Os relevos de um
pensamento-radical
Nilson Oliveira
O pensamento do deserto, escrita que mutila seus traços: não mais
um caminho, não mais um objetivo, porem errância de um fantasma – ataque
irremediável ao corpo[1].
Abdelkebir Khatibi
O contexto, para o pensamento, não deixar de ser um desafio:
enfrentar o presente, sem receios, com uma determinação improrrogável,
necessariamente em travessia, na tensão das encruzilhadas, mas subvertendo os
roteiros ou as saídas dadas sempre tão inclinadas ao jogo vicioso da manutenção
do mesmo. Nesses dias de recrudescimento e chumbo, nenhuma concessão. A saúde
do pensamento consiste, diante de fisionomia tão atroz, em coragem. Com efeito,
o sentido desta presente e oportuna reedição vem com essa prerrogativa:
“Atravessar o caos: não explicá-lo ou comentá-lo, mas atravessá-lo, por todos
os lados, em uma travessia que ordena planos, passagem, marcas”[2].
“Ora, este confronto, ou luta com o caos, significa precisamente, que o artista
e o filosofo devem também em seu trabalho encarar frente a frente o caos sem se
deixarem levar por ele”[3]. E
nessa coreografia das fraturas as efusões de um pensamento radical, o qual se
dobra numa experiência que subverte o lugar: experiência do livro, da escrita,
do acontecimento sempre por vir, num reiterado combate para escapar à morte.
Nesse caso, escrever/pensar significa resistir: resistir à servidão, resistir
ao intolerável, resistir ao presente, resistir à morte.
Essa é a acepção, nossa, do retorno desta obra tão singular e
tão necessária. É assim que vem, movendo afetos de desassossego, «Estética como
acontecimento. O corpo sem órgãos», de Daniel Lins.
Experiência de uma atualidade que não se rende e, nesse campo de
possibilidades, se afirma, em atrito contra o laboratório do terror,
dimensionado pela pandemia do novo corona vírus, que se alastra com prejuízos
em todas as escalas, sanitária, securitária, ética, política. A derrota é
global. Cabe ressaltar, no contexto brasileiro, o peso da mão fascista de um
governo, cujas medidas, abertamente, obliteram as vias de respiração,
rebaixando a vida a uma condição de limite, verdadeira asfixia entre o
infortúnio e a morte.
Diante de tal contexto, mas pensando a partir de outra
perspectiva, por um horizonte de evasão e contra fluxo, cabe oportunamente perguntar
– contra esse estado de coisas–: o que é (e o que pode) uma radicalidade? É nessa esfera que, efetivamente, tal
experiência sobrevém, como prática de pensamento-radical. É pelos laços dessa questão (o que pode uma radicalidade?) que
ressoam, num nexo entre combate e devir, os enunciados e as dobras deste
importante volume de Daniel Lins. Aqui, o pensamento ressoa totalmente afetado
pela vida, em intenso jogo de diferenciação, numa correlação ativa com as
coisas do mundo: modos de vida, exterioridades, resistências e seus respiros,
pensando o ilimitado dessa conjunção, com vislumbre nos processos de evasão
através dos quais se conectam as fendas e as erosões que excedem o já pensado e
suas estruturas.
O ponto aqui consiste em escapar ao insuportável e transitar
pelos dédalos de outra composição, na necessária mudança de ar, mas revisitando
os temas e mananciais da arte, da literatura e o do pensamento, numa leitura
transdisciplinar e plural através da qual devora citações e autores, elaborando
um ambiente de ruminação, vigorosa usina de combate, cujos lampejos,
fragmentos, pensamentos e dobras emergem como aquilo que de-outra-maneira-retorna emanando um sopro de possibilidades
(relevos de um pensamento-radical).
Em que consiste tal «Estética como acontecimento»?
Consiste num pensamento a engendrar uma política do desejo e do prazer,
isto é, numa ética da estética a qual concebemos como «Estética como
acontecimento». Portanto, como potência além do sensível, ilimitada, cujos
conceitos gravitam conforme as ondas, entre o tempo e o vento, sempre
conectados com as circunstâncias, em detrimento da essência, imbuída de uma
positividade que compreende o ser como devir, de tal maneira que, como as transmutações
cósmicas da obra de arte, excede o humano em favor da vida.
