5/12/2014

Edmond Jabès - Fragmento de "O Livro das Margens"


Roger Caillois
Edmond Jabès


















F R A G M E N T O  D E 
"O LIVRO DAS MARGENS" | Edmond Jabès






A eternidade das pedras



         

      «Aprendi que, o quer que eu empreenda, jamais farei senão perseverar.»                          
Roger Caillois
               (Aproximações do imaginário)

     


      A pedra é, provavelmente, a menos eloquente, mas certamente a mais identificável das formas da eternidade.
      Sobre ela, elevam-se nossos edifícios, estrondam nossas tempestades.


      Quando a pedra se faz transparente ou, antes, quando a transparência se faz pedra, todos os sonhos da terra se dão a ler.


      A eternidade joga com a eternidade, na limpidez de seus grandes espelhos imóveis.


      ... rastejantes clausuras.


      E se a tempestade estivesse também no cristal?

         




«PEDRAS»
de
Roger Caillois




      «Falo das pedras mais idosas que a vida e que permanecem depois dela sobre os planetas resfriados, quando ela tivera a fortuna de neles eclodir. Falo das pedras que nem mesmo têm que esperar a morte e que não têm nada a fazer senão deixar deslizar sobre sua superfície a areia, a enxurrada ou a ressaca, a tempestade, o tempo.
      
   «O homem lhes inveja a duração, a dureza, a intransigência e o fulgor, por serem lisas e impenetráveis, e inteiras mesmo partidas. Elas são o fogo e a água na mesma transparência imortal, visitada, por vezes, pela íris e, por vezes, por um vapor. Elas lhe trazem, elas que cabem em sua palma, a pureza, o frio e a distância dos astros, várias serenidades.»



I


      Um livro que cresce na distância, tal, em seus desvelamentos, a estrela.



          Um livro desabituado.
          E precisamos levá-lo em conta e recebê-lo, como se ele tivesse transposto um imenso espaço para nos atingir; donde essa palavra, a um só tempo próxima e distante; eu diria mesmo tanto mais próxima quanto ela parece vir do mais obscuro do tempo; donde essa continuidade na ruptura, como se tudo se apagasse e renascesse no começo; essa continuidade que, na pedra, é a revelação de uma cega impulsão ao invisível, de uma vontade sem igual de durar e de cumprir o ciclo.
          Do inerte ao inerte.
          Descobrimos, depois de Roger Caillois, no polido da pedra, o oval e o redondo, o duplo poliedro e o losango que são como seus caminhos escandeados e os inebriantes retornos, e provamos seu mistério e sua audácia.
          Meio da representação múltipla, do círculo e de sua metamorfose no círculo, ou do círculo ou de sua metamorfose depois do círculo, o centro – que é nó de verdade – está, a cada vez, alhures.
          Mas, tudo é verdadeiro na pedra porque ela existe na morte, porque ela é, a um só tempo, o anônimo rosto do mundo e a primeira ou a última respiração do animal e do homem captados em sua sucessão feliz ou infeliz; porque nela, enfim, tudo existe antes da vida e ultra-morte.
          Assim, em seu cumprimento, a obra se quer à imagem do mais humilde cascalho; à sua imagem espalhada que o mar, a chuva e o vento acariciam e desgastam; pois a usura, tais as rugas, é também prova de fatal cumprimento.
          «... o perfil mais puro, mais pobre também, mas o único verdadeiramente necessário.»
          «Nessa longa aquiescência, nessa derradeira miséria, se dissimula seguramente uma das formas concebíveis da perfeição.»
          Assim como na pedra fendida, a beleza está no fundo de uma ferida.
         


      «Eu também, quando escrevo essas páginas, reunindo minhas palavras com labor e liberdade, cumpro, mas de outro modo, a mesma tarefa que não era ainda tarefa nem nada de semelhante e que, no entanto, fora aquela das pedras que tentei descrever.»



