4/04/2014

Marguerite Duras | por Dayse Rabelo





UM LIVRO ABERTO É TAMBÉM A NOITE

por Dayse Rabelo





Marguerite Duras foi dessas escritoras que se colocaram diante da vida como da escrita de maneira incondicional, escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e que a encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca. Viver. Escrever. Ainda muito cedo, a autora de O amante da china do Norte já se sabia Vou escrever livros. Em seu íntimo reinava uma certeza abafada, silenciosa, mas não inerte. Impossível não reagir naquela terra inóspita. Como não odiar? Como não desejar? Impossível não se entregar aos desejos, aos delírios nascidos no calor longínquo do mundo. Como não ser grande? 





É apenas uma criança, quem sabe depois da matemática, dizia-lhe Marie Donnadieu. Então calar e fazer o jogo do mais fraco, do que domina com ameaças, com gritos e surtos desesperados. Mas ela sabe de si mesma, Marguerite. E saberá depois que é importante também silenciar, escrever é também não falar. É se calar. É berrar sem fazer barulho. Nesse momento pouco conhece do ato de fazer livros, essa idéia veio não se sabe de onde nem como, mas ela passeia já pela escrita como passeia sobre a imensidão do Mekong. São perigosas essas viagens e o medo de um afogamento a acompanha. Ela sonha. Então afunda cada vez mais em suas entranhas, o Mekong. Sente lentamente o fôlego partindo-se e a água invadindo, tomando o seu corpo, arrastado pela força violenta daquelas águas, as mesmas que perturbam até a morte a senhora Donnadieu. Marguerite assistiu a esse duelo covarde e a tantos outros dos quais a senhora fora vítima. Não conseguirá esquecer esse sofrimento. Jamais esquecerá. Ela mergulhou profundamente nesses desesperos, escavou essa imensidão até o fim, olhar o mar é olhar o todo. Em todos os livros, ela perceberá, água. A vida inteira. A vida inteira solidão. A vida inteira escrever. Depois disso, não há como escapar e para onde. 





Há apenas a entrega àquela que foi a razão de toda uma vida e que a transformou, é extraordinário quando acontece uma coisa mais forte do que você, quando a gente se torna nada, nada...! Uma espécie de pena solta! Haverá sempre algo de muito forte acontecendo ao redor de si, então ela, Marguerite, será eternamente uma espécie de pena solta levada pelos ventos do desejo, que também são os da dor, do luto, de uma quase demência que a faz gritar e se contorcer, como o corpo que se contorce e range com a força de um grito sem voz, como o gozo naquele quarto lúgubre da cidade cujo calor enlouquece. A cidade é a da infância, a do amor que eclipsou os outros amores de sua vida. Sente febre. A febre lhe toma o corpo franzino que se vende ao amante da limusine, àquele amor nunca reencontrado. Amor primordial. Mas o corpo resiste. O corpo é maciço. Ela depende de si mesma. A escrita depende desse corpo. Não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesma para abordar a escrita. [...] Não é apenas a escrita, o escrito, é o grito das feras noturnas, de todos, você e eu, os gritos dos cães. Escrever é também isso. É também morrer. Morrer. Há a entrega total de si, um transbordamento, uma separação, um isolamento essencial. A solidão, ela constrói. Tem sala e quartos, a solidão, é numa casa que a gente se sente só. Não do lado de fora, mas de dentro. Seu quarto é uma certa janela, uma certa mesa, a intimidade com a tinta preta, marcas de tinta preta impossíveis de achar em outro lugar, é uma certa cadeira. Desse quarto-objeto ela avança em direção à escrita, ao desconhecido que é a escrita. Não é o amor que a move e que a arrasta em sua direção. O amor lhe escapa. Tudo está claro. O desejo de morte, mesmo desejo de escrever. Vou escrever livros, ela repete. É ainda muito cedo, mas não há outra saída. Ela se dispõe, se prepara a grandes combates com o atrevimento que lhe é próprio, com uma liberdade que afronta e ao mesmo tempo não é menos que desejável, como se não sentisse medo. De tudo. Nos livros, será sempre a mesma. Ela, a pequena insolente, que agrada aos homens. Todos a querem. Os indochineses todos. Eles a convidam, Marguerite. M. Foucault e H. Cixous falam dela: fantasticamente erótica. O que fascina, eles dizem, [...] é uma mistura de erotismo, que atinge a carne de mulher [..] e aliás de morte. Está sempre presente, a morte. Marguerite fala de uma morte inteira, a do jovem aviador inglês. Deixa-se embriagar por essa morte silenciosa, morte tão lenta e dura do jovem inglês de vinte anos, e pela outra, a morte sem amor dos amantes da Indochina, emoção inesgotável, absoluta. Nada será esquecido. Ela sente, capta cada movimento, os olhares, todos, voltados para a menina branca, e a certeza de que tudo está muito próximo, de que o corpo frágil foi feito para o prazer, assim como não se engana sobre os livros. Estava certa. É preciso ter força. Ter força para abordá-la, a ela mesma, Marguerite. 


Ela que toma uísque todas as noites. Necessita desse trago diário de sono para escapar à solidão. Mas da solidão alcoólica, muito próxima da loucura, da morte mesmo. Não a solidão, aquela da casa de Neauphle, a solidão que se fez para os livros, longe de tudo. Apenas os objetos e o barulho das crianças patinando no tanque congelado. Então é aí nesse lugar que ela encontra a escrita inevitável que a levaria para longe, muito longe, e que sustentaria suas angústias, seus lutos, sua fome de vida e de morte, existe o suicídio na solidão do escritor. É possível sentir-se sozinho no interior da sua própria solidão. Sempre inconcebível. Sempre perigosa. Sim. Um preço a pagar por ter ousado sair e gritar. A escrita arranca, empurra, mata, ela sabe disso até o fim. Sabe também que os livros virão. Um a um virão. Desconhecidos, revestidos com as estrelas, com a escuridão do céu colonizado, com a solidão do mundo inteiro. Um livro aberto é também noite, ela diz. 




A noite é sua morada, a solidão também, a que habita a casa e o mar de Trouville, que se ergue à sua frente e que só pode levar à escritura. Então ela segue. Segue empurrada pela dor do corpo, pelo desejo, pelos lutos que um a um se vão enfileirando em sua memória. E de repente tudo deságua, tudo se mostra inesgotável, como as águas profundas do rio. Como o prazer dos corpos em desespero. Como o bafo morno que brota da terra longínqua, desolada. Ainda sente o calor da terra, Marguerite. Ela também é essa terra. Do seu corpo brota o mesmo calor, mas um calor intensidade que é também escrita, escrita incessante que vem com o vento, nua, é de tinta, a escrita, e passa como nada mais passa na vida, nada, exceto ela, a vida.



Dayse Rabelo (Belém / PA)
dayserabelo@gmail.com 




























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