4/28/2013

IMAGINAR O INIMAGINÁVEL │GEORGES DIDI-HUBERMAN











Por Guilherme Freitas
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Em agosto de 1944, um grupo de prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia ocupada pelos nazistas, elaborou um plano desesperado para tentar fazer chegar ao mundo em guerra notícias do horror que viviam. Eles eram membros do Sonderkommando, o “comando especial” formado por judeus forçados a trabalhar nas câmaras de gás. Com apoio da Resistência polonesa, contrabandearam uma máquina fotográfica, e um prisioneiro anônimo conseguiu fazer quatro imagens, despachadas para fora do campo em um negativo escondido em um tubo de pasta de dente.

Mesmo desfocadas e tomadas por grandes áreas de sombra (pois o prisioneiro precisou se esconder nas câmaras de gás para fotografar sem ser visto), essas imagens são o registro visual mais explícito que se conhece do inferno dos campos. Em duas delas, é possível ver homens caminhando entre pilhas de corpos incinerados ao ar livre. Em outra, um grupo de mulheres nuas é conduzido para o crematório. A quarta é pouco mais que um borrão.

O filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman tem se dedicado a analisar essas fotos e, mais que isso, a debater a maneira como historiadores, instituições (e o público em geral) lidam com as imagens e as memórias do Holocausto. Esse é o tema de dois de seus ensaios mais importantes, recém-publicados em português: “Imagens apesar de tudo”, de 2004, em edição do Projeto Ymago (www.proymago.pt), e “Cascas”, de 2011, incluído no novo número da revista “serrote”.

IMAGINAR O INIMAGINÁVEL

Professor da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais (EHESS), em Paris, Didi-Huberman reúne em “Imagens apesar de tudo” dois textos. O primeiro é um estudo das quatro fotografias, no contexto do debate sobre o caráter “irrepresentável” do Holocausto. Se o projeto nazista era não deixar rastros do extermínio em massa para torná-lo “inimaginável”, argumenta o filósofo, então as fotos dos prisioneiros “dirigiam-se ao inimaginável, e refutam-no da maneira mais dilacerante possível”.


O segundo texto é uma resposta à polêmica criada pelo primeiro. O autor foi criticado duramente por pesquisadores como Claude Lanzmann, diretor do documentário “Shoah” e defensor da tese de que não há representação do Holocausto em imagens (em seu filme de nove horas, um marco do cinema e da historiografia, Lanzmann usa apenas testemunhos).

O pensamento, a escrita e a arte devem resistir ao sentimento de impossibilidade. Quando algo se apresenta como impensável, é aí que deve trabalhar o pensamento 

diz Didi-Huberman, em entrevista por telefone, de Paris.

 — Podemos até partir do princípio de que não há representação perfeita de um evento extremo como a Shoah. Mas se ficamos nessa posição tudo está perdido, porque nos submetemos ao inimaginável e fazemos dele algo sagrado. Prefiro dizer que podemos tentar imaginar, apesar de tudo.

Essa tese encontra eco em “Cascas”, no qual Didi-Huberman narra uma visita, em junho de 2011, ao Museu de Auschwitz-Birkenau, criado em 1947 na área dos antigos campos. Descendente de vítimas do Holocausto (no qual morreram 800 pessoas com o sobrenome Huberman, entre eles seus avós), o filósofo, ao se ver diante do local onde era feita a triagem dos recém-chegados, diz para si mesmo: “Isto é inimaginável”. Mas acrescenta: “logo devo imaginá-lo apesar de tudo”.

“Cascas” é construído como uma série de comentários sobre fotos que Didi-Huberman fez durante a visita. Registrou planos abertos dos galpões, estradas e da vegetação do campo, e captou detalhes reveladores. As cascas que arranca de uma árvore em Birkenau funcionam como metáfora para a relação entre as imagens e a realidade: “A casca não é menos verdadeira que o tronco. É inclusive pela casca que a árvore, se me atrevo a dizer, se exprime”. 

A certa altura, espanta-se ao ver três das fotografias do prisioneiro anônimo reproduzidas em totens enormes, em versões modificadas. As sombras foram eliminadas, tornando o enquadramento mais regular, e até os corpos das mulheres foram retocados. A quarta, o borrão, sequer foi incluída no memorial.

Costumamos pensar que as imagens devem mostrar algo reconhecível, mas elas são mais do que isso. São gestos, atos de fala. As sombras e a falta de foco dessas fotos mostram a urgência e o perigo com que foram feitas. Eliminar isso com o pretexto de que prejudicam a visibilidade é errado. Essas fotos são testemunhos, e é desonesto cortar a fala de uma testemunha. Temos que escutar também seus silêncios.


Esse é apenas um dos problemas apontados por Didi-Huberman em uma instituição que tenta transformar um “lugar de barbárie” em “lugar de cultura”. Antigos galpões de Auschwitz foram transformados em “pavilhões nacionais”. Outro virou estande comercial, onde se encontra à venda um gibi sobre a paixão de uma prisioneira por um guarda do campo.

A questão toda está em saber de que gênero de cultura esse lugar de barbárie tornou-se o espaço público exemplar

Escreve.

Usar simplificações e mentiras para transmitir a verdade é um contrassenso

Diz o filósofo, que, porém, elogia o fato de Birkenau ter sido transformado não em um museu, como Auschwitz, mas em sítio arqueológico.
Arqueologia das imagens

Didi-Huberman deixa clara a preferência pelo que chama de “olhar arqueológico” sobre as imagens e o mundo. Método inspirado no filósofo Walter Benjamin e no historiador da arte Aby Warburg (1866-1929), sobre quem organizou em 2011 a exposição “Atlas”, base da mostra que traz o francês ao Rio em maio, e do livro “Atlas ou a gaia ciência inquieta”, que sairá em breve em português pelo Projeto Ymago. Didi-Huberman aponta Warburg como um dos fundadores de uma “arqueologia das imagens”.

Warburg via as imagens como objetos arqueológicos. Em cada imagem que olhamos e relacionamos com outras imagens e textos, podemos descobrir pontos de convergência de múltiplas temporalidades diferentes.

O filósofo define o “olhar arqueológico” como a capacidade de “comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido”. Só assim, diz, o visitante atual de Auschwitz entende que não caminha apenas em um museu, e sim “no maior cemitério do mundo”.

Analisar imagens antigas é como andar por uma ruína. Quase tudo está destruído, mas resta algo. O importante é como nosso olhar põe esse algo em movimento. Quem não sabe olhar atravessa a ruína sem entender.




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