Trata-se de uma noção sensível, demasiadamente leve como alguns
conceitos da filosofia da diferença, que concebe a estética como experimento,
ou seja, como produção de modos de existir, uma forma que inventa para si o seu
próprio sentido: uma vida, sem contenção ou molde, com o horizonte aberto ao
desconhecido. Mais que isso, que almeja o desconhecido e que almejando aspira,
sem receios, a surpresa que sempre vem, tal como vem o vento que tudo
atravessa, sem cessar.
Nesse sentido, «A estética como acontecimento» “é a intercessora
primordial da vida: a vida como máquina afirmativa de enfrentamento. A vida
como transvalorização que, ao buscar nas malhas indenitárias os devires
imperceptíveis ali camuflados, abre-se à eclosão do inumano no humano. Ao
escapar à dominação biológica e finita, a vida demanda ser inventada”.
Coexistência – vida e Estética como acontecimento – assentada
por uma “Ética da Crueldade que passa por uma escrita da fúria e atesta uma
experiência cruel dos limites, sob a força de uma crueldade radical”. Crueldade
essa indivisível de um Corpo sem Órgãos, “intercessor singular à arquitetura
conceitual da Estética como Acontecimento, cuja função primordial é a de, nesse
encadeamento da multiplicidade, guardião dos sentidos, evitando que os sentidos sejam relegados à significação, à
representação ou ao essencialíssimo, interpondo-os com os conceitos de uma
filosofia aberta, de um pensamento vagante: indefinível”.
E no bojo de questões tão instigantes, na aventura do
pensamento, deslizamos. Nossa aposta enreda-se por uma linha partida em duas,
numa espécie de duplo imediato, consecutivo ou até mesmo simultâneo, entre
literatura, arte, filosofia, levados por ventos transversais cujos fluxos nos
remetem a uma percepção imediata: “toda esta escrita é um assalto contra as
fronteiras”. Isto é, uma experiência que desdobra numa profusão de
possibilidades: do sensível, do desassossego, das superfícies, dos extremos;
sempre movendo os seus laços, dentro/fora da fronteira.
E assim, no trânsito por entre fronteiras, Daniel Lins atravessa
a enseada, numa aposta que concebe ao pensamento uma relação afirmativa, no
sentido de um pensamento ágil, que confronta sem receios a morte, numa
aceitação radical da vida. O puro sim, do qual ecoa uma escrita que no escrever
se reinventa e afirma uma vontade de vontade. São esses os lastros de «Estética
como acontecimento. O corpo sem órgãos». E diga-se, movimento aferido com um
repertório maiúsculo, alimentado por um refinado plano de referências.
Para pensar as nervuras e contorções do corpo, Artaud, Nancy.
Para perspectivar o intempestivo, mas também a ideia de valor, de potência e
força, com a verve de uma leitura intensiva, Nietsche. E como satélite cruzando
as constelações, as superfícies e os subterrâneos do não pensado, Deleuze,
Guattari. Para embaralhar o repertório e
adicionar um pouco de ar fresco na paisagem, renovando o horizonte, Blanchot e
a ideia de uma escrita como arrebentação ou suavidade avassaladora, atravessada
por ecos de um pensamento que tudo trinca e tudo separa. E na outra margem, num
mapa de outras leituras, o espectro de abecedário radicalmente outro, povoado
de frestas, intrusões, vibrações da carne e signos incógnitos: Abdelkebir
Khatibi, Carmelo Bene, Joë Bousquet, Étienne Souriau e alguns outros.
Assim figura esse livro tão vigoroso e importante, assim vem
nesta segunda edição, que é um presente para os leitores e pesquisadores
interessados nos problemas do «corpo», dos «devires», do «impoder» e do «acontecimento».
Nilson Oliveira. Escritor
e ensaísta.
Editor da revista
Polichinello
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