve... A paixão de juventude pela poesia... o quanto essa respiração amigável tende a expelir, somados os anos, o estático, estreito, asfixiante – para que se possa ir longe. Para Cauby, o que resultou disso, a única aparência que lhe restou, é a do escritor que passa toda uma vida sem escrever. Então não seria melhor dizer que o que daí se desprende são expectativas e ilusões deslocadas, recambiadas, transferidas? A passagem dos anos 1940-1950 e seus monstros legendários – o pós-guerra, as grandes incertezas existenciais, a crise aguda da modernidade. Há por aí indícios. Rastros. Sortilégios. Todo retorno é sempre um ponto de partida. O presente e o passado nos povoam. Ouçamos as vozes – o que elas não temem, falam, passam de suas cartas terríveis, suas fotografias perigosas... É com elas que pretendo compor um mosaico, sempre díspar, do ambiente simples e rudimentar, árido e ermo; dos tons de uma cultura e de uma época; e do aspecto das sombras que Oswaldo Goeldi extraiu da paisagem, a mesma onde Cauby Cruz viveu e pretendeu desenvolver seu projeto de escrita, e que inapelavelmente sucumbiu. Entre retomada e inacabamento. A obra sem trajetória e sem cronologia, corroída no tempo e no espaço do discurso, e que se coloca a falar de outro modo, a mostrar-se sem se manter o mesmo: viajante incondicional, boêmio, jogador, que escapou cada vez mais de ser poeta. Um contemporâneo que não contemporiza, não apazigua, não é entrega – é resistência, sobretudo aos modelos disponíveis de interpretação. Rompe com a acumulação de valores instrumentais e almeja outra memória – a do irracional, corporal e primitivo.



* Projeto de Ney Ferraz Paiva contemplado pela 13ª edição da Bolsa de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação Artística do  IAP | Instituto de Artes do Pará 2014 





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OS ELEMENTOS DO VERBO


Quando digo água quero que entendas fogo
a palavra se estende e de ora
um novo entendimento uma nova
forma insuspeitada mas viva além
de viva constantemente transformada.

Dependo não dela porém da aceitação
em ti: o céu é inferno e mais que inferno
é este termo com que luto
o meu pretérito alcança o meu avô
já morto mas  firme em mim, galopando.
E através dele vou, através de seus pastos
e porque digo pasto entenderás que é noite
e o ar me amansa diante de teus passos.

O que fala importa se alcançar tua carne
pois flutuar não serve. E é mister que invadas
e descubras porque foi que hesitei
e hesites comigo, sofras a mesma fome
a mesma água engulas, igual peixe
adores e meus cabelos te cubram.

Então, a primavera que invento poderá ser tua
e teu este mistério este cão
que à noite ladra coisas inteligíveis
e o galo, cujo canto acordará teu homem 

Cauby Cruz  |  Os Elementos do Verbo


















DONATÁRIO


Donatário de terra imersa
procuro meus campos
meu boi que esqueci anos
mergulhado no mesmo gesto invicto
de mastigar, meu cão também
como também meus sapatos.
A terra desapareceu. Aqui ela ficava.
Rio de pedras várias cortava o terreno
mas eu não via as pedras. Amava a posse
de tudo, donatário que fui deste terreno.
Hoje, chão de peixes.


Cauby Cruz  |  Os Elementos do Verbo













 








STOP




Não escondo minha face direita
pressinto porém o golpe
o sangue que correrá.

Desta janela escuto
sua presença. O vento
a mesa o quadro
invocam o pensamento
e o feixe de memórias
que entregarei de volta.

Minuto breve seja
um ai sem dor
mais de espanto que de penas
para que ninguém perceba
prematura. Mais fundo
neste verso antecipado.
Sentado em meu caminho
para a arrancada final
lanço meu braço inútil
tento mudar a ordem
retroceder o acontecimento
aproximando com anunciações:

Coroado entro no reino dos Céus
para amparar meu corpo decaído.

Cauby Cruz  |  Os Elementos do Verbo










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Cauby Cruz  |  Os Elementos do Verbo






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Um comentário:

  1. Sempre chega uma hora em que os livros mais bem fechados são abertos.
    Maurice Blanchot

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