II



      (Círculo que faz a pedra caída n’água.
      Ah! Tornar-me-ei, um dia, mestre do universo lançando, do alto da falésia, pedras cada vez mais pesadas ao mar?


      Nesse ponto do dia.
      O centro contestado.)
         


          «Círculo encontrado por sorte na ágata, cortado por um círculo vizinho, ele nos deixa a impressão de uma tentativa abortada.
          «Ao contrário, ele afirma sua glória quando se proclama vasto e isolado como o sol no vazio do céu, sobre campo unido de ágata ou de crista incandescente. Então, dá-se a maravilha.»


          Na pedra jaz a primeira palavra da terra, o infinito do signo.
          O universo, talvez, tenha nascido dessa leitura ousada.


          Na pedra tudo cessa de se perder, desde quando ela se imobilizou em seu desabrochar e sua existência não é mais que uma eterna não-existência.


          Explorando, como ele o faz, o universo dos minerais, Roger Caillois teve, de imediato, consciência de cotejar uma verdade que, desde sempre, o assombrava? Daí, uma certa calma, uma espécie de serenidade – quase uma segurança – em sua postura e que provam, sem dúvida, esses exploradores de impossível que, recusando mesmo o milagre, denunciam, em nome da ideia que eles servem, a impostura por toda parte onde ela se manifeste.

           
          A interrogação apaixonada do mundo mineral que ele descobre, o conduz, desta vez – e pela primeira vez, provavelmente – a se identificar com cada um de seus fragmentos, a ponto de aprender e acompanhar a escritura deles;  a ponto de estabelecer consigo mesmo – tendo-se tornado o objeto, a pedra estilhaçada – uma exemplar caderneta de correspondências que o impelirá, pouco a pouco, a se definir através de uma mitologia nova, uma metafísica, uma moral, uma estética, nessas regiões de ultra-tempo, onde a vida e a morte são sinônimas.
          Assim afronta ele uma escritura – a sua? – no vazio onde ela está inscrita, tais esses sóis extintos que selam as últimas páginas do livro. Livro gravado no signo e em seu silêncio; quer dizer, no que, por ter sido, afirma sua ausência e no que, para ser, se nomeia.

         
          «Nessa visão um pouco alucinada que anima o inerte e ultrapassa o percebido, por vezes eu parecia captar em seu estado natural um dos nascimentos possíveis da poesia.»



III



          Revejo-me, nos desertos do Egito, à busca de sílex – amarelos, às vezes marrons – desenterrando-os, apanhando-os por seu rosto humano subitamente surgido de seu nada – por um rosto do homem eterno que o tempo modela por séculos e não por instantes – por seu rosto vivo contra a vida.
          Só, no meio das areias das quais cada duna testemunha do esgotamento do vento, do abandono do mundo, eu me contentava com a aparência; ao passo que é no interior da pedra que bate genialmente o coração obreiro da morte, que se escreve, em pulsões celestes ou infernais, o universo cerrado da eternidade.


 *

FRAGMENTO DE UMA CARTA



          Grato por «Casas de um tabuleiro de xadrez», que foi, para mim, o objeto, o centro de uma longa reflexão.
          O prefácio dessa obra nos revela uma postura segura de si mesma mas, ao mesmo tempo, inquieta com seus passos.
          E é nessa perspectiva que teus livros devem, agora, ser lidos. A interrogação faz recuarem as divisas de cada um deles. Para além – nos prolongamentos, portanto, da interrogação – insinua-se o comentário que é nova interrogação e nova meditação.


