O ABANDONO NOSSO DE CADA
DIA
Sobre o novo livro de
Evandro Affonso Ferreira
Por Márcia Tiburi
O título já pode produzir inquietação.
Afinal que aquilo que supomos saber de um mendigo jamais incluiria que fosse
culto, que soubesse quem foi Erasmo e muito menos que tivesse lido seus adágios
sobre os quais, aliás, poucos sabem. O personagem criado por Evandro Affonso
Ferreira inverte essa lógica nos dando o que pensar no instante em que a
erudição de um homem se mede com seu próprio abandono e o abandono generalizado
do mundo ao seu redor. O que sabemos, por meio desse homem com profundas
cicatrizes interiores é que a miséria das ruas pertence a todos: “somos
todos – cada um à sua maneira – fedentinosos e desvalidos e patéticos e
constrangedores.” Que no fundo, de certo modo, todos pertencemos a este
“grupo dos suicidas graduais vivendo à margem das estatísticas”.
O mendigo narra a história a um senhor
debaixo de uma marquise como um Riobaldo que perdera seu sertão e tem agora o
cenário da catástrofe urbana a sua frente. Entre a mulher-molusco, arremedo
confuso de maternidade e o menino-borboleta, arremedo de filho, nosso mendigo
erasmiano, como o narrador do Grande Sertão: Veredas, observa o desfecho
da vida dos despossuídos como ele. Enquanto isso, sendo daquela estirpe de
poetas românticos que idealizam uma musa, impressionantemente culta como ele e
da qual só lhe restaram as lembranças, ele tenta manter-se inteiro entre a
razão e a sensibilidade prestes à devoração pela loucura.
Não é à
toa que Erasmo, o autor
de Elogio da Loucura, seja o alter ego desse homem perdido nas ruas, que olha
para a desnudez da condição humana e pede passagem à poesia sustentada a
despeito da miséria. O texto é o mantra do nonsense, ritmo diário que escutamos
sem ouvir, do qual este livro é o grito sutil. Por isso é que Evandro marca
certas frases e as repete fazendo de sua literatura uma lembrança da oralidade.
Mais
longe, descobrimos que é a
erudição como emblema do conhecimento inútil, que está sendo questionada como
escape, como resto que se tem às mãos em um mundo que só valoriza bens
materiais, poder e vida fácil, e que reduz a corpo, à mera vida sobrevivente,
todo aquele que por motivos vários, não suportou a luta de vida e morte em que
sempre vence a ordem aviltante das coisas. No fundo, há o sistema sustentado em
miséria e dor, um sistema em que toda a cultura é tratada como lixo e em que o
lixo tem muito mais chance de se tornar “cultura”.
SOBRE O AMOR
O drama
do personagem, cujo
desfecho diz o quanto a literatura de Evandro Affonso Ferreira não está
para acordos fáceis, mostra o conflito e a dor presentes no encontro entre
realidade e fantasia, idealização e concretude, esperança e ameaça de
esquecimento. Podemos dizer que este é um romance sobre a fragilidade da
memória. E mais ainda que se trata do amor enquanto ele é uma forma de
desespero.
A musa, o objeto da idealização
desesperada desse sentimento sob ameaça de extinção, é uma médica oncologista,
ou é Billy Holliday, não importa. Seu nome verdadeiro é apenas uma letra
grafada pelas ruas, em todos os espaços vazios da cidade, como emblema do amor,
da memória e da esperança. N de nada, é a logomarca do amor perdido que,
grafitada pela cidade, tem a chance de criar a antinarrativa da vida. Essa vida
em N feito esquina, esse ziguezague das ruas, essa “insígnia esperançosa”
com que todos estamos marcados.
Nosso
mendigo pichador nos faz
ver também que é o poeta e o escritor que estão em extinção em um mundo de
barbárie cada vez mais descarada. Um mundo em que não há memória, porque não há
história já que os narradores foram extintos. Ser escritor é ser o anti-herói,
esse mendigo em um mundo analfabeto, no qual a literatura se vende ao
jornalismo, à publicidade e à Medusa petrificante da indústria cultural. Resta
uma letra como esperança final, e também ela pode ser devorada pelos ratos que
sinalizam o “destrambelho in totum” ao qual todos que ainda sonham com um mundo
melhor, um mundo com amor, estão condenados.
