5/05/2012

A MORTE E OS SEUS TEMPOS MORTOS - sobre o livro A Outra Morte de Haroldo Maranhão










Por Ney Ferraz Paiva


Para amar/ morrer os corpos falam/ falham// Um masturba o outro – confabulam// e se simulam// não se assimilam// Pois que a palavra é palha combustível// os corpos// com seu púbis, seu discurso e chamas/ se consomem// – não se consumam”
[A Fala entre Parêntesis, Max Martins]









Agora sabemos, Dalcídio Jurandir voltou a Belém e aqui morreu. Ele, que todos acreditavam exilado no Rio de Janeiro desde 1941, estava entre nós, anônimo, residindo, não se sabe há quanto tempo, na Benjamim Constant nº 34. Esse e outros enredos desconcertantes compõem o livro de estréia de Nilson Oliveira “A Outra Morte de Haroldo Maranhão”. São 16 pequenas histórias que se efetuam sem que de fato alguém as conte; elas se exercem num mistério de escrita, se investem dentro do espaço literário, mas não de sua categoria e codificação (“Não sei se o que escrevo é literatura. Talvez a literatura passe alhures”), para aí fazer soar a voz incerta e errática que “não passa mais pelos caminhos do som, mas pela chaga da palavra”.

Sem que sejam feridas superficiais, o que dói mais que tudo, aqui, é a palavra, seu uso e o silêncio que corre por trás: o inominável, tornando o livro uma pequena lacuna – pelo que vai sufocando, dilacerando as expectativas, as adequações e até mesmo as boas intenções do leitor incauto, este que tantas vezes almeja encontrar diante de si um texto delineado em tantas e exaustivas ações e sentimentos irrefreáveis; aqui, o leitor é ninguém, ele é levado a pensar a escrita num vislumbre de impressões e fragmentos, como um campo intensivo de simulações e descrições irreais, de desnaturadas imagens: “E ele, na medida em que caminha, aos poucos vai compreendendo que essa voz existe para lhe acompanhar, por uma espécie de amizade ou uma quase loucura, na verdade uma falha, uma conversa que nunca se consolida”.

O trecho acima pertence ao conto (na verdade, uma fábula beckettiana) “até o fim”: um caminhante tenta desempedir-se de suas rotinas, avança em meio ao que desconhece de si, sem, no entanto, nada almejar além do fato de seguir caminhando; caminhar sem os sinais de orientação – “Esse é o caminho que, ao ser percorrido, não se tem volta”. Não se trata mais de seguir a um lugar de autoconhecimento, de inquerir ao ser de sua origem e função, mas de combater os idealismos externos à existência, e a toda e qualquer sublimação (“A morte é essa preocupação de limitar o que introduzimos no ser, é o fruto e talvez o meio pelo qual fazemos de todas as coisas objetos, realidades bem fechadas, bem famintas, totalmente impregnadas de nossa preocupação com o fim”). O caminhante envereda, embrenha-se em suas escolhas e tudo que acontece, sem que se dê conta, é seu desaparecimento. Seja uma figura humana anônima, em trânsito pela noite; seja a figura emblemática, quase lendária de Dalcídio Jurandir, Robert Stock, Maria Lúcia Medeiros, Haroldo Maranhão, todos desvanecidos e esvaziados pelo silêncio – para escritores, o mais sórdido percurso.

Aqui estamos entre o mote escatológico “Falhar, falhar melhor”, de Beckett, e a mitologia verbal (“Farfalhamos”) de Mário Faustino: enfronhados numa saturação que só a linguagem talvez possa resolver, a dos espaços de criação, pensamento e cultura tão entrevados que estão e que assistimos transcorrer para daí recolhermos tão pouco, embora, muito prometam. A textura de Nilson Oliveira é estreita, formalmente pequena porque assim decide que seja, é seu projeto de escrita (“Aquele que escreveu essas narrativas o fez atraído pelo desejo, pela ignorância, por uma insólita curiosidade, não em desvendar, mas tão somente acompanhar, pela lente da escritura, alguns instantes dessas vidas enredadas por entre a sombra e a ficção”); uma escrita que pouco promete do muito que pode dar, e sua entrega é lenta, dissuasiva, escassa, vai se distanciando, para em seguida voltar àquele quarto asfixiante de que Proust (também uma escolha beckettiana) era retirado e levado ao jardim, para uma golfada de ar. Quanto menos longe se vai mais difícil é a respiração. Em “casa velha” há essa alegoria recorrente da escrita, a casa, “cujo lugar e direção não são precisos”, de que não se sabe o número exato de quartos (“Certa vez ao abrirmos um desses quartos tivemos uma estranha revelação”), e de onde não há fugas parciais.

À espreita, uma estranha voz, sem nome, a que todos estão presos, vai consumindo o que está a seu alcance, simulando descrições intensas, agressivas, nada convencionais: não há lembrança, há invenção – uma consciência canibal. Essa subjetividade total prolifera ainda pelo diálogo exigente e doloroso de “a escritora do casa blanca”, em que tudo é dito e imediatamente negado uma vez mais pela voz narrativa, em sua força autônoma, sem que se imprima aí um inventário sobre o parentesco involuntário da escritora Maria Lúcia Medeiros com Virginia Woolf, e o outro tipo sangüíneo que se pressupõe à ela: Jorge Luis Borges. Ao longo do conto, as personagens “observam”, meticulosas, a conversa: não mais operam a máquina verbal, emperrada de suas oposições, falsas noções de identidade, tempo e espaço. Sintaxe, enunciação, discurso se estreitam ainda mais; a velha ficção realista sucumbe à inércia e à desintegração, à vidência algo próxima ao estilo narrativo de Sylvia Plath. Sem negociação possível com o que não se tem afinidade, estamos fechados num lugar onde só a linguagem visual prospera, indócil, pesada, sem fazer fruir mais que as imagens finais.

Desse modo lacunar de escrita vem a referência ao escritor Haroldo Maranhão, que desde o título atravessa todo o livro como um morto ambulante. E de que morte se está falando aqui, já que outra? Da morte do romance? Da poesia? Da morte das palavras? Ou pior: da morte de Eros, que também sabíamos combalido? Talvez não haja resposta; trate-se de um enigma; ou quem sabe se possa resgatar alhures alguma evidência. Sabe-se que Haroldo Maranhão morreu em 2003; que ele já não voltava a Belém, sequer nos meses derradeiros, assim como Dalcídio Jurandir renunciou voltar por quarenta anos. Morre-se, apenas isso; e depois a escrita se povoa desses tempos.

Ney Ferraz Paiva, poeta, autor de “não era suicídio sobre a relva” (2000) e “nave do nada” (2004).








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