          Há o objeto de tua curiosidade que é descascado vigorosamente, implacavelmente – mas também descascado, como descascamos as nozes, como descascamos uma árvore – e há o que escorrega de teus dedos, o que só poderá ser captado alhures – ou, talvez, jamais captado – e que, de repente, nos ilumina.
          Há a questão e, ao cabo, o desespero de uma resposta recusada.
          E há o relato em sua dimensão soberana.
          A necessidade, no que é dado, de interrogar o secreto, é o próprio de teu pensamento: esse secreto que não é o que é alapado mas, ao contrário, o que fala no recôndito. De sorte que é a palavra do segredo que é incessantemente questionada.
          Tua abordagem das coisas – e dos seres – se faz, primeiro, instintivamente quase, através do que os dissimula.
          Tu partes – para ver, para compreender – do que não se entrega imediatamente à visão nem à audição. Cata de paciência. Rastro no rastro indefinidamente realçado.
          E é então que o segredo fala e essa palavra encontra em teus livros seu lugar privilegiado.
          Tua postura se torna tateante, mas como maravilhada ou apavorada por seus horizontes. 
          A vertigem nos toma face ao vazio onde toda verdade – aquela desenhada na pedra igualmente – morre por ter sido, por se perpetuar na morte; de sorte que é seu próprio e original apagamento que nos parece ser, agora, sua luminosa e coerente manifestação.
          Fascinados pelo que não é, precisamos então nos apropriar do objeto revelando-o a si mesmo e aos outros a fim de reduzi-lo, como se ele fosse o obstáculo a vencer, a transpor; assim como tu precisaste ir ao extremo do comportamento de teus semelhantes para unir-te a eles em seu silêncio. Mestres da redução ao nada, assim como da aquiescência.
          Tudo se mantém. Tudo se responde. O homem às crenças do homem; a guerra à festa; a dança do inseto à imobilidade da pedra. A regra do jogo é regra do universo.
          Tu nos conduzes, de incursões em incursões, aos confins de nós mesmos. Abrimos os olhos sobre o que, por ter apelado a todos seus recursos, permanece espelho de um mundo que não cessaremos de sondar ao nos mirar: mundo da escritura onde se desperta e se deita o mundo, palavra elegida em que nos medimos por nós mesmos e pelo espaço, como se precisássemos viver – e morrer – no que só governa para ser governado e governar por nossa vez.
          O vocábulo é distância na não-distância; quer dizer, imensidão de uma separação que cada letra acentua anulando-a. O que é dito, o é sempre em função do que jamais será expresso. É nesses extremos limites que nos reconhecemos.


          ... mas tu és severo com essa rosa atormentada das areias. Uma certa verdade que é aquela ensinada pelo deserto, deixou-a se perder em si mesma, como se fosse necessário puni-la por ter ousado ser flor.

O Livro das Margens 

  
 Tradução: 
Amanda Mendes Casal & Eclair Antonio Almeida Filho


*


Colóquio Edmond Jabès  

UNB /  Maio de 2014


















5/07/2014

Colóquio Edmond Jabès | UNB


A ESCRITURA DE EDMOND JABÈS: 

LIVRO, PALAVRA, RELATO E VOZ





O evento se propõe a discutir a obra de Edmond Jabès segundo 4 eixos: LIVRO | PALAVRA | RELATO | VOZ. A obra de Edmond Jabès é de essencial importância para se estudar questões como identidade, diferença, nomadismo, escritura e judaísmo. O evento se fundamenta em escritores-pensadores como MAURICE BLANCHOT, GILLES DELEUZE, JACQUES DERRIDA, EMMANUEL LEVINAS e o próprio EDMOND JABÈS que sempre puseram em questão a literatura e a filosofia.



