5/05/2012

RECADO IMPESSOAL - sobre A Outra Morte de Haroldo Maranhão



Por Marcelo Azevedo


Este livro disputa à morte e ao tempo imagens que eles precipitam no esquecimento e na obscuridade. Para o autor dessa disputa não há descanso nem livro sem alcançar a surpresa da descoberta, em seus desvios, de uma persona real, arrancada à sua primeira morte, ressuscitada sob a forma de livro. Assim, que nome dar, com efeito, a esse espécie de duplo que por toda a parte nos contos acompanha cada personagem, seguindo-os, e que no entanto os deixa a sós consigo mesmo? Não tendo à sua frente ninguém para quem olhar, falar e ser, resta-lhes então o caminho que se abre à fala do impessoal: a ele que caminha furtivamente atrás de suas costas; às vezes antecede a sua chegada ou mesmo a sua saída em um lugar qualquer; e ele, o autor, está preocupado: pelas suas costas alastra-se a sensação de que outros entraram através delas, como que através de uma porta.



Ao agir desse modo, cada personagem verídico, o populista, a neutra, o falado, impossível em sua identidade, pretende recuar em sua diferença para provar ares de pensamentos estranhos. Nem maturação, nem crise, muito menos a agonia da memória. Outra coisa. Contar em segredo com a potência de acolhida das imagens mais inumanas estilhaçadas entre o inferno, a infância, o primeiro solo, a velhice, a loucura. Sem ambiente em nosso viveiro antropológico, essa matéria pura vem de outra parte do livro abandonado. Desconcerta e ultrapassa qualquer fácil inspiração recebida. A vontade espontânea de escrever separa-se de quem a dá para não ser mais, ou não ser ainda, por si só. Cada personagem vem ou fica por vir singularmente do outro do livro. Só por ele se enfrenta a força dessas imagens, se refere realmente às condições selvagens do ato de escrever, que ele afeta e que o afetam na criação literária.

Como se verá, o livro lhes reserva uma nova origem e a um só tempo suas vidas ganham um outro sentido. Então como reunir, a partir dos livros dos personagens, seus restos sempre ausentes, que a todo instante ameaçam voltar por causa da fadiga, da desatenção e dos ardis da posteridade que ainda persistem? Decifrar e dedicar-se a esta tarefa que, não obstante já ter visto outros a ela recolhidos, Nilson Oliveira retoma uma vez mais, creio, sozinho em uma mesa no terraço do Grande Hotel, por sua vez sob os olhares velados de Paulo Plínio Abreu, Henry Michaux, Oswald Goeldi, José Veríssimo, Dalcídio Jurandir, Ismael Nery, Robert Stock e outros, desconfiado de que pudesse haver uma relação entre aqueles homens desconhecidos entre si e o livro que procurava. O autor, em seu livro, traça da vida de seus personagens a imagem desaparecida e salva da morte de uns poucos da região que chegaram a habitar o presente da escrita. A fina linha de atualidade em que cada um deles vive à medida que distorcem para o lado de sua própria imagem literária.

O que se segue então é a paciente transferência para a escrita, para o livro, e para a imagem sem verdade, da responsabilidade de revolver a memória da literatura. Escritores reais e alguns de seus personagens serão deslocados para fora de si a fim de ocupar desta vez o lugar de destinatário exterior do que eles próprios dizem ao repetir, é claro, o que escutam de outros, duplicados alhures. O jogo que se impõe ao leitor é um jogo de sombras, indistintas. Amigos, parentes ou a fortuna póstuma não poderiam oferecer senão informações escassas e pouco elucidativas; confiáveis mesmo, apenas as informações que vêm do livro para o livro, e através do ciclo reaberto, que é aonde A Outra Morte de Haroldo Maranhão se insere, assistimos a antigos rostos conhecidos regressarem pouco a pouco a si... como estranhos desfigurados pelas conseqüências do seu próprio ato de escrever. Aí sim nos são oferecidas, indissoluvelmente ligadas a escrita, a vida e a outra morte do herói.


Estes são como que roteiros potenciais por onde A Outra Morte encaminha o jogo de sua escrita a partir da desmontagem e cruzamento de fragmentos de conversas sem interlocutor definido, de excertos de livros enterrados pela metade nos escombros da cidade com passagens inventadas de reservas inconfessas. O que é a biografia, desde então, nessa disputa? Quem se vê invocado a narrar senão ele como imagem de força anônima que se faz ouvir? Pois há algo no tom de voz... certa inflexão ou ênfase, um tal brilho na monotonia emanada da atmosfera inapreensível dos contos que existe, cresce e se faz sentir além das palavras, chega à respiração do leitor ameaçando sobrepor-se até mesmo ao livro. Logo, o que vem é como ponta intempestiva de uma renovação, acontece se debatendo contra o tempo, mas em absoluto acontece a tempo – e jamais de acordo com ele –de todos poderem testemunhar, reconhecer, aprovar ou a ele resignar-se.


Marcelo Azevedo é filosofo.







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