8/19/2021

CARTAS NÃO CURAM CATÁSTROFES

 



Nilson Oliveira [1]

 

 

«Vivemos numa época em que tudo desmorona» [2]

Filippo Brunelleschi.

 

 

 

«O desastre toma conta de tudo». Esse talvez seja, sem nenhuma analogia, o título mais respectivo ao presente dada a situação absurda – um estado de exceção efetivo – para a qual somos tragados. Tempo crepuscular, da força pela força, circularidade entre a violência e o terror cujo alcance não tem limites.

É desse contexto, como um tipo de dissonância ativa, que sobrevém o mais recente trabalho do poeta Ney Ferraz Paiva – «O desastre toma conta de tudo» – sobre o qual permeamos nesta incursão.

Desde logo, nos primeiros momentos do livro, o relevo é uma sensível percepção da cidade, em imagens moduladas pelo que soçobra: corredores desabitados, zona de caos e deterioração, num espectro desolador.


A cidade se contempla pelo avesso

Um caos de detritos

Ruína de navio ao largo

Um tipo de luto

Cidade oculta na sucessão de ruas

Corredores fechadas janelas

Estreitos desfiladeiros

Não existe mais

Nada sobrou

 

O horizonte é tão melancólico quanto o atual, a cidade atravessada pelo insuportável, numa perspectiva do vazio. Mas apesar do quadro desolador, paradoxalmente, ao invés de escapar, ele avança sobre as ruinas, vai ao mais fundo, fazendo dessa jornada a experiência mais essencial: «ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar seus fragmentos». Como não pensar nessa referência tão fundamental – em conexão com o «Desastre» – o «Anjo da História», que «de costas para o futuro, vê no passado, à sua frente, um montão de ruínas».

A história, a partir desse atrito entre o «Anjo» e o «Desastre», constitui-se como sucessão de acontecimentos que apenas se repetem. Com efeito, não suscita no presente a força suficiente para uma renovação. E o futuro descortina-se como se fosse um evento do passado.

O poema deflagra-se neste recorte impossível – espectro de «Angelus Novus» – como possibilidade de montagem (entre tempos) suscitando das entranhas do presente, uma composição própria do desastre: fisionomia desconcertante.

Desse modo, muito mais do que um olhar passivo diante do tempo, o poeta com uma escrita pungente, impõem (contra o presente) uma experiência de pensamento: o pensamento do desastre. Pensamento do qual se vale e atravessa a cidade, entre poros e entranhas, num mergulho sem concessão. E pacientemente vai colecionando, em anotações atentas, destroços, restos, ordenando fragmentos cujo bloco – «O desastre toma conta de tudo» – é o testemunho irrevogável.

Experiência que não pode ser confundida com extorsão (de substratos) do real. Já não se trata disso, a poesia nessa atmosfera vem sem nenhuma concessão ao real, muito mais para uma implosão do real. Ao que equivale na subversão desastrosa da poesia pela qual faz ressoar uma multitude de vozes: rumorosa constelação do desastre. Nesse contexto, a poesia dobra o limiar de toda extremidade, fora do sentido estrito de uma destruição. É o que retorna, sem nostalgia, numa esfera de perpétua repetição: o desastre depois do desastre. O próprio contratempo, ou seja, a poesia como desordem, fora de todo poder.  

Outro traço que é recorrente na composição da obre de NFP é a evocação de uma comunidade, modo de fazer juntos, experiência repleta de referências e vitalidades, num fazer povoado de encontros (com uma multidão de outros poetas), em citações diretas, aludindo nomes, situações, que fazem da obra um espaço plural: afluente do diverso.

Exercício severo do escrever, isto é, recusa de qualquer forma de submissão e imobilidade, movimento pelas fendas da linguagem e nutrido por ela, num curso que, segundo percebemos, irrompe com a ideia de impossibilidade da busca da experiência. Combate no seio da poesia, para a qual escrever equivale a traçar um campo, por vezes nas condições mais improváveis, declinando num sim que distende de todo limite.

E assim, dando evidências de que o poema é também um horizonte de combate, em enfrentamento, sublinha NFP:


«Após a guerra se continua a fazer poesia

Não sem o gosto amargo da descrença

Após a guerra se recomeça outra guerra

O poeta recomeça a escrever a guerra

Cada vez é como se fosse a primeira»[3]

 

A partir desse ponto o que vem, em atrito com a guerra, é uma revigorante capacidade de traçar outros ares, de recomeçar, apesar de tudo, continuar a fazer. A ideia do poema como incessante, portanto, como o que advém sem cessar, que subverte a zona nebulosa, em afirmação, numa poderosa relação com as formas de vida, sempre em transformação, numa repetição fundamental: «Cada vez é como se fosse a primeira». Ou seja, a cada vez como um nascimento, ou melhor, como uma forma de criação.

 

Em outra medida, no ir e vir da obra, a relação com o mar: « voltai ao mar»[4]. Entre correntezas: «Estou num transatlântico». Outros recomeços: «À margem do mundo» [5].  Certamente, mas não por mera navegação ou retorno e sim, como diz Lacoue-Labarthe, com o que «culmina na travessia da morte, a descida aos infernos – um topos obrigatório, doravante, para toda a grande literatura» (2004. p, 15). Portanto, por algo mais substancial, sentido total da poesia, tal como em Ulisses ou Melville, jornada, travessia. Ou mesmo Blanchot: «Passo Além».

 

«devo ir de visita a Ítaca

devo perder lá o coração

desaparecer sem deixar

notícia um corte súbito

talvez por alguns anos

outra passagem de ar

anteprojetos de escrita

todas as outras coisas

das quais devo me livrar

sei que não quero estar

aqui pra que meus lábios

ressequem rachem mudos

nem ser guiado pra algum

destino já traçado mapeado

percorrer falsas promessas

amar o mar como Melville»[6]

 

Ulisses atravessa o horizonte, o mar, mas não naufraga, produz linhas, silêncios, figurações, aberturas (ao por vir). Este é o desígnio de «O desastre toma conta de tudo»: passar forçadamente. Ultrapassar o limite do interrompido e do ininterrupto, tornando-se, neste ciclo sem fim, a linha indivisível entre busca e impossível.

Nestes abismos da poesia escrever equivale à imposição de um sentido:

 

«escrever

pra não se matar

pra voltar à vida»[7]

 

Com efeito, trata-se de uma compreensão que remete o escrever a uma dinâmica de outro tipo: ao que persiste. Isto é, a um plano de reiteração, em favor dos fluxos de criação, baseado no entendimento fundamental segundo o qual, apesar de tudo, «poesia ainda possível em dias de horror».

A poesia de NRF, neste evento tão singular, enreda um profuso campo de experimentações, em agenciamentos que permeiam arte, literatura, pensamento. Num trabalho generoso e exigente, traz um surpreendente caminho para pensar a poesia.

Outubro de 2019.




[1] Escritor e editor da revista polichinello.

[2] Tradução: Davi Pessoa.

[3] Escrever poema é um ato bárbaro.

[4] Encontros marítimos para uma nova literatura.

[5] A todos vocês.

[6] Julho devo viajar.

7] No silêncio e pelo silêncio.












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