Para os
que não tem medo do
pensamento e do estilo de Evandro Affonso Ferreira, o efeito é o aprendizado da
coragem com que ele erigiu essas páginas fazendo ver que, para além da
esperança, ainda há a chance da literatura.
Obrigada
Evandro Affonso Ferreira por ter escrito esse livro. Acho que todos os que amam
a literatura brasileira agradecem.
RESENHA SOBRE O MENDIGO QUE SABIA DE COR OS ADÁGIOS DE ERASMO DE ROTTERDAM de Evandro Affonso Ferreira (ed. Record, 2012. 127p.)
***
Trecho de O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam
Evandro Affonso Ferreira
*
A-hã: estou falando dele, Erasmo de Rotterdam. Dizia que cada
momento da vida seria triste, fastidioso, insípido, aborrecido, se não houvesse
prazer, se não fosse animado pelo tempero da Loucura. Veja: chovendo. Também
ela, a chuva, chama-me à memória minha amada. Nas noites chuvosas, sem trovões
e relâmpagos, não ficávamos debaixo, mas sobre a cama. Este som pluviométrico
nos excitava. Nossos corpos, nus, juntos, um pedindo silencioso carinho ao
outro, fazíamos acreditar, ingênuos, na injustiça da não-imortalidade humana.
Hoje sei que a natureza é sábia providenciando infalível nosso desfazimento in
totum. Sábia em
desfazer. Menino-borboleta , mulher-molusco, por exemplo, não deveriam
ter sido feitos. Uma vez, sentado num banco de praça, ouvi de repente barulho
seco. Virei-me, vi, na esquina ao lado, corpo de homem dando três piruetas no
ar: atropelamento. Tarde toda fiquei pensando nela nossa vulnerabilidade, e nos
tais acontecimentos desagradavelmente imprevisíveis – além de tudo. Ambulância
não chegou a tempo para vê-lo respirando pela última vez. Sim: vi-vivi cenas
muito desagradáveis. Algumas comoventes. Foi bonito ver aquele saxofonista,
dois anos atrás, tocando numa esquina My funny valentine para senhora
elegante, octogenária, cujas lágrimas escorriam numa tentativa inútil de
desenhar no rosto o s de saudade – ou de solidão. Perdi aos poucos o
juízo sem perder a esperança. Sempre sonho em encontrar-me com ela num canto qualquer
da cidade. Às vezes deliro. Semana passada fui empurrado bruscamente por
brutamontes que acompanhava moça parecida com minha amada imortal. Reconheço a
precipitação tentando beijar de súbito seu rosto. Sei que criei num átimo
situação insólita motivando reação de igual natureza. Veja: hematomas no braço.
Mas não desisto: vou encontrá-la um dia. Possivelmente, dirá: Insólito; você
é insólito. Depois riremos. Sempre foi assim: em seguida à repreensão,
risos. Eu, desajeitado para quase tudo; deslocado também. Ela, ao contrário,
prática, pragmática, partícipe. Muito bonita. Lábios sensuais. Desisto; você vai aprender jamais a beijar
– ela dizia-me, inconformada. Desajeitado para quase tudo – sou sim. Vida toda
se entregou aos livros. A-hã: Erasmo de Rotterdam. Atualizou versão grega do
Novo Testamento, traduzindo-o para o latim. Vou abrir ao acaso este livrinho de
adágios; ouça: Sero molunt dorum molae
– As mós dos deuses moem devagar. Não é por obra dos caprichos que sou paciente
com ela deusa do reencontro – esta que, mais cedo, mais tarde, colocará minha
amada outra vez no meu caminho. Às vezes acordo de madrugada, delirando, vendo
o rosto dela, cujas narinas sopram suaves o lado extremo do N desenhado no
tatame. Depois, desiludido não durmo mais. Fico ouvindo a própria tosse
intermitente que se sobressai diante da quietude noturna. Vez em quando, nessas
noites insones, cantarolo alguma canção de Billie Holiday. Gostávamos de ouvir
Billie.
Nenhum comentário:
Postar um comentário