CURADORIA
Eclair Antonio Almeida Filho | LET-UNB

CONVIDADOS
Aurèle Crasson | ENS-CNRS
Caio Meira | FAPERJ
Roberta Barni | FFLCH-USP
Antônio Marcos Moreira da Silva | LET-UNB
Augusto Rodrigues da Silva Jr. | TEL-UNB
Nilson Oliveira | REVISTA POLICHINELLO
Cláudia Falluh Balduíno Ferreira | TEL-UNB
Éric Benoît  | UNIVERSITÉ MICHEL DE MONTAIGNE BORDEAUX 3



Acontece nos dias 13, 14, 15 de maio, de 2014 | UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Hora: 9:00 às 17:00
Local: Anfiteatro 2 (ICC sul) - UNB





Informações: www.let.unb/eventos



































4/28/2014

"MANEIRAS DA ESCRITA CONTEMPORÂNEA" | conversações - recital - lançamentos



MANEIRAS DA 
ESCRITA CONTEMPORÂNEA
















Trata-se de uma movimentação na direção das forças em efetuação. Um encontro entre escritas para tornar perceptível o que acontece no âmbito das experiências do escrever.   Não se trata, portanto, de uma composição geracional, do tipo “a escrita da geração tal”, tão pouco de um mapeamento literário. De outra maneira, a aposta consiste em perceber, mais que os pontos ou a identidade de um fazer literário, as fissuras, os deslocamentos ou os fluxos das grafias contemporâneas, lançando a vista para o que se dobra e se redobra desde o presente, ao que acontece no mais diverso das linhas, inclusive as imperceptíveis, cujos laços são articulados de modo singular/individuado. MANEIRAS DA ESCRITA CONTEMPORÂNEA é uma aposta (uma experiência em curso) que objetiva perceber as errâncias e derivações das escritas que se movem pela superfície do presente. Acontecerá a partir de conversações, leituras, recitais, envolvendo escritores, poetas, prosadores, escrevedores, artistas, os quais, através das suas maneiras de escrever, expressam suas estratégias de vida.  É organizado pela Revista Polichinello e acontecerá mensalmente.


Data: dia 9 de Maio, às 19h.

Local: IPHAN Av. José Malcher nº 474 

(esquina com Benjamin Constant) - Belém 


Informações:

(91) 32784578 - 83212022


revista.polichinello@gmail.com































































4/21/2014

Petição: Retorno do Claudio Daniel ao CCSP




 http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR71380


PETIÇÃO: RETORNO DO CLAUDIO DANIEL AO CCSP


Para: ExmoSr. João Luiz Silva Ferreira Secretário de Cultura do Município de São Paulo


Lamentamos profundamente o afastamento do poeta, crítico, editor e professor Claudio Daniel da Curadoria de Literatura e Poesia do CCSP. A iminente interrupção da série de ações positivas que marcaram sua gestão, reconhecidas por inúmeros poetas e escritores da atualidade, motiva o envio dessa manifestação de desapontamento com a recente resolução.

Nada fácil é o trabalho de conciliação entre pluralidade e qualidade – desafio do curador por excelência. Fiel a essa diretriz, adotada no início dos trabalhos, a curadoria destacou-se pela competência e dinamismo. Dezenas de eventos gratuitos e abertos ao público (51 entre 2011 e 2012 apenas) reuniram poetas das mais diversas vertentes, não só brasileiros como de outros países, permitindo amplamente encontros e trocas constantes, tão essenciais ao seu propósito, e nosso também, de uma cultura democrática e acessível a todos. A título de exemplo, citamos o festival 2011 poetas por km2, o espetáculo Poesia dos 4 Cantos: Noite Indiana e o I Simpósio de Ação Poética, realizado em parceria com a Casa das Rosas, reunindo 44 poetas, críticos literários, músicos e editores em recitais, mesas de debates e apresentações artísticas.
Ampliada em 2013, a programação regular oferecida pelo CCSP durante essa gestão foi igualmente notável, caracterizada pelos eventos periódicos como o ciclo de palestras Poetas de cabeceira, os recitais da série Poesia dos 4 cantos e o ciclo Dois dedos de prosa, ao lado do programa de entrevistas Poesia pra tocar no rádio, com talentos tanto novos como consagrados.
Mesmo com as dificuldades tão comuns à cultura do Brasil como um todo, o trabalho da curadoria prosseguiu em 2014 com o I Festival Poesia Nova, com a inclusão de performances, leituras, debates e a mostra VIDEOPOÉTICAS, sob a curadoria de Elson Fróes.


