Nilson Oliveira [1]
«Vivemos numa época em que tudo desmorona» [2]
Filippo Brunelleschi.
«O desastre toma conta de tudo». Esse talvez
seja, sem nenhuma analogia, o título mais respectivo ao presente dada a situação
absurda – um estado de exceção efetivo – para a qual somos tragados. Tempo
crepuscular, da força pela força, circularidade entre a violência e o terror cujo
alcance não tem limites.
É desse contexto, como um tipo de dissonância
ativa, que sobrevém o mais recente trabalho do poeta Ney Ferraz Paiva – «O
desastre toma conta de tudo» – sobre o qual permeamos nesta incursão.
Desde logo, nos primeiros momentos do livro, o
relevo é uma sensível percepção da cidade, em imagens moduladas pelo que
soçobra: corredores desabitados, zona de caos e deterioração, num espectro
desolador.
A cidade se contempla pelo avesso
Um caos de detritos
Ruína de navio ao largo
Um tipo de luto
Cidade oculta na sucessão de ruas
Corredores fechadas janelas
Estreitos desfiladeiros
Não existe mais
Nada sobrou
O horizonte é tão melancólico quanto o atual, a
cidade atravessada pelo insuportável, numa perspectiva do vazio. Mas apesar do
quadro desolador, paradoxalmente, ao invés de escapar, ele avança sobre as
ruinas, vai ao mais fundo, fazendo dessa jornada a experiência mais essencial: «ele
gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar seus fragmentos». Como não
pensar nessa referência tão fundamental – em conexão com o «Desastre» – o «Anjo
da História», que «de costas para o futuro, vê no passado, à sua frente, um
montão de ruínas».
A história, a partir desse atrito entre o «Anjo»
e o «Desastre», constitui-se como sucessão de acontecimentos que apenas se
repetem. Com efeito, não suscita no presente a força suficiente para uma
renovação. E o futuro descortina-se como se fosse um evento do passado.
O poema deflagra-se neste recorte impossível –
espectro de «Angelus Novus» – como possibilidade de montagem (entre tempos)
suscitando das entranhas do presente, uma composição própria do desastre: fisionomia
desconcertante.
Desse modo, muito mais do que um olhar passivo
diante do tempo, o poeta com uma escrita pungente, impõem (contra o presente)
uma experiência de pensamento: o pensamento do desastre. Pensamento do qual se
vale e atravessa a cidade, entre poros e entranhas, num mergulho sem concessão.
E pacientemente vai colecionando, em anotações atentas, destroços, restos, ordenando
fragmentos cujo bloco – «O desastre toma conta de tudo» – é o testemunho irrevogável.
Experiência que não pode ser confundida com
extorsão (de substratos) do real. Já não se trata disso, a poesia nessa
atmosfera vem sem nenhuma concessão ao real, muito mais para uma implosão do
real. Ao que equivale na subversão desastrosa da poesia pela qual faz ressoar
uma multitude de vozes: rumorosa constelação do desastre. Nesse contexto, a poesia
dobra o limiar de toda extremidade, fora do sentido estrito de uma destruição. É
o que retorna, sem nostalgia, numa esfera de perpétua repetição: o desastre
depois do desastre. O próprio contratempo, ou seja, a poesia como desordem,
fora de todo poder.
Outro traço que é recorrente na composição da
obre de NFP é a evocação de uma comunidade, modo de fazer juntos, experiência repleta
de referências e vitalidades, num fazer povoado de encontros (com uma multidão
de outros poetas), em citações diretas, aludindo nomes, situações, que fazem da
obra um espaço plural: afluente do diverso.
Exercício severo do escrever, isto é, recusa de
qualquer forma de submissão e imobilidade, movimento pelas fendas da linguagem
e nutrido por ela, num curso que, segundo percebemos, irrompe com a ideia de
impossibilidade da busca da experiência. Combate no seio da poesia, para a qual
escrever equivale a traçar um campo, por vezes nas condições mais improváveis, declinando
num sim que distende de todo limite.
E assim, dando evidências de que o poema é
também um horizonte de combate, em enfrentamento, sublinha NFP:
«Após a guerra se continua a fazer poesia
Não sem o gosto amargo da descrença
Após a guerra se recomeça outra guerra
O poeta recomeça a escrever a guerra
Cada vez é como se fosse a primeira»[3]
A partir desse ponto o que vem, em atrito com a
guerra, é uma revigorante capacidade de traçar outros ares, de recomeçar, apesar
de tudo, continuar a fazer. A ideia do poema como incessante, portanto, como o
que advém sem cessar, que subverte a zona nebulosa, em afirmação, numa poderosa
relação com as formas de vida, sempre em transformação, numa repetição
fundamental: «Cada vez é como se fosse a primeira». Ou seja, a cada vez como um
nascimento, ou melhor, como uma forma de criação.
Em outra medida, no ir e vir da obra, a relação
com o mar: « voltai ao mar»[4].
Entre correntezas: «Estou num transatlântico». Outros recomeços: «À margem do
mundo» [5]. Certamente, mas não por mera navegação ou
retorno e sim, como diz Lacoue-Labarthe, com o que «culmina na travessia da
morte, a descida aos infernos – um topos obrigatório, doravante, para toda a
grande literatura» (2004. p, 15). Portanto, por algo mais substancial, sentido total
da poesia, tal como em Ulisses ou Melville, jornada, travessia. Ou mesmo
Blanchot: «Passo Além».
«devo ir de visita a Ítaca
devo perder lá o coração
desaparecer sem deixar
notícia um corte súbito
talvez por alguns anos
outra passagem de ar
anteprojetos de escrita
todas as outras coisas
das quais devo me livrar
sei que não quero estar
aqui pra que meus lábios
ressequem rachem mudos
nem ser guiado pra algum
destino já traçado mapeado
percorrer falsas promessas
amar o mar como Melville»[6]
Ulisses atravessa o horizonte, o mar, mas não
naufraga, produz linhas, silêncios, figurações, aberturas (ao por vir). Este é
o desígnio de «O desastre toma conta de tudo»: passar forçadamente. Ultrapassar
o limite do interrompido e do ininterrupto, tornando-se, neste ciclo sem fim, a
linha indivisível entre busca e impossível.
Nestes abismos da poesia escrever equivale à
imposição de um sentido:
«escrever
pra não se matar
pra voltar à vida»[7]
Com efeito, trata-se de uma compreensão que remete
o escrever a uma dinâmica de outro tipo: ao que persiste. Isto é, a um plano de
reiteração, em favor dos fluxos de criação, baseado no entendimento fundamental
segundo o qual, apesar de tudo, «poesia ainda possível em dias de horror».
A poesia de NRF, neste evento tão singular, enreda
um profuso campo de experimentações, em agenciamentos que permeiam arte,
literatura, pensamento. Num trabalho generoso e exigente, traz um surpreendente
caminho para pensar a poesia.
Outubro de 2019.
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