5/14/2012

O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam



O ABANDONO NOSSO DE CADA DIA
Sobre o novo livro de Evandro Affonso Ferreira
Por Márcia Tiburi


O título já pode produzir inquietação. Afinal que aquilo que supomos saber de um mendigo jamais incluiria que fosse culto, que soubesse quem foi Erasmo e muito menos que tivesse lido seus adágios sobre os quais, aliás, poucos sabem. O personagem criado por Evandro Affonso Ferreira inverte essa lógica nos dando o que pensar no instante em que a erudição de um homem se mede com seu próprio abandono e o abandono generalizado do mundo ao seu redor. O que sabemos, por meio desse homem com profundas cicatrizes interiores é que a miséria das ruas pertence a todos: “somos todos – cada um à sua maneira – fedentinosos e desvalidos e patéticos e constrangedores.” Que no fundo, de certo modo, todos pertencemos a este “grupo dos suicidas graduais vivendo à margem das estatísticas”.

O mendigo narra a história a um senhor debaixo de uma marquise como um Riobaldo que perdera seu sertão e tem agora o cenário da catástrofe urbana a sua frente. Entre a mulher-molusco, arremedo confuso de maternidade e o menino-borboleta, arremedo de filho, nosso mendigo erasmiano, como o narrador do Grande Sertão: Veredas, observa o desfecho da vida dos despossuídos como ele. Enquanto isso, sendo daquela estirpe de poetas românticos que idealizam uma musa, impressionantemente culta como ele e da qual só lhe restaram as lembranças, ele tenta manter-se inteiro entre a razão e a sensibilidade prestes à devoração pela loucura.

Não é à toa que Erasmo, o autor de Elogio da Loucura, seja o alter ego desse homem perdido nas ruas, que olha para a desnudez da condição humana e pede passagem à poesia sustentada a despeito da miséria. O texto é o mantra do nonsense, ritmo diário que escutamos sem ouvir, do qual este livro é o grito sutil. Por isso é que Evandro marca certas frases e as repete fazendo de sua literatura uma lembrança da oralidade.

Mais longe, descobrimos que é a erudição como emblema do conhecimento inútil, que está sendo questionada como escape, como resto que se tem às mãos em um mundo que só valoriza bens materiais, poder e vida fácil, e que reduz a corpo, à mera vida sobrevivente, todo aquele que por motivos vários, não suportou a luta de vida e morte em que sempre vence a ordem aviltante das coisas. No fundo, há o sistema sustentado em miséria e dor, um sistema em que toda a cultura é tratada como lixo e em que o lixo tem muito mais chance de se tornar “cultura”.

SOBRE O AMOR

O drama do personagem, cujo desfecho diz o quanto a literatura de Evandro Affonso Ferreira não está para acordos fáceis, mostra o conflito e a dor presentes no encontro entre realidade e fantasia, idealização e concretude, esperança e ameaça de esquecimento. Podemos dizer que este é um romance sobre a fragilidade da memória. E mais ainda que se trata do amor enquanto ele é uma forma de desespero.

A musa, o objeto da idealização desesperada desse sentimento sob ameaça de extinção, é uma médica oncologista, ou é Billy Holliday, não importa. Seu nome verdadeiro é apenas uma letra grafada pelas ruas, em todos os espaços vazios da cidade, como emblema do amor, da memória e da esperança. N de nada, é a logomarca do amor perdido que, grafitada pela cidade, tem a chance de criar a antinarrativa da vida. Essa vida em N feito esquina, esse ziguezague das ruas, essa “insígnia esperançosa” com que todos estamos marcados.

Nosso mendigo pichador nos faz ver também que é o poeta e o escritor que estão em extinção em um mundo de barbárie cada vez mais descarada. Um mundo em que não há memória, porque não há história já que os narradores foram extintos. Ser escritor é ser o anti-herói, esse mendigo em um mundo analfabeto, no qual a literatura se vende ao jornalismo, à publicidade e à Medusa petrificante da indústria cultural. Resta uma letra como esperança final, e também ela pode ser devorada pelos ratos que sinalizam o “destrambelho in totum” ao qual todos que ainda sonham com um mundo melhor, um mundo com amor, estão condenados.