Na área editorial, a realização do projeto Poesia Viva contribuiu de modo significativo enquanto oposição ao bloqueio mercadológico a que novos talentos são fadados, permitindo o afloramento de novos estilos e tendências na cena literária, tão sufocada ainda por esse mesmo bloqueio. Das consequências da realização desse projeto, acreditamos que a mais importante seja o surgimento uma produção literária arejada, tão importante no caminho de uma cultura realmente democrática quanto a continuidade dos trabalhos parcialmente aqui citados.

Sendo assim, contamos com seu discernimento para uma revisão dessa perda, tanto para o Centro Cultural São Paulo como para o País. 
















4/04/2014

Marguerite Duras | por Dayse Rabelo





UM LIVRO ABERTO É TAMBÉM A NOITE

por Dayse Rabelo





Marguerite Duras foi dessas escritoras que se colocaram diante da vida como da escrita de maneira incondicional, escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e que a encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca. Viver. Escrever. Ainda muito cedo, a autora de O amante da china do Norte já se sabia Vou escrever livros. Em seu íntimo reinava uma certeza abafada, silenciosa, mas não inerte. Impossível não reagir naquela terra inóspita. Como não odiar? Como não desejar? Impossível não se entregar aos desejos, aos delírios nascidos no calor longínquo do mundo. Como não ser grande? 





É apenas uma criança, quem sabe depois da matemática, dizia-lhe Marie Donnadieu. Então calar e fazer o jogo do mais fraco, do que domina com ameaças, com gritos e surtos desesperados. Mas ela sabe de si mesma, Marguerite. E saberá depois que é importante também silenciar, escrever é também não falar. É se calar. É berrar sem fazer barulho. Nesse momento pouco conhece do ato de fazer livros, essa idéia veio não se sabe de onde nem como, mas ela passeia já pela escrita como passeia sobre a imensidão do Mekong. São perigosas essas viagens e o medo de um afogamento a acompanha. Ela sonha. Então afunda cada vez mais em suas entranhas, o Mekong. Sente lentamente o fôlego partindo-se e a água invadindo, tomando o seu corpo, arrastado pela força violenta daquelas águas, as mesmas que perturbam até a morte a senhora Donnadieu. Marguerite assistiu a esse duelo covarde e a tantos outros dos quais a senhora fora vítima. Não conseguirá esquecer esse sofrimento. Jamais esquecerá. Ela mergulhou profundamente nesses desesperos, escavou essa imensidão até o fim, olhar o mar é olhar o todo. Em todos os livros, ela perceberá, água. A vida inteira. A vida inteira solidão. A vida inteira escrever. Depois disso, não há como escapar e para onde. 





Há apenas a entrega àquela que foi a razão de toda uma vida e que a transformou, é extraordinário quando acontece uma coisa mais forte do que você, quando a gente se torna nada, nada...! Uma espécie de pena solta! Haverá sempre algo de muito forte acontecendo ao redor de si, então ela, Marguerite, será eternamente uma espécie de pena solta levada pelos ventos do desejo, que também são os da dor, do luto, de uma quase demência que a faz gritar e se contorcer, como o corpo que se contorce e range com a força de um grito sem voz, como o gozo naquele quarto lúgubre da cidade cujo calor enlouquece. A cidade é a da infância, a do amor que eclipsou os outros amores de sua vida. Sente febre. A febre lhe toma o corpo franzino que se vende ao amante da limusine, àquele amor nunca reencontrado. Amor primordial. Mas o corpo resiste. O corpo é maciço. Ela depende de si mesma. A escrita depende desse corpo. Não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesma para abordar a escrita. [...] Não é apenas a escrita, o escrito, é o grito das feras noturnas, de todos, você e eu, os gritos dos cães. Escrever é também isso. É também morrer. Morrer. Há a entrega total de si, um transbordamento, uma separação, um isolamento essencial. A solidão, ela constrói. Tem sala e quartos, a solidão, é numa casa que a gente se sente só. Não do lado de fora, mas de dentro. Seu quarto é uma certa janela, uma certa mesa, a intimidade com a tinta preta, marcas de tinta preta impossíveis de achar em outro lugar, é uma certa cadeira. Desse quarto-objeto ela avança em direção à escrita, ao desconhecido que é a escrita. Não é o amor que a move e que a arrasta em sua direção. O amor lhe escapa. Tudo está claro. O desejo de morte, mesmo desejo de escrever. Vou escrever livros, ela repete. É ainda muito cedo, mas não há outra saída. Ela se dispõe, se prepara a grandes combates com o atrevimento que lhe é próprio, com uma liberdade que afronta e ao mesmo tempo não é menos que desejável, como se não sentisse medo. De tudo. Nos livros, será sempre a mesma. Ela, a pequena insolente, que agrada aos homens. Todos a querem. Os indochineses todos. Eles a convidam, Marguerite. M. Foucault e H. Cixous falam dela: fantasticamente erótica. O que fascina, eles dizem, [...] é uma mistura de erotismo, que atinge a carne de mulher [..] e aliás de morte. Está sempre presente, a morte. Marguerite fala de uma morte inteira, a do jovem aviador inglês. Deixa-se embriagar por essa morte silenciosa, morte tão lenta e dura do jovem inglês de vinte anos, e pela outra, a morte sem amor dos amantes da Indochina, emoção inesgotável, absoluta. Nada será esquecido. Ela sente, capta cada movimento, os olhares, todos, voltados para a menina branca, e a certeza de que tudo está muito próximo, de que o corpo frágil foi feito para o prazer, assim como não se engana sobre os livros. Estava certa. É preciso ter força. Ter força para abordá-la, a ela mesma, Marguerite. 


Ela que toma uísque todas as noites. Necessita desse trago diário de sono para escapar à solidão. Mas da solidão alcoólica, muito próxima da loucura, da morte mesmo. Não a solidão, aquela da casa de Neauphle, a solidão que se fez para os livros, longe de tudo. Apenas os objetos e o barulho das crianças patinando no tanque congelado. Então é aí nesse lugar que ela encontra a escrita inevitável que a levaria para longe, muito longe, e que sustentaria suas angústias, seus lutos, sua fome de vida e de morte, existe o suicídio na solidão do escritor. É possível sentir-se sozinho no interior da sua própria solidão. Sempre inconcebível. Sempre perigosa. Sim. Um preço a pagar por ter ousado sair e gritar. A escrita arranca, empurra, mata, ela sabe disso até o fim. Sabe também que os livros virão. Um a um virão. Desconhecidos, revestidos com as estrelas, com a escuridão do céu colonizado, com a solidão do mundo inteiro. Um livro aberto é também noite, ela diz. 




A noite é sua morada, a solidão também, a que habita a casa e o mar de Trouville, que se ergue à sua frente e que só pode levar à escritura. Então ela segue. Segue empurrada pela dor do corpo, pelo desejo, pelos lutos que um a um se vão enfileirando em sua memória. E de repente tudo deságua, tudo se mostra inesgotável, como as águas profundas do rio. Como o prazer dos corpos em desespero. Como o bafo morno que brota da terra longínqua, desolada. Ainda sente o calor da terra, Marguerite. Ela também é essa terra. Do seu corpo brota o mesmo calor, mas um calor intensidade que é também escrita, escrita incessante que vem com o vento, nua, é de tinta, a escrita, e passa como nada mais passa na vida, nada, exceto ela, a vida.



Dayse Rabelo (Belém / PA)
dayserabelo@gmail.com