Para os que não tem medo do pensamento e do estilo de Evandro Affonso Ferreira, o efeito é o aprendizado da coragem com que ele erigiu essas páginas fazendo ver que, para além da esperança, ainda há a chance da literatura.

Obrigada Evandro Affonso Ferreira por ter escrito esse livro. Acho que todos os que amam a literatura brasileira agradecem.
RESENHA SOBRE O MENDIGO QUE SABIA DE COR OS ADÁGIOS DE ERASMO DE ROTTERDAM de Evandro Affonso Ferreira (ed. Record, 2012. 127p.)

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Trecho de O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam




Evandro Affonso Ferreira
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A-hã: estou falando dele, Erasmo de Rotterdam. Dizia que cada momento da vida seria triste, fastidioso, insípido, aborrecido, se não houvesse prazer, se não fosse animado pelo tempero da Loucura. Veja: chovendo. Também ela, a chuva, chama-me à memória minha amada. Nas noites chuvosas, sem trovões e relâmpagos, não ficávamos debaixo, mas sobre a cama. Este som pluviométrico nos excitava. Nossos corpos, nus, juntos, um pedindo silencioso carinho ao outro, fazíamos acreditar, ingênuos, na injustiça da não-imortalidade humana. Hoje sei que a natureza é sábia providenciando infalível nosso desfazimento in totum. Sábia em desfazer. Menino-borboleta, mulher-molusco, por exemplo, não deveriam ter sido feitos. Uma vez, sentado num banco de praça, ouvi de repente barulho seco. Virei-me, vi, na esquina ao lado, corpo de homem dando três piruetas no ar: atropelamento. Tarde toda fiquei pensando nela nossa vulnerabilidade, e nos tais acontecimentos desagradavelmente imprevisíveis – além de tudo. Ambulância não chegou a tempo para vê-lo respirando pela última vez. Sim: vi-vivi cenas muito desagradáveis. Algumas comoventes. Foi bonito ver aquele saxofonista, dois anos atrás, tocando numa esquina My funny valentine para senhora elegante, octogenária, cujas lágrimas escorriam numa tentativa inútil de desenhar no rosto o s de saudade – ou de solidão. Perdi aos poucos o juízo sem perder a esperança. Sempre sonho em encontrar-me com ela num canto qualquer da cidade. Às vezes deliro. Semana passada fui empurrado bruscamente por brutamontes que acompanhava moça parecida com minha amada imortal. Reconheço a precipitação tentando beijar de súbito seu rosto. Sei que criei num átimo situação insólita motivando reação de igual natureza. Veja: hematomas no braço. Mas não desisto: vou encontrá-la um dia. Possivelmente, dirá: Insólito; você é insólito. Depois riremos. Sempre foi assim: em seguida à repreensão, risos. Eu, desajeitado para quase tudo; deslocado também. Ela, ao contrário, prática, pragmática, partícipe. Muito bonita. Lábios sensuais. Desisto; você vai aprender jamais a beijar – ela dizia-me, inconformada. Desajeitado para quase tudo – sou sim. Vida toda se entregou aos livros. A-hã: Erasmo de Rotterdam. Atualizou versão grega do Novo Testamento, traduzindo-o para o latim. Vou abrir ao acaso este livrinho de adágios; ouça: Sero molunt dorum molae – As mós dos deuses moem devagar. Não é por obra dos caprichos que sou paciente com ela deusa do reencontro – esta que, mais cedo, mais tarde, colocará minha amada outra vez no meu caminho. Às vezes acordo de madrugada, delirando, vendo o rosto dela, cujas narinas sopram suaves o lado extremo do N desenhado no tatame. Depois, desiludido não durmo mais. Fico ouvindo a própria tosse intermitente que se sobressai diante da quietude noturna. Vez em quando, nessas noites insones, cantarolo alguma canção de Billie Holiday. Gostávamos de ouvir Billie.











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